Marginal Blues 1980

Imaginar que se passaram vinte anos... Pois digo a vocês, quando o sujeito não morre num lugar desses, ele se transforma. Afinal, é preciso sobreviver. No meu caso, não só me transformei como virei transformista. Claro que já tinha um DNA gay antes disso, porque esse tipo de coisa, creio eu, já nasce com a pessoa. Mas compartilhar uma cela com outros vinte e sete homens foi, talvez, o fator decisivo para a metamorfose completa. Da sexual, naturalmente, porque a mudança mental que se operou em mim se deve, essencialmente, ao ilustre senhor Dráuzio Varela e seu trabalho social aqui na prisão. Ele foi o idealizador da primeira biblioteca do Carandiru e eu era seu assistente no projeto. Depois fui encarregado pela organização de tudo, o empréstimo dos livros, a coleta das doações vindas de empresas, editoras, livrarias e até de escritores, empolgados com a perspectiva de criar uma ilha de cultura dentro daquele inferno dantesco – o projeto incluía aulas de literatura, português, história, filosofia, de tudo que pudesse facilitar ao preso a assimilação dos livros, que chegavam aos milhares.

Agora estou livre, quarenta anos de idade e uma experiência que nunca imaginei que possuiria há vinte anos. Eu, que era um garoto mimado, criado pela avó corujona, ignorante tanto em relação ao meu próprio sexo quanto à vida em geral, hoje contemplo o mundo do alto dessa colina, onde vim me esconder da polícia (sim, infelizmente, fui obrigado a fazer um último crime), sem ódio, sem rancor de espécie alguma, tranquilo, compreensivo. Nem da polícia tenho raiva. Pelo menos não enquanto eles não puserem a mão em mim novamente - e acho difícil que eles consigam porque esse é o meu melhor esconderijo. Se tivesse vindo pra cá em 1980 não teria sido preso. Mas aí também não teria me transformado, não teria chegado onde cheguei.

Hoje posso dizer que sou escritor. Embora não tenha livro publicado, sinto a paixão da escrita queimar dentro de mim. Por isso, tive que cometer esse derradeiro assalto, precisava garantir o futuro. Não posso simplesmente me empregar como office-boy e esquecer todos os sonhos. Ou montar uma banquinha de camelô e passar o dia vendendo biscoito enquanto qualquer idiotinha filhinho de bacana tá aí lendo os clássicos, estudando inglês e alemão, viajando à Paris, montando panelinha de literatura, com tempo sobrando pra pensar, escrever e coçar o saco, não necessariamente nessa ordem. Mais tarde tenho meus planos para com eles. Por enquanto, precisava apenas de uma coisa: dinheiro.

Alguns dirão que sou imoral, e por isso não tenho direito à glória literária, que nunca a sociedade irá aceitar um monstro (me chamaram disso nos jornais, acreditam?) que assassina a própria avó que lhe criou com tanto carinho e dedicação. Mas eu sei o que sou. Nietzsche me ensinou que a única moral que vale é a moral do forte.

Entretanto, não pensem, ao ler essa carta que envio para os jornais, que sou um desses psicopatas de filme americano, revoltado contra o sistema capitalista e disposto a explodir tudo. Não. Tenho meus planos, que infelizmente não posso contar, para que eles sejam bem sucedidos. Mas eles não incluem nenhum atentado terrorista, nem outros crimes de espécie alguma. O último foi esse mesmo, que fui obrigado a cometer em vista das circunstâncais. Minha avó, que sempre foi muito boa comigo quando eu era criança, tornou-se uma megera avarenta após minha prisão. Guardava jóias no quarto enquanto eu quase morria de fome no xadrez – é, porque não é fácil engolir a gororoba nojenta que eles nos serviam por lá. A rapaziada mais aprumada mandava trazer comida de fora.

Gostaria de adiantar somente isso: vou sumir do mapa por uns tempos, mas não esqueçam meu nome: Virgulino Candeias de Araújo, ou simplesmente Virgulino Araújo, como pretendo assinar meus livros de agora em diante. De vez em quando, enviarei uns textos por email para revistas, sites, jornais. Meu ser físico continuará ausente por alguns anos, quiçá por toda a vida.

Mudei muito. Naquela noite quente de 1980, quando fui preso, eu era apenas um garoto inconsequente escutando blues no toca-fita de um fusquinha velho - cujos donos eu havia matado a facadas. Hoje sou um homem maduro, consciente dos fatos sociais e históricos que marcaram o país e o mundo. Hoje tenho cultura e experiência, não serei pego com tanta facilidade.

Aguardem, meu amigos, em breve mandarei notícias.

Factotum

Fui assistir Factotum, o filme de Bent Hammer, baseado no romance homônimo de Bukowski. Que me perdoem, mas não achei tudo isso. Achei a trilha sonora fraca, e as cenas muito repartidas, sem uma linha narrativa que as conectassem melhor. Tal conexão poderia ser feita através justamente da música e da fotografia, que poderiam dar uma densidade mais poética ao filme, e mais condizente à atmosfera bukoswkiana. Também faltou, a meu ver, um certo toque de humor e sarcasmo característicos do velho bêbado. O filme é melancólico o tempo todo. Com musiquinha triste e tudo. Tá certo que Factotum é meio triste, se comparado a outros livros do Buk, mas também tem humor, e no filme esse item deveria estar presente.

Para completar minha chatice, também não gostei dos atores. Matt Dillon não convence como Buk. Falta-lhe poesia, personalidade e humor. A Jan é romântica e boazinha demais - no próprio filme é sugerida a sua infidelidade e problemática, mas não é mostrado. A Laura não convence como bêbada e me parece bonitinha em demasia, assim, excessivamente bem tratada para uma mulher "de botequim". Não digo que deviam usar uma atriz feia, mas podiam usar um figurino e maquiagem um pouco decadentes. Ficaria mais verossímil.

Os episódios são fiéis ao livro. Fiéis demais, a ponto de algumas cenas parecerem totalmente desnecessárias, porque tinham algum sentido no livro, mas não na telona. Dá a impressão de uma repetição mau feita do texto literário. Sei lá, fica meio artificial.

Bem, é o que achei. Me amarro no Buk e acho que o Bar Fly (sofrivelmente traduzido para Condenados pelo Vìcio) é melhor filme sobre o velho. Cronica de um amor louco também é muito bom, com um toque mais poético, mais lírico.

Factotum, no entanto, não é de se jogar fora. Para quem gosta da obra do Buk, vale a pena assistir. Talvez eu esteja sendo chato demais, confiram vocês mesmos. Pretendo ver esse filme mais uma vez, em dvd, bebendo um uisquinho vagabundo (ou caro, a depender do destino), e quiçá terei uma melhor impressão.

O café da minha casa & matricídio em São Paulo

Voltei em casa para tomar um café. Não vou beber café de botequim. Queria ir ao banheiro também, mas é melhor não falarmos nisso. Não é elegante falar de nossas anti-estéticas necessidades fisiológicas. O fato é que fiquei excitado e sempre que isso acontece o meu intestino funciona mais rápido. Talvez seja uma coisa saudável. A excitação gera um desejo instintivo de auto-limpeza. Enfim, voltei em casa para tomar um café e fazer aquilo que todos fazem. O motivo da excitação é que, finalmente, encontrei uma saída para um problema que vinha me atazanando há tempos.

Não consigo mais escrever em casa, por vários motivos. Escrever literatura. O ambiente doméstico obstrui-me a inspiração, principalmente porque trabalho em casa. Sou jornalista especializado em agribusiness. Passo horas pesquisando notícias e estatísticas na internet, que compilo, sumarizo e publico no site-jornal para o qual trabalho. Quando termino o batente, ainda tenho a mente cheia de números e informações. O computador à minha frente não me desperta aquele sentimento de mistério e felicidade que considero tão importantes para a inspiração. A sala bagunçada, a mesa cheia de anotações, o chão empoeirado, a mal organizada estante de livros, a cozinha americana - uma pia embutida na parede - são as mesmas imagens de sempre e, por algum motivo, ajudam na paralisia e torpor aos quais meu espírito parece estar preso.

A saída é escrever nesta lan house, que oferece preços promocionais - duas horas por cinco reais. Já disse ao atendente desligar o som alto, explicando-lhe que, apesar da maioria vir aqui só para entrar em orkut e conversar em msn, alguns vêm para escrever e precisam se concentrar.

Pedi um computador com headfone e achei uma boa rádio online, no site da TVcultura. Ainda não é a ideal, queria mesmo uma rádio com blues antigos, mas não quero perder minhas duas horas procurando. Mandem-me sugestões, por favor.

Devidamente instalado, posso dar livre curso às minhas divagações. Gostaria de comentar o recente caso do professor Geraldo Barbosa, que assassinou a própria mãe, num bairro de classe média da capital de São Paulo. A vítima, Zilda Barbosa, tinha sessenta e três anos, morava no mesmo prédio e vinha, diariamente, à residência do filho cuidar dos afazeres domésticos. Era assim desde que Geraldo separou-se de sua esposa, que foi morar em outra cidade.

Nesse dia, Geraldo acordou por volta de meio dia e encontrou sua mãe na cozinha. Por alguma razão, a presença dela irritou-o profundamente. Houve discussão, ela chamou-lhe fraco, incapaz de ter uma mulher. A senhora dizia isso de costas, enquanto cortava legumes. Geraldo nem aparentava tanta fúria; tinha uma expressão fria, ódio contido. Pegou a faca numa mesinha e atacou-a por trás. Repetiu o gesto três vezes. Ficou parado alguns minutos, contemplando o espetáculo sangrento. Aí resolveu fazer uma coisa ainda mais monstruosa. Abriu o armário, pegou um frasco de álcool e despejou sobre a vítima, que caíra no chão, gemendo e contorcendo-se. Riscou um fósforo e pôs fogo.

Sentiu sono. Chegara em casa pela manhã, depois de passar a noite numa festa, com seus alunos. Geraldo tinha quarenta e dois anos, mas sentia-se com trinta. Desde antes do divórcio, estava sempre namorando uma de suas alunas.

Interfonou para o porteiro, pediu que chamasse o bombeiro. Voltou ao quarto, indiferente aos gritos da velha, deitou-se na cama e dormiu. Teve um sonho agitado, no qual abria uma porta e saía para um jardim ensolarado, muito bonito, com flores de todos os tipos e cores. No entanto, havia algo de maligno e violento, pois era guardado por homens armados com metralhadoras. Sentia uma alegria enorme, e medo também. Apesar da luz que banhava o jardim, o sol, quando olhou para cima, era negro. Um astro negro no meio de um céu azul, que, no entanto, irradiava luz amarela, solar. Uma menina negra, de uma magreza cadavérica, saiu de trás de uma árvore e aproximou-se dele, sorrindo. Por alguma razão, ele tentou fugir, mas não conseguiu mover nenhum músculo do corpo. A negrinha correu até ele, olhos fixos no pênis do homem, que só agora conscientizou-se de que estava nu. Ela abocanhou-lhe o órgão, chupando-o sofregamente, gemendo. De início com nojo, ele não pôde evitar, contudo, a ereção. Ela continuou chupando até ele gozar. Quando terminou, a garota encarou-o e ele viu, aterrorizado, o rosto de sua filha!

Alguém sacudia-lhe o corpo, ordenando que acordasse. Abriu os olhos e viu um homem corpulento, de calça jeans, camisa social e gravata.

- Senhor, acorde! É a polícia!

Urubus não têm lei

Segue abaixo a minha última participação na revista Bagatelas, da qual não faço mais parte por uma decisão pessoal. Minha coluna não existe mais, portanto o texto abaixo só pode ser lido aqui. Desejo toda sorte e sucesso à revista e convido meus leitores a virem me visitar sempre por estas bandas.

Sou absolutamente contra o oba-oba. Claro que me aborreço muito com certo predomínio do pós-modernismo-joyciano-pilantra. Consequentemente, tenho me alegrado em ver as bases deste movimento ruírem aos poucos, de forma mais lenta do que eu gostaria, mas irreversivelmente. Pelo menos, prefiro acreditar nisso.

Literatura virou festinha? Agora tão criando uma faculdade de escritor lá no sul que vão ensinar até como dar entrevista... O mais preocupante é que, no fundo, a proposta é absolutamente coerente com os rumos que o segmento vem seguindo nos últimos tempos. Enfim, o problema no Brasil, blá blá, é a falta de leitores. Daí que ficamos reféns de meia-dúzia de intelectualóides e da ditadura dos concursos marmelada.

Ah, reclamar não adianta nada. A gente sabe que a vida é dura, e talvez as coisas devam ser assim mesmo. Quer moleza, dizia Chacrinha, senta no pudim. O fato é que eu fico chateado em ver que alguns dos que estão ingressando no mundo da literatura, inclusive amigos meus, começaram a deixar a discussão estética em segundo plano.

Em nome de uma suposta busca da profissionalização do escritor, estão esquecendo que isso só faz sentido se a literatura for o interesse central de suas vidas. Isso implica, naturalmente, em ler. Discutir o que leu. Perguntar. Pesquisar. Informar-se constantemente sobre o que vem sendo feito de novo no país e no exterior. Respeitar os que estão há mais tempo na luta, não pela idade avançada, mas pela extensão e repercussão de suas obras. Se não for assim, então não vale a pena.

Ganhar dinheiro com literatura? Ah, não me façam rir. Ser escritor é praticamente assinar atestado de pobreza. Conformem-se. Arrumem empregos que lhes permitam algum tipo de liberdade. Negociem com a mamãe uma mesada vitalícia. Encarando a literatura desta maneira leviana, vocês não somente não contribuem em nada para a profissionalização do escritor; pelo contrário, desmoralizam a literatura.

Querem que eu seja humilde? Então tá: parodiando o Veríssimo, eu sou o cara mais humilde do mundo. Me acuso, peço desculpas. Faço merda. Quem não faz? Quem atirará a primeira pedra? Um escritor deve ser leal apenas a si mesmo, e isso já é muita coisa. Elogio depois xingo, entro em contradição. Sou dialético, porra! O fato de ser simpático com as pessoas nem sempre é uma qualidade. No meu caso, é uma espécie de covardia congênita. Herdei essa merda. Tenho medo de cachorro e de magoar os outros, e a impressão de que meu talento existe à revelia da simpatia. Um dia ainda me livro disso, como já me livrei de tanta coisa em minha vida. Serei um filho-da-puta franco, cruel, mas de consciência tranquila.

Literatura é compromisso. Com a leitura, sobretudo. O escritor compete com dois-três mil anos de intensa produção literária. Como poderia ter a mínima pretensão de ser escritor se não procurasse dialogar com todo esse patrimônio? Evidentemente, isso será possível apenas se eu ler, reler e discutir todo maldito clássico, toda maldita obra contemporânea. Se um escritor não pensa assim, se acha que literatura é frequentar Flip, Flap e tomar umas cervas na Mercearia São Pedro, então, meu caro, definitivamente... boa sorte. O segredo é ler e sofrer, disse Dostoiésvki, respondendo ao jovem aspirante a escritor, que lhe pedira a fórmula de como escrever bem.

Cara, literatura não é um sonho bom. É barra pesada. Sofrimento, renúncia. Ser escritor, no início, é aguentar no lombo a consciência de ser um fraco que escreve mal pra caralho e não possuir nada além de uma ambição desmesurada e um ego doente. E trabalhar, trabalhar. Sondar as profundezas de seu próprio desespero. Aceitar a dor enquanto condição obrigatória para uma incerta evolução. Um dia, aprende-se a escrever, de forma singular e universal, e percebe-se que o sofrimento não diminuiu, pelo contrário. Não ganhamos dinheiro. O ego continua doente, a ambição cresceu. Que ganhamos? Satisfação íntima? Um pouco de dignidade?

Paneros & De Haro

Seguindo a tradição blogueira, faço esse post influenciado pelo blog do Douglas Kim, em cujos comentários se citou um dos poetas homenageados neste bar virtual. Ao fim, transcrevo poesia do Rodrigo De Haro, grande poeta catarinense, cujo livro Amigo da Labareda me foi enviado pelo ex-carioca e presentíssimo poeta e amigo Silvio Barros. Por fim, reservo-me o prazer de fazer a introdução léxica, com todo respeito, como diria o Anselmo Góes, da sulíssima (ia dizer gauchíssima, mas não quero causar conflitos diplomáticos com os catarinas) palavra "vasca".

LA POESÍA DESTRUYE AL HOMBRE...

La poesía destruye al hombre
mientras los monos saltan de rama en rama
buscándose en vano a sí mismos
en el sacrílego bosque de la vida
las palabras destruyen al hombre
¡y las mujeres devoran cráneos con tanta hambre
de vida!

Sólo es hermoso el pájaro cuando muere
destruído por la poesía.

"El último hombre" 1984


*


A poesia destrói o homem

A poesia destrói o homem
macacos pulam de galho em galho
buscando em vão a si mesmos
no sacrílego bosque da vida

as palavras destróem o homem
e as mulheres devoram crâneos com tanta fome
de vida!

Só é belo o pássaro quando morre
destruido pela poesia

"El último hombre" 1984

Leopoldo María Panero
Tradução livre por Miguel do Rosário


*


Festa

A comida dos santos
levo num barco
faço parte do hieróglifo.

Levo a comida dos santos
coberta por linho puro
destroços para caranguejos
Assim o poema
é comido na vasca.

A ilusão é bela
porém a pedra
ainda é mais.

Com a ferramenta parca
construo meu barco.
O rio escuro
fica pintado no muro.


(Rodrigo De Haro, Amigo da Labareda, 1991, Massao Ohno Editor)


*
Aurélio
vasca
[De or. incerta.]
Substantivo feminino.

1.Grande convulsão:
“Quem minha angústia suportar, prefira / A morte, redentora, à desventura / De não poder, nas vascas da loucura, / Distinguir a verdade da mentira.” (Martins Fontes, Verão, p. 119).

2.Ânsia excessiva; estertor:
“uma bala vara o peito de Juanillo que cai e, nas vascas da agonia, rolando no chão, aproxima-se da defunta” (Érico Veríssimo, México, p. 128).

O que é bom a gente prestigia



É isso mesmo, o que é bom a gente tem que dar valor e prestigiar. A Mercearia São Pedro tem se tornado, cada vez mais, um espaço importante de encontro e divulgação de literatura contemporânea. Mais que isso, se tornou um foco irradiador de arte, amizades, boas idéias, antigos sonhos e, sobretudo, muita alegria (no bom sentido, é claro, o que envolve inteligentes pitadas, nem sempre calculadas, inevitáveis diria, de melancolia e pessimismo. Afinal, arte não é comédia ou comitê eleitoral do partido republicano).

Enfim, tudo isso pra dizer que estou feliz com o lançamento da Revista da Mercearia, iniciativa, ao que parece, do Marquinhos, dono da famosa birosca, e do Joca, frequentador assíduo que, pelo jeito, está encontrando alternativas para pagar sua dívida no bar (preciso dizer que é brincadeira?).

A galera aqui do Rio tem prestigiado a Mercearia. O lançamento da segunda edição da Bagatelas, nossa revista de contos, será feito por lá, no dia 15 de julho. No início do ano, estivemos por lá e fizemos nossos contatos iniciais.

Sabe porque eu fico tão feliz com a iniciativa merceárica? Eu moro num bairro que tem tanto bar, birosca, botequim, pé sujo, fim de noite, que, se cada um deles disponibilizasse um espacinho para um sebo, uma estante de livros, isso aqui seria o local mais literário do planeta. Por enquanto, infelizmente (ou felizmente, por um outro ângulo), somente a Mercearia concilia o fogo da literatura ultra-contemporânea com o gelo das louras meretrizes - aquelas nas quais todos passam a mão e põem na boca.

Não poderei estar presente, fisicamente, na festa de lançamento da revista, marcada para hoje, dia 7 de junho, na própria Mercearia. Mas devo projetar meu espírito, que poderá, portanto, ser entrevisto vagando por entre as estantes e bebericando no copo dos outros.

O segredo do Homem

"Os que estavam à mesa começaram a dizer então: Quem é este homem que até perdoa pecados? ", Lucas 7, 49



Dentre as inúmeras lendas que cercam a vida de Jesus, uma das mais escondidas pela Igreja é a de que o Filho de Deus teria sido um grande boêmio. Não é polemismo barato. Não se trata somente do hábito de beber diariamente quatro ou cinco garrafas de vinho. Cristo seria também um poeta, um bon vivant, um artista! Essa ladainha do Dan Brow sobre Cristo transar com Madalena e ter um filho, que hoje horroriza setores reacionários da Igreja, é uma versão infantil da verdadeira história. Como disse a francesa, antes de baixar a calcinha: prepare-se, le chose é bem mais cabeluda do que imaginas.

Na China, essa história é conhecida e encarada com naturalidade. Afinal, Buda foi, em sua juventude, o maior playboy de todos os tempos. No Ocidente, porém, o judaísmo moralista tratou de distorcer o significado profundamente libertário da vida de Cristo, erguendo em torno de sua biografia um muro de castidade e inocência. A idéia da gravidez sem sexo de Maria é uma das lendas mais carolas e inverossímeis da mitologia mundial. Daí para a virgindade de Jesus foi um passo natural, apesar do absurdo da coisa. Incrível é como a humanidade tem sido engambelada há mais de dois mil anos.

A lenda diz que Jesus barbarizava as noites de Jerusalém, cantando, bebendo e dançando, participando de festas e orgias... Numa dessas, conheceu Madalena, a mais bela prostituta da Palestina, que apaixonou-se perdidamente pelo jovem de longas melenas, olhos brilhantes e lábios sempre coloridos pelo vinho.

O amor de Madalena, apesar do bem que proporcionou à alma inconstante de Jesus, trouxe-lhe também a sífilis. Tal fato é que teria motivado a tentativa de apedrejamento da meretriz, por parte de pretensos "amigos de Jesus". Madalena foi salva pelo corajoso amante, que enfrentou os atacantes gritando-lhes a famosa frase sobre a primeira pedra (conta-se que um engraçadinho, neste momento, lançou um pedra que atingiu o abdômem de Jesus; e que este revidou furiosamente, esmagando-lhe o crânio com uma pesada tora de madeira).

Jesus tinha trinta anos quando contraiu a doença, e os médicos lhe deram poucos meses de vida. Diante da proximidade da morte e proibido de fazer sexo ou exceder-se no vinho, Jesus aproxima-se da religião e decide tornar-se um profeta.

Consultando os sábios de sua Seita, Cristo descobre que havia uma planta que poderia curar-lhe a terrível doença. Era um derivado da papoula, ou da cannabis, coisa assim, muito popular entre os jovens da elite judaica. Não tendo dinheiro para adquirir regularmente o produto, Cristo começa a fazer tráfico da planta para bancar seu próprio consumo.

A atividade rendeu-lhe gordos lucros; em pouco tempo, estruturou uma poderosa organização. Patrocinava projetos sociais e religiosos, que lhe renderam a fama de Santo, além de úteis para comprar o silêncio da comunidade.

Os supostos milagres de Cristo seriam nada mais que o resultado de seus conhecimentos científicos. Aprendera como curar doenças com seu pai, José, membro da Seita dos Essênios, uma espécie de Maçonaria, cujos integrantes estudavam literatura, ciências, religião e medicina.

Os romanos haviam proibido expressamente o consumo da referida erva entre os judeus, pois queria-os dóceis, alienados e submissos, e a planta induzia seus usuários à reflexão, provocando debates filosóficos e políticos que, invariavelmente, produziam projetos de rebelião.

Judas Iscariotes era um viciado decadente, que se aproveitava do bom coração de Jesus para adquirir-lhe a droga sem pagar. A dívida de Judas cresceu e Cristo, mesmo sendo o bom cristão que era, ameaçou-lhe dar uma surra caso não a quitasse. Há relatos de que o discurso de Jesus sobre dar a outra face para quem lhe estapeia foi uma tirada sarcástica contra Iscariotes, pronunciada logo após o sonoro ressoar de um tabefe na parte esquerda do rosto do X9 mais famoso do Ocidente.

Até que um safado qualquer (quiçá o próprio Satã) observou a Judas que, delatando Jesus, poderia não só ganhar uma boa recompensa (que usaria para comprar mais drogas) como se livraria de ser espancado pelo Santo Credor, o qual, apesar de Santo, bem sabia aplicar um corretivo num pilantra caloteiro.

Judas gostou da idéia e traiu seu Fornecedor, dedurando-o às autoridades competentes. Jesus ficou sabendo da trairagem e, sem ter como escapar, tratou de fumar grande quantidade de erva, para evitar a dor física nas tradicionais sessões de tortura.

No momento de carregar a cruz, um de seus discípulos conseguiu passar-lhe uma boa dose de outro estimulante, o que lhe permitiu arrastar o peso até o monte Calvário. No momento da crucificação, enquanto alguém distraía os guardas, aplicaram-lhe outra dose, para que não sentisse as dores dos pregos sendo enfiados em seus pés e mãos.

Todo esse coquetel fê-lo entrar em coma, após algum tempo, levando os guardas a pensarem que estava morto e a liberarem o corpo para ser enterrado. Quando o efeito passou, Jesus, como se sabe, saiu do caixão e foi ao encontro de seus amigos.

Conta-se que, nesta ocasião, ele teria combinado com seus discípulos que o mais seguro era que romanos e filisteus acreditassem mesmo em sua morte.

Jesus então partiu para o exílio na Índia, onde terminou o resto de seus dias. Dizem as más línguas que ele teria se convertido ao budismo...


(conto publicado na revista impressa Bagatelas, número 2, lançada esta semana. O conto vem aqui com uma ou duas correções. Portanto, os que não tem acesso à revista impressa, poderão ler o conto com alguma vantagem)

Seguidores

 
BlogBlogs.Com.Br