Aos dezesseis, eu queria mesmo era ser guitarrista. Meu pai havia me dado uma guitarra de qualidade razoável. Não tão boa quanto a Fender, mas razoável, e eu troquei a flauta transversa por um pedal, o que foi uma troca idiota, eu nunca fui bom negocista... Meus amigos achavam que eu tinha um grande talento. Eu improvisava solos à la Hendrix, meu ídolo. Cheguei a estudar bastante, as escalas, um pouco de teoria e o escambal. Mas eu tinha um defeito terrível, que tenho até hoje. Era solitário e individualista. Só tocava sozinho, não tinha banda, era totalmente inexperiente nesse sentido. Até que um dia, um conhecido meu, vocalista, me chamou para tocar com ele num estúdio no Rio Comprido.
Chegando lá, eu descobri que não sabia tocar praticamente nenhuma música inteira. A única coisa que eu sabia era improvisar solos de blues. O dono do estúdio pagou uma cerveja pra mim e me disse, com cruel sinceridade: você não toca nada. Aquela frase ficou ecoando na minha cabeça por meses, anos, e no fundo foi uma das principais razões da minha desistência da música. Eu já escrevia muito na época e decidi que seria melhor concentrar meus esforços na literatura.
Eram tempos difíceis. Meu pai fora demitido do emprego e havia criado o jornal de café, em sociedade com seu irmão, para tentar ganhar algum dinheiro. Todos trabalhávamos muito lá em casa. Eu era o faz-tudo. Tive que aprender diagramação na marra, porque não tínhamos dinheiro para pagar um diagramador. Lembro-me até hoje daquele programa Ventura, um primórdio do Page Maker, uma coisa absurdamente rústica.
O jornal era semanal, impresso na gráfica do meu tio. Mas não estava indo muito bem. Hoje sinto pena dos assinantes daquele jornalzinho de quatro páginas, cobaias de meus experimentos estéticos. A cada edição eu usava uma fonte diferente, ou melhor, eu usava várias fontes numa mesma edição. Meu pai era o redator do jornal, e gostava muito de escrever, escrevia mais do que cabia no boletim, então eu diminuía as fontes sem pensar no fato de que existia gente que realmente lia aquele troço. Um dia, usei fonte tamanho 6 para o editorial de uma página inteira.
No verão de 1995, viajei de férias para o nordeste. Eu vinha trabalhando como louco desde 1991 (ou seja, desde os 16), e meu pai entendeu que me convinha umas férias. Foram 35 dias de puro lazer, pegando busão pra lá e pra cá. Havia juntado dinheiro e pude me divertir bastante na Bahia, Sergipe e Alagoas. As coisas estavam relativamente baratas. Tinha uma pousada, em Lençóis, na Chapada da Diamantina, que cobrava 5 reais por dia. Essa viagem foi a prova da importância de umas férias de vez em quando para o sujeito ter uma idéia original. Na volta para o Rio, de ônibus, eu vinha com a cabeça a mil para ganhar dinheiro. Tinha vinte anos e muita disposição. Minha "idéia original" foi editar um tablóide. Convidei alguns amigos escritores, e fizemos um jornal de bairro, intitulado Daqui. Conseguimos anúncios e a edição se bancou. Lembro-me que nossa meta era um faturamento que permitisse lucros de 800 reais para cada um de nós. Chegou nem perto disso, se deu vinte reais foi muito. Mais um jornal que morreu na primeira edição. Resolvi aplicar a técnica para o Coffee Business, o jornal editado pelo meu saudoso pai.
Foi um sucesso absoluto, que nos deram alguns anos de prosperidade, até a crise do café e, mais tarde, a morte do meu pai, acabar com a boa vida. Entretanto, naquela época, todas as esperanças estavam em alta. A tendência declinante no número de assinantes se reverteu e chegaram pedidos de assinatura de toda parte do país. Eu imprimia o jornal na Tribuna da Imprensa, todo em preto e branco, pagando 80 reais por uma tiragem de 2 mil exemplares. 80 reais! Eu imprimia a matriz laser numa copiadora do centro, toda sexta-feira, levava pra casa e montava a boneca numa folha de cartolina.
No centro, enquanto esperava a matriz ficar pronta, sentava-me num degrau da estação do metrô da Carioca e escutava o Ademir tocando saxofone. O ponto do Ademir, durante muitos anos, era ali na Carioca, tocando para executivos, secretárias e empresários, que depositavam o dinheiro na caixinha do músico. Ele tocava a trilha sonora de Blade Runner como ninguém. Eu sentia-me então cheio de poderosos influxos poéticos. Já então procurava acumular em mim o máximo de poesia. Da mesma forma que outros acumulam dinheiro, eu acumulava poesia.
Comecei a viajar por todo o Brasil, atrás dos congressos de café, onde eu divulgava o jornal e vendia assinaturas. Era divertido. Conheci cidades como Patrocínio, Araguari, Uberlândia, Alfenas, Varginha, Três Pontas, em Minas; Marília, Espírito Santo do Pinhal, Garça, em São Paulo; Barreiras, na Bahia, e tantas outras. Tornei-me conhecido nos meios cafeeiros. Até hoje não consigo imaginar a impressão que eu podia causar, tão garoto, tão sonhador, no meio de tantos fazendeiros e exportadores. O pior é que eu era radicalmente diferente deles! Não só na idade, mas na forma de pensar, os gostos, as leituras, tudo. Era uma coisa tão estranha pra mim que, meio sem querer, criei quase que uma dupla personalidade. Havia o Miguel jornalista de café, sério e entendido em economia, e o Miguel poeta, boêmio e revolucionário. Lá pelos idos de 1996, fundei o Arte & Política, tablóide malucão, anarquista, com muita poesia e petardos libertários.
Chegando lá, eu descobri que não sabia tocar praticamente nenhuma música inteira. A única coisa que eu sabia era improvisar solos de blues. O dono do estúdio pagou uma cerveja pra mim e me disse, com cruel sinceridade: você não toca nada. Aquela frase ficou ecoando na minha cabeça por meses, anos, e no fundo foi uma das principais razões da minha desistência da música. Eu já escrevia muito na época e decidi que seria melhor concentrar meus esforços na literatura.
Eram tempos difíceis. Meu pai fora demitido do emprego e havia criado o jornal de café, em sociedade com seu irmão, para tentar ganhar algum dinheiro. Todos trabalhávamos muito lá em casa. Eu era o faz-tudo. Tive que aprender diagramação na marra, porque não tínhamos dinheiro para pagar um diagramador. Lembro-me até hoje daquele programa Ventura, um primórdio do Page Maker, uma coisa absurdamente rústica.
O jornal era semanal, impresso na gráfica do meu tio. Mas não estava indo muito bem. Hoje sinto pena dos assinantes daquele jornalzinho de quatro páginas, cobaias de meus experimentos estéticos. A cada edição eu usava uma fonte diferente, ou melhor, eu usava várias fontes numa mesma edição. Meu pai era o redator do jornal, e gostava muito de escrever, escrevia mais do que cabia no boletim, então eu diminuía as fontes sem pensar no fato de que existia gente que realmente lia aquele troço. Um dia, usei fonte tamanho 6 para o editorial de uma página inteira.
No verão de 1995, viajei de férias para o nordeste. Eu vinha trabalhando como louco desde 1991 (ou seja, desde os 16), e meu pai entendeu que me convinha umas férias. Foram 35 dias de puro lazer, pegando busão pra lá e pra cá. Havia juntado dinheiro e pude me divertir bastante na Bahia, Sergipe e Alagoas. As coisas estavam relativamente baratas. Tinha uma pousada, em Lençóis, na Chapada da Diamantina, que cobrava 5 reais por dia. Essa viagem foi a prova da importância de umas férias de vez em quando para o sujeito ter uma idéia original. Na volta para o Rio, de ônibus, eu vinha com a cabeça a mil para ganhar dinheiro. Tinha vinte anos e muita disposição. Minha "idéia original" foi editar um tablóide. Convidei alguns amigos escritores, e fizemos um jornal de bairro, intitulado Daqui. Conseguimos anúncios e a edição se bancou. Lembro-me que nossa meta era um faturamento que permitisse lucros de 800 reais para cada um de nós. Chegou nem perto disso, se deu vinte reais foi muito. Mais um jornal que morreu na primeira edição. Resolvi aplicar a técnica para o Coffee Business, o jornal editado pelo meu saudoso pai.
Foi um sucesso absoluto, que nos deram alguns anos de prosperidade, até a crise do café e, mais tarde, a morte do meu pai, acabar com a boa vida. Entretanto, naquela época, todas as esperanças estavam em alta. A tendência declinante no número de assinantes se reverteu e chegaram pedidos de assinatura de toda parte do país. Eu imprimia o jornal na Tribuna da Imprensa, todo em preto e branco, pagando 80 reais por uma tiragem de 2 mil exemplares. 80 reais! Eu imprimia a matriz laser numa copiadora do centro, toda sexta-feira, levava pra casa e montava a boneca numa folha de cartolina.
No centro, enquanto esperava a matriz ficar pronta, sentava-me num degrau da estação do metrô da Carioca e escutava o Ademir tocando saxofone. O ponto do Ademir, durante muitos anos, era ali na Carioca, tocando para executivos, secretárias e empresários, que depositavam o dinheiro na caixinha do músico. Ele tocava a trilha sonora de Blade Runner como ninguém. Eu sentia-me então cheio de poderosos influxos poéticos. Já então procurava acumular em mim o máximo de poesia. Da mesma forma que outros acumulam dinheiro, eu acumulava poesia.
Comecei a viajar por todo o Brasil, atrás dos congressos de café, onde eu divulgava o jornal e vendia assinaturas. Era divertido. Conheci cidades como Patrocínio, Araguari, Uberlândia, Alfenas, Varginha, Três Pontas, em Minas; Marília, Espírito Santo do Pinhal, Garça, em São Paulo; Barreiras, na Bahia, e tantas outras. Tornei-me conhecido nos meios cafeeiros. Até hoje não consigo imaginar a impressão que eu podia causar, tão garoto, tão sonhador, no meio de tantos fazendeiros e exportadores. O pior é que eu era radicalmente diferente deles! Não só na idade, mas na forma de pensar, os gostos, as leituras, tudo. Era uma coisa tão estranha pra mim que, meio sem querer, criei quase que uma dupla personalidade. Havia o Miguel jornalista de café, sério e entendido em economia, e o Miguel poeta, boêmio e revolucionário. Lá pelos idos de 1996, fundei o Arte & Política, tablóide malucão, anarquista, com muita poesia e petardos libertários.
Os bares adjacentes à Uerj foram minha verdadeira universidade. Era lá, em Vila Isabel, que fiz meu upgrade boêmio. Fechávamos todos os bares da Vila, começando pelo bar da Cris, o bar Loreninha, o Campanário, e aí tínhamos que fazer uma boa caminhada até a praça Vanhragem, já na Tijuca, onde ficava a parada final, um bar que reunia os derradeiros boêmios, vagabundos e viciados das redondezas. Bebia os últimos centavos e ia pra casa, bêbado, feliz e inocente. No dia seguinte, acordava sóbrio, triste e culpado. Demorou muito eu sentir uma ressaca sem culpas: esse progresso consumiu-me muitas horas de Nietszche, Henry Miller, Bukóswski.
Mas eu tinha uma vida diferente dos meus amigos. Eu frequentava a Biblioteca Nacional. Ficava lá às vezes o dia inteiro. Em casa, as influências paternas empurraram-me Euclides da Cunha, Balzac, Graciliano Ramos. Minha mãe tinha gostos mais açucarados: best sellers de todo tipo, apesar de também possuir uma vasta cultura literária.
Com dezessete, já escrevia possessamente muita poesia. Um dia, entreguei um poema em prosa para a Lia, amiga da minha mãe, que trabalhava no Espaço Cultural Sérgio Porto. Nessa época, o Chacal estava fazendo o seu Cep 20.000 no Sérgio Porto e trabalhava com um grupo de poetas muito bom, e que mais tarde se tornaram meus amigos: Wagner Santos, que atualmente é professor de história e pessoa muito séria e trabalhadora e finge não querer nada com literatura; Silvio Barros, que hoje mora em Florianópolis e tornou-se um escritor totalmente entregue à sua vocação, tendo lançado o excelente livro Poema Crime, vocês conhecem o Silvio de poemas e contos publicados no Arte & Política; e o Guilherme Lessa, hoje professor de violão, educador, ativista e pessoa de uma integridade e bondade impressionante, com o qual tenho contato mais frequente, e que também colabora com seus poemas para o Arte & Política.
Como eu ia dizendo, eu entreguei os poemas para o Chacal. Acho que o ano era 1994. Eu tinha dezenove anos e o Chacal telefonou pra minha casa, dizendo que tinha achado o poema maravilhoso, tinha publicado no zine que ele fazia na época (V de Verso) e que os poetas da oficina dele queriam me conhecer. O poema era tipo uma carta poética e tinha trechos assim: "A criação evola do meu ser como uma necessidade de continuar vivendo... a poesia escorre de mim como o sangue desliza pela face de uma criança ferida... ferozmente vou lutar para decifrar o mistério da tristeza que me devora...". Eu perdi esse poema. Talvez possa recuperá-lo se encontrar, um dia, um exemplar desse zine. Alguns dias depois, fui ao Cep e conheci os poetas supra-citados. Nessa época, escrevi o meu famoso poema "O fantasma da puta", que recitei em tantos lugares da cidade, inclusive no Cep 20.000. É um poema de valor mais oral, que me trouxe muitos dividendos artísticos, e com o qual eu ingressei, digamos assim, no mundo da poesia. Durante os vários anos em que eu parei de escrever poesia e só trabalhava, trabalhava, bebia, bebia, esse poema foi meu suporte artístico, ele me lembrava a mim mesmo, o poeta inquieto que ainda existia em mim.
4 comentários:
bonita peça memorialista. sou professora aposentada, sempre quis saber o que os alunos faziam quando não apareciam na sala de aula
já disse lá, digo agora aqui...vai ser um prazer tomar uma gelada contigo, meu véio...você me encontra nestes dois números: 33211938 e 99385303.
Noooossa miguelito... passou um filminho na minha cabeça...
bons tempos aqueles.
Abraços saudosistas da Rê
Renata maciel
o conto faz lembrar a trajetoria de qualquer poeta-leitor que derreter os olhos nas lavas vulcanicas dessas memorias.
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