Expectativa com Crime Delicado

Hoje tem Crime Delicado, do Beto Brant, baseado no livro de Sergio Santanna, no Odeon, às 21:30. Imperdível. O roteiro teve colaboração do Marçal Aquino. Eu já li o livro do Santanna, é interessante, se passa inteiramente em lugares conhecidos do carioca.

Acabei de assistir Vida sobre rodas, um documentário despretensioso, filmado aparentemente em câmera digital, sobre brasileiros que ganham a vida usando carrinhos, bicicletas, patins, etc. Na maioria são pequenos vendedores ambulantes ou artistas mambembes. Incrível ver como pessoas com vida tão difícil conseguem transmitir tanto otimismo e tanta esperança pela vida e com o futuro. Como conseguem ser tão criativos, muito mais do que 90% dessa gente que faz MBA em marketing. Eu comparo a toda essa classe média pessimista, egoísta, sempre catastrófica, e chego a conclusão que o pessimismo é um luxo de ricos. O povo, quando é pessimista, vira cachaceiro ou ladrão. "Esse cachê maravilhoso de vocês, o aplauso", diz o músico de rua, que vende seus cds independentes e ganha a vida. Bonito filme, apesar da qualidade um pouco sofrível da imagem.

Ontem, vi um curta-metragem muito interessante "Manual para atropelar cachorro", de Raphael Primo. Filme pungente, estética bem Rubem Fonseca, lindamente urbanóide, com fotografia de alto nível. Peca talvez pelo americanismo exagerado, que dá um tom desajeitadamente inverossímel. Fala de um rapaz que trabalha numa locadora de vídeo que resolve atropelar cães de rua. Vou lá assistir outro filme.

Filme medonho

Ontem vi o pior filme da minha vida: Cafundó. Arrancaram dinheiro da Petrobrás para fazer um longa-metragem confuso, grotesco, absurdo, pretensioso, caro e mortalmente chato. Lamentável. E olha que tenho grande admiração pelo Paulo Betti, diretor. Mas, desta vez, ele vacilou. Ou melhor, quem vacilou mesmo foi a Petrobrás, que deveria ter sido mais rigorosa. O filme deve ter custado uma fábula. E o resultado é menos que pífio, é deprimente.

Ainda não dei sorte no Festival. Quer dizer, tirando os filmes de amor, muito divertidos, como o Amor Idiota e Bonecas Russas, para os quais sou displiscentemente arrastado pela Priscila, e o Vinicius, ainda não vi nada que prestasse.

PS: O AP e meu email estão novamente ativos.

Últimas

Prezados, o site do Arte & Política está fora do ar por vacilo nosso. Em um ou dois dias, estará de volta. Esquecemos de pagar o domínio, mas não se preocupem, o trocado de R$ 30,00 já está garantido. Estou vendo os filmes do festival, mas até agora não vi nada muito interessante, por isso não me animei a escrever por aqui. Mas descobrir, ao menos, que não sou crítico (graças a Deus). Desgosto de filme chato. Já me retirei de algumas sessões insuportavelmente enfadonhas. Isso não significa que eu só goste de filme de ação, ou que tenha preconceito com filmes mais intelectuais. Pelo contrário, adoro filmes intelectuais, mas pra mim há uma diferença profunda entre um filme intelectual e um filme chato. O que posso adiantar é que tem muito cineasta confundindo isso. Confunde tempo com marasmo, silêncio com tédio. No cinema, existem cenas lentas e cenas pasmacentas. Estou querendo ver Cidade Baixa, brasileiro, que está sendo muito cotado, e o Arido Movie, do pernambucano Lirio Ferreira. Cinema, aspirinas e urubus, é outro nacional que está na minha lista. Ah, tem ainda o Soy Cuba, que vem antecedido do curta de Renato e Lula, dois caras gente-boa que eu conheci na adolescência. O Festival vai durar ainda mais uma semana e o melhor está por vir.

De minha temporada em Salvador, e a noite passada com os poetas Jorge Ferreira e João Filho (links ao lado), mais uma pérola encontrada na memória daqueles vertiginosos papos. "O pior idiota é o idiota que lê", foi a máxima rodriguiana que eu inventei sob inspiração cevática, que gerou risos descontrolados dos poetas ao redor.

Bahia dos poetas insólitos

Para os baianos retados Jorge Ferreira e João Filho


Saltamos do ônibus, a fria chuva nos pega desprevenidos, dois bichos trêmulos voltando para o muquifo bagunçado na rua do Riachuelo, Rio, após três dias na Bahia.

Como foi? Salvador nos acolheu meio sem-graça. Famélicos, malandros e hipongas descerebrados agora dominam um pelourinho decadente.

- quer comprar uma fitinha? pergunta o cabeludo de dentes estragados e olhos maus.

Nem respondo, irrita-me aquele sorriso falso, tipo: mais um turista otário.

- filho-da-puta, ele murmura e continua andando, atrás de novas vítimas. É assim, se você não comprar a porra daquela fitinha, você é um filho-da-puta. Não importa se você não tem um puto no bolso, os caras acham que você é obrigado a comprar. Eu vi um outro cara, pelo mesmo motivo, chamar uma turista espanhola de piranha.

Assim a cidade degenera, o turismo e seus empregos escorrem pela calçada, um perfume de amônia em toda parte, tudo definha (ou cresce?) ao onipresente som da capoeira.

Mas... sei lá, pensando umas coisas, encontrando os poetas no Mercado dos Peixes, a esperança rompe-me pelo estômago como um alien nascendo. João é Filho de quem? De qual ramo dos Ferreira, veio Jorge? De Lampião? Eles riem com minhas palhaçadas pós-cinco cervas.

- Jorge, tira a foto aí do Miguel do Rosário, bêbado, imitando Kafka, ri João.
- primeiro eu entro no seu blog, diz Jorge, depois no meu.
- seu blog é bonito pra caralho, diz João.

Estou feliz com o novo emprego, mas apreensivo com o fim da vadiagem. O futuro me dá um abraço sufocante, e vejo a lua tornar-se rubra, ou antes, verde, como sangue de políticos, mais preocupados com ideologias bolorentas que projetos. No fundo, todas as coisas estão ligadas, por exemplo, Ulisses, de Joyce, é o maior engodo da literatura universal. Concordamos, os três poetas e a editora de revista ali presente: uma coisa tão absurdamente chata não pode ser um clássico.

Debatemos, brevemente, sobre as desgraças de um escritor duro no Brasil.

- é a estética do perrengue, filosofa João e lembra, anti-saudoso, dos rolos de arame que tinha que descarregar do caminhão para dentro do armazém, aquele mesmo armazém em cujo balcão rabiscou um delirante e Encarniçado romance.

O que só lembrei mais tarde foi aquele dia, em São Gabriel da Palha, Espírito Santo, em que andei três quilômetros com uma mala de oitenta ou noventa quilos no lombo. A gente sofre, a gente vive, a gente sonha.

- Ainda somos iludidos, conserta Jorge, assim que chego e despejo, sem travas, as angústias mais recentes.

- Philip Roth diz que a literatura vai acabar por falta de leitores, eu anuncio, sombriamente. E olha que ele fala isso lá nos States, onde qualquer escrevinhador de bula de remédio tem sua féria garantida.

A verdade é que, de vez em quando, eu quero ser Stephen King para adultos. Mas estou mais para um Lima sem talento.

O dia raiou, a gente lendo em voz alta e contemplando a vista, eu proferindo caóticas literatices e com saudades do blog da Mara Coradello, e da própria, que foi morar na cidade das três pontes.

Posso dizer: tenho amigos lá no norte, dois sertanejos brabos e talentosos. Ah, Bahia, enquanto afundas em agonia, resgatamos a alquimia, de transformar a noite em dia, com doses cavalares de cerveja, e poesia...

Pois é...

O festival de cinema rolando, eu com credencial de imprensa pra ver qualquer filme e tive que vir pra Salvador! Eu adoro Salvador, saiba-se bem, passei muitas férias nesta cidade, onde tenho parentes, mas terei que interromper por dois dias minhas críticas de cinema, que eu havia prometido escrever para os leitores deste blog.

Em tempo, pela mesma razão, a edição semanal do AP também vai atrasar alguns dias.

Vinicius continua seduzindo

Vinicius e Tom Jobim


Ontem teve início o Festival do Rio de Cinema, com a exibição do filme Vinicius, no Odeon. O público divertiu-se muito, sobretudo com as diferentes interpretações das músicas de Vinicius e com os depoimentos divertidos de Edu Lobo, Toquinho, Caetano Veloso, Maria Bethania, Gilberto Gil, Ferreira Gullar e outros. Para vocês terem uma idéia da hilaridade do negócio: Chico Buarque, reunido com outros grandes nomes da música brasileira, conta uma conversa que teve com o Vinicius, já ao final da vida deste. O papo que rolava era sobre reencarnação. O Chico pergunta ao poeta de que jeito ele gostaria de reencarnar, caso esse troço existisse. Vinicius responde que gostaria de reencarnar com o mesmo corpo e com a mesma cabeça, depois pára, pensa um pouco e completa: "mas com o pau um pouquinho maior". Todos caem na gargalhada.

O documentário, dirigido por Miguel Faria Jr, é daqueles que vale a pena ter em casa para assistir tomando um uísque, e digo isso em homenagem ao Vinícius, que chamou o uísque de "melhor amigo do homem, o cão engarrafado". Além do valor como entretenimento, o filme é importante para resgatar um momento da história brasileira. Mais que isso: para resgatar um momento da nossa personalidade coletiva. Há traços na personalidade de Vinicius que constituíam um pouco o Brasil daqueles anos 50 e 60, pré-ditadura. Uma ingenuidade, uma generosidade sem limites, uma paixão desmedida pela cultura popular, um altruísmo permanente. Chico Buarque é o que explica melhor essa coisa. Segundo Chico, Vinicius nunca ligou pra dinheiro. Quando começou a ganhar bem com a venda de suas músicas, enchia os bolsos de cédulas, entrava nos restaurantes e pagava tudo pra todos. Seu apartamento tinha sempre um estoque inesgotável de uísque e a porta estava permanentemente aberta para seus amigos e convidados.

Chico ressalta que esses traços de personalidade representam o oposto de tudo que vivemos hoje, não apenas no Brasil, mas no mundo. "Não sei onde o Vinicius poderia se encaixar no mundo de hoje", diz Chico, saudosista. "Hoje, há esse pragmatismo, esse interesse", observa o compositor. Em outras palavrás, Chico explica, que não há mais aquele viver por viver, aquela entrega total ao amor, à arte, à amizade, à vida, um tempo romântico que penetrou ditadura adentro através de pessoas como Vinicius.

Tenho pra mim, ainda, que esses valores estão ligados a uma classe que vivia seus últimos momentos de bonança. Até os anos 70, essa classe média alta tinha o monopólio da alta cultura brasileira e dos bons empregos, sobretudo do setor público. Desde os anos 60, o povão, aí compreendendo setores mais humildes da própria classe média, vinha batendo às portas dos bons cargos públicos. A partir dos anos 70 e 80, essa porta é arrombada.

O filme conta um pouco essa história, esse estertor dourado de uma classe privilegiada, uma zona sul carioca ainda não acossada pelo medo das favelas e o terror do desemprego. Uma classe de proprietários que gastou a herança de séculos em alguns anos de boemia.

Ferreira Gullar dá um depoimento emocionado sobre Vinicius: "lembro sempre do Vinicius rindo, alegre. Ele era um cara que elevava o nosso astral. Acho que a força dele estava aí. Eu gosto disso. Tem gente que gosta do pessimismo. Eu não. Sabe porquê? Porque eu acho que a vida é uma invenção. Se você quer inventar pro ruim, você inventa. Se você quer inventar pro bom, você inventa. Eu quero inventar pro lado bom da vida. Esses escritores que dizem, ah, a verdade da existência é terrível! Eu acho Beckett, por exemplo, um chatólogo! O sujeito desses pode até ganhar o Nobel, mas vai continuar sendo um chato!"

Vou lá ver outros filmes.

Festival de Cinema começa hoje


Começa hoje o Festival do Rio de cinema. Lembro aos leitores, mais uma vez, que meu plano é fazer uma crítica de todos os filmes que assistir. Consegui credencial de imprensa e poderei ver todos os filmes que eu quiser. Hoje é a abertura do evento, com o filme nacional Vinicius. Amanhã, começa a maratona. O site do festival é aqui.

O vale dos poemas perdidos


Carlos Vergara

Aos dezesseis, eu queria mesmo era ser guitarrista. Meu pai havia me dado uma guitarra de qualidade razoável. Não tão boa quanto a Fender, mas razoável, e eu troquei a flauta transversa por um pedal, o que foi uma troca idiota, eu nunca fui bom negocista... Meus amigos achavam que eu tinha um grande talento. Eu improvisava solos à la Hendrix, meu ídolo. Cheguei a estudar bastante, as escalas, um pouco de teoria e o escambal. Mas eu tinha um defeito terrível, que tenho até hoje. Era solitário e individualista. Só tocava sozinho, não tinha banda, era totalmente inexperiente nesse sentido. Até que um dia, um conhecido meu, vocalista, me chamou para tocar com ele num estúdio no Rio Comprido.

Chegando lá, eu descobri que não sabia tocar praticamente nenhuma música inteira. A única coisa que eu sabia era improvisar solos de blues. O dono do estúdio pagou uma cerveja pra mim e me disse, com cruel sinceridade: você não toca nada. Aquela frase ficou ecoando na minha cabeça por meses, anos, e no fundo foi uma das principais razões da minha desistência da música. Eu já escrevia muito na época e decidi que seria melhor concentrar meus esforços na literatura.

Eram tempos difíceis. Meu pai fora demitido do emprego e havia criado o jornal de café, em sociedade com seu irmão, para tentar ganhar algum dinheiro. Todos trabalhávamos muito lá em casa. Eu era o faz-tudo. Tive que aprender diagramação na marra, porque não tínhamos dinheiro para pagar um diagramador. Lembro-me até hoje daquele programa Ventura, um primórdio do Page Maker, uma coisa absurdamente rústica.

O jornal era semanal, impresso na gráfica do meu tio. Mas não estava indo muito bem. Hoje sinto pena dos assinantes daquele jornalzinho de quatro páginas, cobaias de meus experimentos estéticos. A cada edição eu usava uma fonte diferente, ou melhor, eu usava várias fontes numa mesma edição. Meu pai era o redator do jornal, e gostava muito de escrever, escrevia mais do que cabia no boletim, então eu diminuía as fontes sem pensar no fato de que existia gente que realmente lia aquele troço. Um dia, usei fonte tamanho 6 para o editorial de uma página inteira.

No verão de 1995, viajei de férias para o nordeste. Eu vinha trabalhando como louco desde 1991 (ou seja, desde os 16), e meu pai entendeu que me convinha umas férias. Foram 35 dias de puro lazer, pegando busão pra lá e pra cá. Havia juntado dinheiro e pude me divertir bastante na Bahia, Sergipe e Alagoas. As coisas estavam relativamente baratas. Tinha uma pousada, em Lençóis, na Chapada da Diamantina, que cobrava 5 reais por dia. Essa viagem foi a prova da importância de umas férias de vez em quando para o sujeito ter uma idéia original. Na volta para o Rio, de ônibus, eu vinha com a cabeça a mil para ganhar dinheiro. Tinha vinte anos e muita disposição. Minha "idéia original" foi editar um tablóide. Convidei alguns amigos escritores, e fizemos um jornal de bairro, intitulado Daqui. Conseguimos anúncios e a edição se bancou. Lembro-me que nossa meta era um faturamento que permitisse lucros de 800 reais para cada um de nós. Chegou nem perto disso, se deu vinte reais foi muito. Mais um jornal que morreu na primeira edição. Resolvi aplicar a técnica para o Coffee Business, o jornal editado pelo meu saudoso pai.

Foi um sucesso absoluto, que nos deram alguns anos de prosperidade, até a crise do café e, mais tarde, a morte do meu pai, acabar com a boa vida. Entretanto, naquela época, todas as esperanças estavam em alta. A tendência declinante no número de assinantes se reverteu e chegaram pedidos de assinatura de toda parte do país. Eu imprimia o jornal na Tribuna da Imprensa, todo em preto e branco, pagando 80 reais por uma tiragem de 2 mil exemplares. 80 reais! Eu imprimia a matriz laser numa copiadora do centro, toda sexta-feira, levava pra casa e montava a boneca numa folha de cartolina.

No centro, enquanto esperava a matriz ficar pronta, sentava-me num degrau da estação do metrô da Carioca e escutava o Ademir tocando saxofone. O ponto do Ademir, durante muitos anos, era ali na Carioca, tocando para executivos, secretárias e empresários, que depositavam o dinheiro na caixinha do músico. Ele tocava a trilha sonora de Blade Runner como ninguém. Eu sentia-me então cheio de poderosos influxos poéticos. Já então procurava acumular em mim o máximo de poesia. Da mesma forma que outros acumulam dinheiro, eu acumulava poesia.

Comecei a viajar por todo o Brasil, atrás dos congressos de café, onde eu divulgava o jornal e vendia assinaturas. Era divertido. Conheci cidades como Patrocínio, Araguari, Uberlândia, Alfenas, Varginha, Três Pontas, em Minas; Marília, Espírito Santo do Pinhal, Garça, em São Paulo; Barreiras, na Bahia, e tantas outras. Tornei-me conhecido nos meios cafeeiros. Até hoje não consigo imaginar a impressão que eu podia causar, tão garoto, tão sonhador, no meio de tantos fazendeiros e exportadores. O pior é que eu era radicalmente diferente deles! Não só na idade, mas na forma de pensar, os gostos, as leituras, tudo. Era uma coisa tão estranha pra mim que, meio sem querer, criei quase que uma dupla personalidade. Havia o Miguel jornalista de café, sério e entendido em economia, e o Miguel poeta, boêmio e revolucionário. Lá pelos idos de 1996, fundei o Arte & Política, tablóide malucão, anarquista, com muita poesia e petardos libertários.

Os bares adjacentes à Uerj foram minha verdadeira universidade. Era lá, em Vila Isabel, que fiz meu upgrade boêmio. Fechávamos todos os bares da Vila, começando pelo bar da Cris, o bar Loreninha, o Campanário, e aí tínhamos que fazer uma boa caminhada até a praça Vanhragem, já na Tijuca, onde ficava a parada final, um bar que reunia os derradeiros boêmios, vagabundos e viciados das redondezas. Bebia os últimos centavos e ia pra casa, bêbado, feliz e inocente. No dia seguinte, acordava sóbrio, triste e culpado. Demorou muito eu sentir uma ressaca sem culpas: esse progresso consumiu-me muitas horas de Nietszche, Henry Miller, Bukóswski.

Mas eu tinha uma vida diferente dos meus amigos. Eu frequentava a Biblioteca Nacional. Ficava lá às vezes o dia inteiro. Em casa, as influências paternas empurraram-me Euclides da Cunha, Balzac, Graciliano Ramos. Minha mãe tinha gostos mais açucarados: best sellers de todo tipo, apesar de também possuir uma vasta cultura literária.

Com dezessete, já escrevia possessamente muita poesia. Um dia, entreguei um poema em prosa para a Lia, amiga da minha mãe, que trabalhava no Espaço Cultural Sérgio Porto. Nessa época, o Chacal estava fazendo o seu Cep 20.000 no Sérgio Porto e trabalhava com um grupo de poetas muito bom, e que mais tarde se tornaram meus amigos: Wagner Santos, que atualmente é professor de história e pessoa muito séria e trabalhadora e finge não querer nada com literatura; Silvio Barros, que hoje mora em Florianópolis e tornou-se um escritor totalmente entregue à sua vocação, tendo lançado o excelente livro Poema Crime, vocês conhecem o Silvio de poemas e contos publicados no Arte & Política; e o Guilherme Lessa, hoje professor de violão, educador, ativista e pessoa de uma integridade e bondade impressionante, com o qual tenho contato mais frequente, e que também colabora com seus poemas para o Arte & Política.

Como eu ia dizendo, eu entreguei os poemas para o Chacal. Acho que o ano era 1994. Eu tinha dezenove anos e o Chacal telefonou pra minha casa, dizendo que tinha achado o poema maravilhoso, tinha publicado no zine que ele fazia na época (V de Verso) e que os poetas da oficina dele queriam me conhecer. O poema era tipo uma carta poética e tinha trechos assim: "A criação evola do meu ser como uma necessidade de continuar vivendo... a poesia escorre de mim como o sangue desliza pela face de uma criança ferida... ferozmente vou lutar para decifrar o mistério da tristeza que me devora...". Eu perdi esse poema. Talvez possa recuperá-lo se encontrar, um dia, um exemplar desse zine. Alguns dias depois, fui ao Cep e conheci os poetas supra-citados. Nessa época, escrevi o meu famoso poema "O fantasma da puta", que recitei em tantos lugares da cidade, inclusive no Cep 20.000. É um poema de valor mais oral, que me trouxe muitos dividendos artísticos, e com o qual eu ingressei, digamos assim, no mundo da poesia. Durante os vários anos em que eu parei de escrever poesia e só trabalhava, trabalhava, bebia, bebia, esse poema foi meu suporte artístico, ele me lembrava a mim mesmo, o poeta inquieto que ainda existia em mim.

Carlos Vergara e a superação do conceitualismo frio



Ontem fui à inaguração de uma galeria de arte no Museu da República. É um espaço pequeno, que ficou apertado com as duas obras enormes de Carlos Vergara, artista plástico nascido em 1941, no Rio Grande do Sul.

O evento foi bacana, porque encontrei meus colegas artistas plásticos Nilton Pinho, Juliano Guilherme (autor das pinturas que formam o mosaico do título desse blog), Rose, Élcio e o Sideral. Curiosamente, meus amigos aqui no Rio são todos artistas plásticos, quase não saio com escritores. O Sideral e eu somos os únicos poetas do grupo. Ah, apareceu também o Zé Veras, pintor também, mas que logo desapareceu misteriosamente.

Foi servido um vinho tinto muito saboroso, muito mesmo, mas não me perguntem a marca nem a safra, só sei que bebi umas dez taças, feliz da vida pela oportunidade de beber vinho sem alterar meu esquálido orçamento.

Veio-me imediatamente a idéia de escrever algo sobre o Vergara e a exposição, ou melhor, veio-me a idéia de escrever regularmente sobre o tema, já que sou aspirante a crítico de arte e editor de uma revista eletrônica especializada em artes plásticas, a Serebelo, a qual ainda precisa ser muito aperfeiçoada.

O Vergara estava lá, com seu bigodão e a bengala, com aspecto bonachão de um inglês boêmio do século XIX. Pensei em entrevistá-lo naquela mesma hora, mas já tinha bebido muitas taças e, sobretudo, não havia gostado da exposição.

Nenhum de nós gostou, e conversamos disso depois no barzinho da rua 2 de dezembro, ali perto, onde nos reunimos para beber umas cervejas.

Em primeiro lugar, a galeria é muito pequena, apenas duas salas, e o galerista entulhou duas instalações enormes do Vergara naquele "quarto-sala". As obras foram totalmente asfixiadas pelo ambiente apertado e opressivo. Em relação aos trabalhos em si, são obras explicitamente conceituais, com pouco apelo estético, e um tanto quanto datadas. Uma é um monte de papelão amontoado. Prestando mais atenção, vi que eram formas humanas. Outra é uma estrutura de madeira, com um boneco deitado numa cama lá dentro, enrolado na bandeira do Brasil; o título da instalação é "Berço esplêndido", e tenta ser uma crítica à... sei lá. Os dois trabalhos são dos anos 60, início da carreira do Vergara.

Minha intenção, portanto, ao escrever a primeira crítica de arte neste blog, era meter o cacete na exposição, que representa um tipo de arte que considero ultrapassada, que é a arte conceitual pura, essas quinquilharias absurdas e enfadonhas que amontoaram nos museus de arte contemporânea. Uma arte que um dia sonhou ser rebelde e politizada, mas que terminou acadêmica e elitista. Pra resumir, um arte chata pra caralho, daquelas que a gente entra numa exposição, olha dois segundos e vai pra casa mau humorado.

Pois é, aí eu fui entrar no site do Vergara para saber mais sobre o artista, conhecer sua história, outras obras, e tal. E tive a mais agradável das surpresas. No link Trabalhos recentes, vi uma série de telas magníficas, que me fizeram ver um outro lado dele. Uma delas está reproduzida no início desse post.

Porque, então, cargas d'água, escolheram aquelas instalações para enfiar na galeria? Bem, eu sei, porque galerias, curadores e afins, ainda não acordaram do pesadelo dos anos 70 e 80. Ainda não entenderam que muita coisa do que se chama hoje de arte conceitual tornou-se anacrônico, esvaziado de sentido estético. Vergara parece ter compreendido isso, conforme podemos observar em seus trabalhos recentes, mas muita gente ainda não. Sem querer repetir o discurso (considerado por alguns) reacionário do Affonso Romano Santanna, inimigo número 1 dos conceitualistas, não posso deixar de expressar o meu enfado profundo por essas obras amorfas, em que o sujeito pendura um tufinho de cabelo na parede e diz que aquilo é arte.

Não que o conceitualismo seja inviável hoje. Acho que a arte contemporânea supera o conceitualismo incorporando-o, transformando-o num instrumento em favor da emoção, e não um elemento esterelizante do sentido eminentemente estético da obra de arte. Um artista como Nilton Pinho (cujo dionisíaco e modesto ateliê fica na rua do Riachuelo, a dois passos dos Arcos da Lapa), por exemplo, que trabalha muito com objetos, usa o conceitualismo sem perder de vista o objetivo estético; seus trabalhos possuem, digamos assim, densidade poética; você sente que ele pôs ali sentimentos e intuição; não foi mais uma daquelas teses acadêmicas tão caras aos críticos, por prestarem-se, facilmente, às suas complicadas e pretensiosas resenhas.

As pinturas da fase recente de Vergara são perturbadoras, ora sombrias, ora alegres, com profusão generosa de cores e formas, resgatando um expressionismo abstrato que, a meu ver, é uma das tendências mais importantes a surgir dos escombros melancólicos da arte conceitual.

Finalizando esse artigo, quero enfatizar meu respeito por todo o tipo de manifestação artística e pelo debate democrático que se faz necessário sobre o tema. Se disse alguma coisa desagradável, minha intenção não foi ofender ninguém, apenas expressar minha visão do mundo, a qual, aliás, está sempre pronta a ser atualizada e aperfeiçoada. Que fique claro ainda o apreço desinteressado e sincero que tenho pelas artes plásticas e pela arte em geral.

Protestem, dêem sua opinião. Leiam também, se puderem, esses dois artigos que escrevi sobre o tema. Manifesto Maximalista e o Maximalismo Hoje.

Recado do produtor cultural

Miguel, segue release sobre o próximo evento no projeto O Autor na Praça em 24/09, com a participação de Ademir Assunção. Aproveitamos para lhe fazer o convite e solicitamos apoio na divulgação através de inserção no Arte e Política e/ou repasse. Agradecemos e ficamos a disposição (Edson Lima 11 3085 1502 / 9586 5577)


O evento O Autor na Praça apresenta:

Ademir Assunção

O Autor na Praça recebe no dia 24 de setembro o poeta Ademir Assunção, autografando o CD Rebelião na Zona Fantasma, que traz participações especiais de Zeca Baleiro e Edvaldo Santana. O poeta autografa também os livros Adorável Criatura Frankenstein e Cinemitologias. O cartunista Junior Lopes marca presença realizando caricaturas. Informações sobre o convidado e o CD abaixo ou http://zonabranca.blog.uol.com.br

SERVIÇO:
O AUTOR NA PRAÇA – Ademir Assunção – autógrafo do CD Rebelião na Zona Fantasma
Dia 24 de setembro, Sábado, a partir das 14h – Entrada Franca.
Espaço Plínio Marcos – Feira de Artes da Praça Benedito Calixto - São Paulo - SP
Informações: Edson Lima – Tel. 3085 1502 / 9586 5577 – oautornapraca@oautornapraca.com.br
Realização e Produção: Edson Lima e Associação dos Amigos da Praça Benedito Calixto
Em Breve: Dia 01/09/05 - Evento lembrando os 70 anos de Plínio Marcos (29/09/1935)

Por falar em Paralelos...

Fui falar em Paralelos... que eles estavam meio paradões (e estão mesmo), eis que os danados me aparecem agora com um blog no Globo Online. Sabe que é isso, meu? É a conquista da mídia! Por mim, vejo com muito bons olhos qualquer infiltração literária na grande mídia. Tem que tirar o chapéu pros caras, e fazer presença, deixar comentário, pros czares que comandam o Globo verem que literatura também tem seu ibope. Dá-lhe Augusto Sales, você é um herói. Agora é torcer para que ele não fique meu amigo, coisa que não está longe de acontecer, já que temos vários amigos em comum, porque aí eu vou arranjar um jeito de embebedá-lo e convencê-lo a colocar algo bem subversivo no blog do Paralelos (brincadeira, e sem graça, eu sei, mas tudo vale a pena, quando a noite corre serena... e quando é boa... nossa morena). Um brinde, Augusto!

Gatos e urubus

Alguns leitores do meu blog se divertiram com a macabra história dos gatos mortos. Lembro: minha vizinha de cima ficou doente e deixou seus dez gatos passando fome em casa. Uns morreram. Outros começaram a praticar canibalismo, após lutas terríveis entre eles, das quais nos chegavam pavorosos gritos noturnos. Grito de gato, vocês sabem, é uma coisa extremamente desagradável.

Procurando tranquilizar alguns leitores preocupados, finalizei a verídica história com um "está tudo bem, a mulher voltou do hospital, jogou fora os gatos mortos e alimentou os sobreviventes".

Acontece que não foi bem assim.

A verdade é que o final da história foi tão grotesco que hesitei alguns dias antes de revelar. A velha não voltou do hospital. Morreu, ao que parece, de uma doença cujo principal transmissor são os... gatos. Eu fiquei com preguiça, como sempre, de tomar qualquer atitude. Mergulhei em meus trabalhos e esqueci do assunto. Por alguma razão, decerto pela mudança na direção do vento, o fedor desapareceu, e eu me dei por satisfeito.

Antes de ser internada, a velha deixara aberta a janela da sala. Acompanhem. Anteontem, à tarde, depois de uma sessão de café e leitura deste interessantíssimo Depoimentos, de Carlos Lacerda, fui à janela contemplar a sofrível paisagem que se descortina deste sétimo andar. Um pedaço da montanha de Santa Teresa ao fundo, uns prédios à esquerda, uns prédios à direita, e abaixo, o teto de uns galpões. Olhei para o céu, e observei, curioso, que havia um círculo de urubus, voando bem próximos ao prédio. Estranhei, porque essas aves, aqui no Rio, dificilmente aproximam-se das áreas movimentadas. Aí vi um deles se desprender do bando e vir voando na minha direção. Assustei-me e dei um passo atrás, mas continuei vendo o bicho.

Ele veio e entrou pela janela no apartamento da velha. Aí os outros todos vieram também. Fizeram um banquete com os corpos apodrecidos dos gatos.

Inicialmente, pensei em chamar o zelador e "denunciar" aquela orgia animalesca, mas fiquei com dó dos urubus. Eles também têm suas necessidades, pensei.

E assim terminou a história dos gatos. Vale a lição: mais vale um urubu de barriga cheia que um gato morto fedendo.

Dejetos de um luxo carioca à sombra de satânicas flores azuis

vai, meu chapa, olha a vida
de frente e paga a conta
de seus porres de outrora
homem que é homem chora
lágrimas de cachaça
e está sempre brincando
em serviço

secos estão seus olhos?
molha-os com o mar
branco de teu ódio
apimentado, acarajé
com coca-cola

com pupilas limpas
contempla as ruas
e as moças semi-nuas
da praça castro alves

pega um ônibus
e vai pra chapada
da diamantina
contemplar a imensidão

eleja-se presidente de si mesmo
depois o derrube
torne-se anarquista
sem bombas, dê gargalhadas
com teus amigos do bar

não esqueças, todavia
que a palavra "buça" é sagrada,
ou satânica, não a disperdices
em poemas sem amor

a poesia às vezes se finge
de cínica,
pra comer um pouco mais
de carne vermelha

mas ainda é o amor,
sombrio e desesperado
que corre em suas veias
inchadas de viciada (a poesia),
dialética prostituta
cujo beijo
exala átomos
de bondade, inteligência
e levedos
de cerveja

Soneto do Jorge Ferreira

Quem sabe esse tempo que eu passo largado
num canto da sala buscando a linha do dia,
possa se transmutar numa tarde de alegria,
numa noite sem culpa ou marcas do passado.

Talvez as árvores que vejo da janela aberta,
sejam mais que um manto cheio de cigarrras.
talvez o verde que agride a cor dessa cela,
seja a música que falta dentro da algazarra.

Possa ser que a campainha que agora toca,
traga a mim uma promessa, nova fantasia
rastejando sua mentira até a minha porta.

Enfim pode ser também que o dia se acabe
e com ele leve toda essa enorme algaravia,
numa só nuvem negra de solidão e saudade.

(Jorge Ferreira)

Morte no quarto andar

Vou contar-lhes, brevemente, um caso de estupro seguido de morte, ocorrido aqui no prédio, no mês passado, que apavorou os moradores e virou notícia em alguns jornais populares do Grande Rio.

A vítima era uma moça de seus vinte e cinco anos que trabalhava, ao que parece, numa firma de advocacia. Eu a vi algumas vezes, no elevador. Não a achava bonita, propriamente, por causa dos olhos, que eram vesgos. Possuía, contudo, um belo corpo.

Naturalmente, o crime foi o assunto do mês aqui no prédio. Quase todas as conversas de elevador, nos corredores, na portaria, convergiam para o mesmo tema. Assim, os detalhes sórdidos do episódio, com distorções próprias a esse tipo de comunicação, chegaram ao conhecimento público. Minha fonte principal era um dos zeladores, rubro-negro como eu, que de vez em quando eu encontrava no boteco da esquina.

Pelo que apurei, o assassino foi um vizinho do mesmo andar, um homem de quarenta anos, casado, três filhos, sogra, o escambal. Um tipo grosseirão, gordo, peludo, beberrão; era mestre de obras e estava desempregado. A mulher sustentava a casa trabalhando como empregada doméstica para uma família da zona sul.

O prédio onde moro, no Bairro de Fátima, é ocupado por gente assim, de classe C e D, trabalhadores e jovens começando a vida. A vítima fazia a parte do último grupo. Estudava direito na Estácio e, como já disse, estagiava numa empresa.

Fátima, era o nome da garota, uma lourinha de um metro e sessenta e fartos seios. Costumava usar vestidos decotados e perfumes fortes. O assassino arrombou-lhe a porta do apartamento, num sábado à noite, destroçou-lhe o rosto delicado e violentou-a durante horas.

Ela morreu a caminho do hospital, com traumatismo craniano causado pelos socos do assassino. Coisa horrível.

Sobre a educação brasileira

Escritor, jornalista e cidadão, eu me preocupo absurdamente com o atual estado calamitoso da educação brasileira. Ando lendo um blog da professora aposentada Glória Reis, uma mulher sabida, experiente e informada, que escreve sistematicamente sobre o assunto com aquela lucidez tranquila que só as mulheres sabem ter. Vejam os últimos textos dela sobre o tema.

Essa semana começa o Festival de Cinema do Rio



Cinéfilos de todas as outras capitais do Brasil, morram de inveja. Vai começar aqui no Rio, o Festival Internacional de Cinema. O Odeon já tá passando alguns filmes para os jornalistas. Eu fui assistir, no sábado, o "La sombra del caminante", A sombra do peregrino, do jovem colombiano Ciro Guerra.

Como pretendo realizar, aqui neste blog, crítica de todos os filmes que eu assistir, comecemos por este. Comecemos devagar, poucas frases, pra não assustar os leitores. O filme é ótimo. É um filme cabeça, preto e branco, mas com muito ritmo, música, um roteiro brilhante e atores maravilhosos. Posteriormente, escreverei ainda muito sobre essa obra-prima, uma versão urbana, trágica, moderna e colombiana para "Deus e Diabo na Terra do Sol", de nosso Glauber. É um filme assumidamente literário, sem deixar de ser visual, com poucos diálogos. A galera da literatura que acompanha este blog, vai gostar muito, eu garanto.

Falando de livros

Fui dar um passeio de bicicleta e, passando pelo Largo do Machado, topei com um desses sebos de rua, que estendem os livros na calçada. Fiquei ali examinando os títulos por curiosidade e vi três que me interessavam: Martin Eden, de Jack London; As aventuras do Sr.Pickwick, de Charles Dickens; e Depoimentos, de Carlos Lacerda.

O problema é que eu só tinha 2 reais na carteira e menos ainda em casa ou no banco. Solução: voltei em casa, separei uns best-sellers vagabundos que já tinha lido (de vez em quando leio um best seller pra ver se dá sorte e eu fico rico um dia com literatura), peguei a bicicleta de novo e pedalei até o sebo. Fiz a proposta: permuta. Consegui os três livros. O Rio é o paraíso dos sebos de rua. Você consegue os clássicos até de graça.

Lacerda

Nos últimos dias, andei lendo o Depoimentos, do Carlos Lacerda e aprendendo pra caralho sobre história do Brasil. Lacerda foi, em certos momentos, um filho-da-puta, sobretudo na sua obsessão contra o Getúlio. Mas foi um prefeito muito bom do Rio de Janeiro e um personagem político nacional extremamente curioso, e perturbador.

Após ter sido traído pelos comunistas (segundo sua versão), tornou-se profundamente anti-comunista, mas seu governo, como ele mesmo admitiu, mostrou a importância de sua formação socialista: foi um governo eminentemente preocupado com os pobres, com a periferia. Foi o prefeito do Rio que mais construiu escolas, mais investiu em saneamento básico, terminou o Maracanã, fez o Rebouças, a estação de águas de Guandu, e um montão de coisas importantes para a cidade.

Político que era, Lacerda sempre foi extremamente contraditório. Como articulista (função em que era insuperável), sua especialidade era mesmo meter o cacete, através de sua coluna no jornal Tribuna da Imprensa, que lhe pertencia, em toda sorte de políticos. O alvo preferencial era o Getúlio, mas o porrete descia pra todo lado. Esse jornal, a Tribuna da Imprensa, existe até hoje, na rua do Lavradio, na velha Lapa carioca, bem perto da famosa casa de show Rio Scenarium. É um jornal decadente, sem anúncios, que sobrevive com a receita gerada pela gráfica, que terceiriza as rotativas para produção de todo tipo de jornal de bairro, setorial, etc. Acho que a Tribuna tem futuro se assumisse com mais força um papel de jornal cultural e de opinião, e contratasse uma nova equipe de marketing para correr atrás de anúncio. Um passo importante que o Hélio Fernandes, dono da Tribuna, vem fazendo, é abrir espaço para alguns novos escritores, embora de forma demasiadamente tímida.

Lacerda não era tão inteligente quanto pensava. Sabia escrever bem e usar imagens fortes e ofensivas, mas sua análise política era equivocada e tendenciosa. De forma que, da mesma forma que destruiu bons políticos e elevou a fama de maus, igualmente enganou-se a si próprio. Terminou de forma melancólica, com seu mandado de deputado cassado pela própria ditadura que ele mesmo havia apoiado com fervor.

O apoio que Lacerda deu ao golpe militar foi um tremendo atestado de desonestidade política, visto que o argumento central de seus ataques à Getúlio e a todos os políticos ligados à Getúlio era o suposto pendor anti-democrático do getulismo; isso mesmo depois de Getúlio ter sido eleito pelo voto popular em 50. Nas décadas de 50 e 60, Lacerda dá apoio a diversas tentivas de golpe militar que ocorreram no período. Em algumas ocasiões, inclusive, é um dos principais conspiradores.

Entretanto, com todos seus erros, Lacerda é dessas figuras que a gente considera importante para a história do país. É o mesmo caso do Assis Chautebriand, que foi um filho-da-puta, mas crucial para a história do jornalismo nacional.

Dickens

O livro do Dickens, As aventuras do Sr.Pickwic, é o primeiro grande romance do escritor inglês. Ainda não li, sei apenas que foi publicado em capítulos no jornal em que ele trabalhava, em Londres, e foram essas histórias, engraçadíssimas, que o tornaram uma celebridade na Grã Bretanha. De origem humilde, família paupérrima, Dickens acabou nas graças do dono do jornal e casando-se com sua filha.

Jack London

O Jack London está me esperando lá na estante, impaciente para que eu mergulhe em suas aventuras. Pessoalmente, acho o London o maior escritor americano, infinitamente superior ao Kerouack, por exemplo. O Kerouack deu sorte de estourar nos anos 50, em pleno milagre econômico pós-guerra americano, em que o americano comum, com o bolso cheio de grana, queria um ideal libertário, louco, para justificar o imenso chute no balde que ele queria dar, e deu. As gerações ianques dos nos 50,60 e 70, torram todo o dinheiro acumulado na primeira parte do século, tanto que nos anos 80 os jovens são obrigados a voltar a pegar no batente. As grandes aldeias hippies se desfazem e todos vão tentar ganhar dinheiro pra sobreviver e recolocar o país de novo nos trilhos do crescimento. E o pior é que os filhos-da-puta conseguem. Os americanos são uns filhos-da-puta que conseguem tudo que querem, por isso nunca advoguei guerra aberta contra eles. Acho isso o grande erro da esquerda latina, e inclusive o chavismo entrou nessa onda errada. Eles são filhos-da-puta, mas se você falar a linguagem deles, e não deixar eles invadirem o seu país, você consegue conviver na boa com os americanos. Sendo os EUA um país heterogêneo e democrático, a bandeira da América Latina deve ser fazer alianças com grupos progressistas americanos e tentar insinuar um pouco de consciência política internacional no povo americano.

Kafka

O que me trouxe realmente prazer esta semana foi a leitura dum livro intitulado "Conversas com Kafka", que encontrei na biblioteca do Instituto Goethe, escrito por um músico que foi durante dois anos muito amigo do escritor tcheco. Muito interessante ver como Kafka era um sujeito divertido, com ódio do emprego burocrata onde trabalhava. Legal ainda saber um pouco de suas idéias políticas - durante um tempo frequentou reuniões anarquistas, achava os anarquistas pessoas realmente maravilhosas, mas ingênuos - o que é a pura verdade, até hoje.

Kafka era um boêmio, com muitos amigos artistas, músicos, atores, dramaturgos, etc, e aquela história de que mandou seu amigo Max Brod (que aliás também escreveu uma excelente biografia de Kafka) queimar seus escritos não era nada mais do que a costumeira atitude blasé e irônica com que tratava sua obra. Dizia que seus amigos roubavam seus escritos no seu quarto para publicá-los. Mas era puro charme de artista. Ele confessa para seu amigo que "já estava tão corrompido", que ele mesmo agora mandava seus contos para serem publicados nas revistas.

Fica claro que ele gosta de ser publicado. Seu pudor, sua timidez, nada mais é que uma grande e saudável vaidade, aliada a uma terrível suscetibilidade, derivada por sua vez de seus complexos psicológicos pessoais.

Hegel

Nesta semana, labutei ainda diante de uns livros de filosofia. É muito importante a filosofia para escaparmos do PENSAMENTO DE REBANHO que a sociedade de massas tenta nos impor. Achei muito interessante a teoria hegeliana de que a busca da verdade passa necessariamente pela decepção e pelo desespero. Resgatando Descartes e seu elogio da dúvida, Hegel vai mais longe, defende a DÚVIDA DESESPERADA. Conforme avançamos em nossos conhecimentos, somos impelidos a abandonar os ideais mais caros, que constituíam o que tínhamos de mais profundo em nós mesmos, para atualizá-los à luz de uma verdade mais real, mais libertadora. A busca da liberdade é uma luta desesperada. Não sei se Henry Miller leu Hegel, acho que ele era inteligente demais para perder tempo com filosofia e curtia mais a vida, mas enfim, chegou à mesma conclusão, pois falava, não com orgulho, mas com genuína angústia: "eu sou um escritor desesperado". Entre nós, sabemos que o maior motivo de desespero do Miller era a falta de grana. Depois que vai pra Paris e vira um sucesso, ele pode relaxar e escrever na paz do lar, FALANDO SOBRE o desespero, mas já não tão ACOSSADO pelo desespero.

Hegel é vacinar-se contra qualquer tipo de sectarismo. E também muito complicado, muito cansativo. No entanto, quando pegamos um Marcuse, que em Razão e Revolução, tenta explicar Hegel em linguagem jornalística, parece que estamos diante de um livro tipo "Hegel para crianças" e perde-se todo o vigor, originalidade e mistério que encontramos nos textos originais do filósofo alemão. Por isso, eu defendo sempre a leitura dos originais, nunca dos comentaristas. Dica: na Fenomenologia do Espírito, o Prefácio é mais complicado que livro, já a Introdução é mais acessível; vale, portanto, começar por aí.

Após esses anos todos de estudo, cheguei à conclusão de que pra ler filosofia é preciso uma atitude absolutamente desinteressada. Se você ler filosofia, por exemplo, com o intuito de "adquirir cultura" já está criando, sem querer, preconceitos que dificultarão o acesso ao texto filosófico. É preciso ler filosofia como quem está apenas se distraindo. A mesma atitude vale para a literatura. Distraindo-se, mas concentrando-se profundamente na leitura, é claro. Mergulhando e tendo prazer.

Crítica literária

Creio que uma das razões para haver tanto desequilíbrio estético no mundo (leia-se enorme quantidade de porcarias que fazem sucesso de crítica), é o fato de termos grandes leitores e péssimos estetas. O cara conhece tudo de literatura, se acha um grande crítico, mas a sua formação estética real, quer dizer, o seu aparelho mental estético, é sub-desenvolvido. Ele só sabe (porque leu em algum lugar) que Ulisses é uma obra-prima; Som e a Fúria é uma obra-prima; e por aí vai. E aí quando a Folha publica que fulano é uma obra-prima, ele vai e acredita e entra no coro dos puxa-sacos que alimenta a farsa literária que vem levando a nossa indústria editorial literária para um buraco cada vez mais fundo, com livros cada vez piores sendo cada vez mais incensados pela crítica; produzindo-se um crescente distanciamento entre uma elite culta (mas sem independência estética) e uma entediada massa de potenciais leitores.

São os críticos de "duas horas". Morro de medo dos críticos de duas horas. Eles pegam os livros, lêem numa tarde e escrevem: li fulano em duas horas, hoje à tarde, e achei o livro fantástico, a capa é maravilhosa, muito bem diagramado. E o texto é revolucionário, e tal. Uau! Só posso falar isso: UAU! E além de tudo, é meu AMIGO! Essa é nova geração de críticos e de júris de nossos concursos. O Globo paga 200 reais por uma resenha, mas tem que louvar o livro. É uma tremenda merreca, isso sim, mas diante da atual situação econômica, eu também tô na fila pra escrever a minha. Agora, respeitar, não vou. Nem vem que eu não respeito. Tem que haver um dia uma classe poderosa e prestigiada de críticos literários no país, independentes financeiramente para poder falar o que bem entender.

Por enquanto, são deslumbrados que dominam a crítica. Ah, Chico Buarque é um gato, tome prêmio pra ele! Alguém engoliu o milionário do Chico Buarque ganhar 100 mil reais naquele prêmio do sul? Que isso? Que isso? Tanto escritor bom aí, mil vezes melhor que o Chico, passando fome, e os caras vêm e dão um prêmio de 100 mil reais pro MILIONÁRIO do Chico Buarque? Eu adoro o Chico, mas porra... bom senso! Bom senso! Então porque não dão logo um prêmio de 100 mil reais pro Bill Gates? Um prêmio de 100 mil reais praquela banda sertaneja? E mais 100 mil reais para o Antônio Ermírio de Moraes, por toda a sua contribuição ao teatro brasileiro? (Ele é teatrólogo, vocês sabiam?). Aí Bortollotto, se prepare, vai ter um dia que vão dar prêmio de 100 mil reais pro Ermírio... e nada pra "ralé".

Entretanto, em relação às artes, não creio em solução estatal. Neste ponto, sou totalmente liberal. Arte não é mercado, não é mercadoria, tudo bem, mas é um artigo cultural que precisa ser consumido, convertido em dinheiro para pagar a sua própria distribuição.

Movimento Literatura Urgente

Não existe solução estatal, mas pode haver solução legal. Acredito que o Congresso podia votar umas leis melhores para o escritor brasileiro. O livro no Brasil, diante do quadro calamitoso de ignorância pública, deveria ser subsidiado pelos governos e grandes empresas, de forma a baratear o custo. Mesmo assim, sou simpático e aspirante à signatário do Movimento Literatura Urgente, desde que os apoios oficiais sejam totalmente transparentes e democráticos. Qualquer coisa que se faça a favor da literatura no Brasil, sou a favor. Qualquer coisa que se faça pelo bem do escritor, sou a favor. Escritor tem que receber dinheiro do governo sim, como todo mundo recebe ou quer receber. Editoras, jornais, revistas, produtoras de cinema e publicitários, recebem milhões em forma de patrocínios. É muita hipocrisia vir acusar o Movimento Literatura Urgente de querer mamar nas tetas do governo.

Agora, a coisa que eu não concordo com o Movimento, é a sugestão de 12 bolsas. Porra, 12?! Tinha que ser 12 mil bolsas, aí sim. Doze é subisidiar panela, 12 mil é subsidiar a cultura brasileira.

Gran finale

Para os heróis que chegaram até aqui, dois presentes: um trecho do Tratado Político de Espinoza que é uma bomba nos intelectuais, sobretudo nos moralistas.

"Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza huamana que em parte alguma existe, e atacando através de seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí por consequência, quase todos, em vez de uma Ètica, hajam escrito artigos satíricos, e não tinham sobre Política nenhuma idéia que pudesse ser posta em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por Quimera, Utopia de uma idade de ouro sem instituições humanas e seus defeitos inevitáveis.

Por isso, entre todas as ciências que tem aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos".

Novidades

Bem, tem três coisas importantes que preciso dizer a vocês, leitores. Primeiro, uma dica de um blog de viagem dum colaborador nosso, o Tiago Muzulon, que está em Londres, trabalhando num bar e escrevendo feito um louco nos cibercafés da cidade. É muito interessante. O endereço é http://minhaodisseia.blogspot.com/. Só me penitencio por não ter divulgado antes. O Tiago avisa que os textos não tem acento não por ignorância, mas porque os teclados londrinos não compreendem nosso maravilhoso e bizantino português. Eu quero ter a honra de prenunciar o talento precoce desse rapaz de 19 anos. Já é um blogueiro de primeira categoria e eu acredito muito no poder revelador do blog para a literatura mundial. Eu fui o primeiro a fazer uma entrevista com ele. (Só espero que eu não esteja estragando o garoto. Ô Tiago, vê se não fica metido quando ficar famoso e seja sempre amigo de seus amigos. E não esqueça, o bom caminho quase sempre é árido e doloroso. Sucesso em literatura não quer dizer nada; qualquer imbecil fica rico e famoso; o difícil mesmo é escrever algo potente, original e duradouro).

Outra coisa é que publicamos no Arte & Política um conto da escritora Andrea Del Fuego, pode entrar no link aí à direita e conferir.

Por último, só queria compartilhar com vocês uma situação bizarra. A velha que mora no apartamento logo acima do meu foi hospitalizada e deixou seus oito ou dez gatos à míngua. Alguns já morreram, e o cheiro chega até aqui. Acendemos incenso e mesmo assim não adianta muito. De vez em quando, eles brigam entre si, provavelmente tentando se auto-devorar ou coisa parecida. Amanhã, vou dar parte na polícia, saúde pública, para entrarem no apê da velha e salvarem os gatos, e minhas narinas. Vida de gato nem sempre é moleza. Não é pra rir, não. É triste, eu sei. (Atualização: o cheiro passou; a velha voltou pra casa, jogou os gatos mortos no lixo e está alimentando os sobreviventes).

Poema de Antonio Diamantino Neto

Segue um poema do Diamantino. É um poema sombrio, estranho.

TRIPANÓSSOMOS.

Por favor, alguém me mostre
Três metros e meio de humano intestino
A garota no vaso e o coração de um menino
Emudecem como insignificantes lamentos
Tecnoultraworldpostmortemdemocraticos

Com uma só gota de colírio barato
E o sanguinolento murmurar de seus cabelos
Ver que um dia liquefaz-se pelas lentes cenozóicas
Na habitual desesperança de outras lentes pós-modernas.

Pôr do sol como arquetípica imagem
Beleza que se esvai num atropelamento
Deliciosos acontecimentos de telejornais
Outdoors e Dvds de uma noite sem sentido

Poemas que não rimam com nada,
Pernas cruzadas e braços abertos
Ensandecidas posturas de mármores quebrados

Um mundo que despreza adjetivos
E traduz-se no olhar sincero do mendigo
Em sintonia com a repulsa da beldade.

Que não haja nem mais um segundo
Se é preciso a arquitetura do soneto.

(Antonio Diamantino Neto)

Bagatelas procura novo colaborador

Os camaradas do Bagatelas estão procurando um novo colaborador semanal. Pra quem não sabe, o Bagatelas é o novo astro da literatura carioca. O Paralelos que me desculpe, mas anda muito paradão. O Bagatelas, além das impagáveis crônicas semanais de colaboradores de alto calibre, como o Raphael Vidal, Luciano Silva, Ernesto Aguiar e Jorge Souva, deu início a uma série de eventos mensais. Na verdade, o segundo Encontro viverá no próximo dia 17/09, numa alcoolêmica tarde (14:00) de sábado, na livraria do cinema Odeon, Cinelândia.

O primeiro encontro foi sobre o João Antônio. Eu cheguei no final, a tempo de beber umas cervejas com os cabras lá mesmo no Paço, e depois na Lapa.

O Bagatelas está linkado aí ao lado. A gente se vê lá no Odeon.

Três segundos de amor

Dia menos dia, isso ia acontecer, eu sabia. Mesmo assim, vê-lo estendido na calçada, com um buraco sangrento no lugar do rosto, foi demais pra mim. Os caras gritavam: "ô jão, vem logo! vem logo!", e eu ali, diante de minhas derradeiras fagulhas de moral, tentando ganhar um segundo para compreender que porra eu tinha feito da minha vida.

Três segundos, foi o tempo necessário para superar aquela perplexidade idiota, que me prendia à poça de sangue crescendo ao lado da cabeça de papai, entrar no carro e seguir com a galera para outro assalto.

quando o vazio da noite escorrega da minha boca

as coisas se apagam, lúcidas e tristes
a solidão vibra, como sino enlouquecido
um homem caminha até a ponte
diz um segredo em meu ouvido

as horas estão órfãs
crianças sem braço passeiam na praia
há muito tempo que os céus
deixaram de ajudar o mundo

não será a noite
doce, vazia e gordurosa
a solução para a dor
suavemente metafísica
que me consome na primavera

os lobos do homem estão soltos
com seus dentes sujos
gengivas vermelhas
ferocidade cancerígena
como escorpiões loucos
sobre uma cama de vísceras
sedas e egoísmos

de que adiantam, tosco profeta
essas elocubrações
insossas que roubastes
dos poetas do pantanal?

de que adiantam,
emperdenidos dançarinos
do romance pós-moderno
seus malabarismos rítmicos
salpicados de pessimismo publicitário?

olvidastes os céticos
ingênuos que Maomé
transformou em cerveja?

ignoras o fim azul-morto
de todas as revoluções?

não! não repetirei a ladainha
anti-libertária dos poetas
encurralados em São Paulo

não morrerei tão cedo
que não veja
o mundo se desintegrar um pouco mais
ou terminar, como angustiadas
flores, secando
ao sol verde
dos cemitérios


Ouça o poeta recitando este poema.

Soneto para a viagem que não fiz à Sampa

Esse final de semana, eu tinha programado ir à São Paulo, conhecer alguns poetas daquelas bandas, ir a uns bares diferentes, mas não hora H, circunstâncias extraordinários obrigaram-me a adiar minha partida. Aí vão dois sonetos pela viagem que não fiz.


Dia desses, vou à Sampa
ir ao teatro, beber à pampa
dar um rolé na praça roosevelt
sem tropeçar na contra-rampa

conhecerei o márcio, o bortolotto,
lhes pagarei uma cerveja
com a moeda sertaneja
que roubei do boquirroto

o ademir, grande poeta
conhecê-lo é minha meta
e rezar na mesma igreja

não gostamos, ora-veja,
de ver o bolo sem cereja
apodrecendo na bandeja

***

quando eu for a sampa
apresentar-me sem estampa
com meu talento para a guampa
e beber mesmo com tampa

ali terei os meus amigos
- que matam os papa-figos
e protegem os mendigos
ah, sampa dos vitiligos

dos desvarios, dos desabrigos
do rio cor-de-trampa
da noite que não deslampa

ah sampa dos sonhos meus
dá um toque lá em Deus
para pagar o meu adeus

Soneto desregrado por estar sóbrio

nem sempre os sonetos são perfeitos
às vezes também eles tem defeitos
tão terríveis em seus peitos
que mal deitam sobre os leitos

por exemplo, esse que vos fala
pegou um (soneto) e mandou bala:
a consequência foi tão rala
que me flagraram com a mala

o seu nobre deputado
sempre roubou calado
muito bem assessorado

pelos homens do outro lado.
sem pensar que está errado
se o que conta é o resultado

Soneto para o chibamba que me xingou

você aí que não gostou do meu poema
e dedurou meu samba
pros homens com um telefonema
e mandou queimar o meu cinema...

que tal alugar em ipanema
uma loja pra vender o seu sistema?
e aí me esquece, seu chibamba,
que a poesia não é muamba.

se não lhe agrada meu fonema
não é porque ele blasfema
é porque dói, caramba,

a verdade do meu esquema
que lhe rasgou a gema
do seu ovo turumbamba

Soneto do rato banguela querendo morder o leão

não adianta: pode voltar e mentir de novo
que sabe você da fome do povo?
tresdigo, que sensação melosa
ouvir a canção gloriosa

dos stones aqui no Rio,
escandalizando a sociedade
carioca dos anos 60
fumando um nos restaurantes cinco estrelas

não adianta você ter raiva
porque não tava na praia-de-lá
bebendo cerveja gelada

escutando bezerra da silva
na companhia das garotas bonitas
pagando-me em amor e biritas

Grande Rio: favelas

Nénada. Esses tiros foram só de festa. Chegou maconha verde no morro. O senhor reparou quantos tiros foi? Três? Então é maconha mesmo. Se fossem quatro ou cinco tiros, era pó. Eles diferenciam é pros viciados saberem. Gente pacóvia.

Oceanos dum passado louco

perdi-me em luxúrias brancas
vivendo a loucura das horas vazias
em que eu soprava o balão da guerra
e me suicidava sem açúcar
pelas manhãs inglórias da lapa

O travesti da Lavradio e o poema do segurança

Joyce era um travesti conhecido em todo o baixo meretrício da Lapa. Há três anos que brilhava na esquina da Lavradio com a Mem de Sá ,exibindo seus enormes peitos e bunda de silicone. Sua fama extrapolava as fronteiras nacionais e, de vez em quando, apareciam estrangeiros ricos pagando qualquer preço por uma noite com o transformista.

Uma noite, Joyce foi encontrado morto no terreno baldio atrás do prédio que fora uma delegacia. Tinha o corpo todo picado de faca, os pés esmagados e as pontas dos dedos amputadas. Seus colegas desesperaram-se e deflagraram um início de rebelião na área, que hoje é um dos principais pontos turísticos da cidade. A polícia chegou descendo o cacete e, na confusão, outro travesti foi baleado e morreu horas depois no Souza Aguiar.

Dizem que foi essa a situação que levou Antônio Rodriguez, segurança do Carioca da Gema, casa de show na Mem de Sá, a escrever um lindo poema sobre o acontecido. Um amigo de Antônio, que preferiu não se identificar, disse que Antônio era irmão do travesti morto durante a rebelião que se seguiu ao assassinato de Joyce.

Esse texto chegou às minhas mãos da maneira mais fortuita, que não convém revelar agora. Transcrevo abaixo o poema.


a morte e seus olhos tristes

a mancha rubra na parede
foi o beijo odioso da morte
sorriso destroçado
pela dureza do ferro
que reveste a maldade dos corpos

corpo picado de faca
como bruxas a queimar
no fogo frio do preconceito

duas moças turbinadas
de bunda dura e peitos fartos
morreram sem incomodar
a festa da juventude luzidia

ígneo-azul-outrora
que amarga a pizza
suculenta de nosso fracasso

amor morria em mim
como nuvens carregadas
que não chovem sobre a seca

glórias da dor
incendiaram-me os rins
e não tenho ouro
pra destruir o fígado

morreu a explosiva flor
da madrugada intrépida
morreu a outra que me beijava
secretamente no banheiro

deixem-me aqui-lonjuras
observando a queda irreversível
de mim em mim,
nas profundas do inferno
ar-condicionado dos bares de luxo
em que vendo meu sangue
infectado de poeta
por setecentos reais
no dia 30.

A dor de ver o sol chupando manga

ah, não me venham com seus truques,
os esquifes que lhes esperam não foram pagos,
e o tranquilo sol, que hoje chupa manga
não partilha de seus ideais

ah, não me venham com sorrateiros
conselhos místicos sobre o além-mundo
inconvenientes mistérios
que nada a ver tem com minha taxa de aluguel

os poemas são vivos,
sangram, vomitam e tudo mais,
pés cravados na terra
olhos contemplando
esse mundão de Deus

ratos espreitam de seus buracos
querendo comer as migalhas
que os poetas disperdiçam
nos bares da periferia

é claro que o povo dança
na sua dança há ódio
e vontade de poder

os fatos são duros
para a doçura dos olhos

os homens sujos
desconfiam que a limpeza
às vezes exala um cheiro pior
que sardinha
podre

Festa hoje

Não esqueçam. Hoje tem festa de lançamento da revista Miroir, editada pela Priscila Miranda. O evento será no Cariolapa, Av. Mem de Sá 61, RJ. Haverá show ao vivo de samba e a presença de muita gente bonita e inteligente. Eu farei leituras de poemas meus. O ingresso é R$ 10,00. A partir das 20:30.

Triste realidade para o escritor brasileiro

Quinta, 8 de setembro de 2005, 08h14 Atualizada às 15h31
Ibope: 75% da população não sabe ler direito

O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) divulgou hoje, no Dia Internacional da Alfabetização, que 75% das pessoas com mais de 15 anos não sabem ler nem escrever direito. Neste percentual estão incluídos os analfabetos absolutos e os considerados analfabetos funcionais, que somam 68%. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, braço social do Ibope, o número de jovens e adultos considerados analfabetos funcionais é praticamente o mesmo de quatro anos atrás.
Segundo a pesquisa, o número de pessoas que está no grupo de nível 2 de analfabetismo cresceu, passando de 34% para 38%. Este grupo é formado por pessoas que são capazes de ler textos curtos e localizam apenas algumas informações explícitas.

O chamado nível rudimentar (nível 1), que inclui pessoas que tem a capacidade de ler títulos e frases isoladas, se manteve no mesmo percentual dos outros anos, de 30%, segundo . Os brasileiros que apresentam plena habilidade de leitura e escrita somam 26%.

A pesquisa também destacou algumas iniciativas que podem ajudar o brasileiro a compreender e interpretar textos. Uma delas é incentivar o hábito de leitura. E neste caso, foi detectado que a mãe é a pessoa que mais tem influência sobre esta prática. A pesquisa também mostrou que 75% dos entrevistados têm um dicionário em casa.

A pesquisa foi feita em todo o País com 2.002 pessoas de 15 a 64 anos, por meio de testes e um questionário.

Fonte: Terra.

Prévia de entrevista com Ademir Assunção

Na próxima edição semanal do Arte & Política, estaremos publicando uma entrevista com o poeta Ademir Assunção. Abaixo uma prévia fugaz. Lembrando o blog do Ademir está linkado aí ao lado.

Arte & Política - Se fosses obrigado a morar em outro país? Que país escolheria?
Ademir: Egito. Gostaria muito de fumar um hash na tumba do faraó Ramsés III.

Arte & Política - E televisão? Algum programa que lhe chame a atenção?
Durante mais de 20 anos não tive televisão. Há um ano comprei uma e um aparelho de DVD. Por força de hábito, esqueço de ligá-la. Quando lembro, é uma desgraça. Cada vez que tento assistir televisão me convenço de que a raça humana realmente vai pro buraco.

Arte & Política - Acha que a visão política do autor influencia em seu modo de escrever?
De jeito nenhum. Um péssimo escritor pode ser fascista, comunista ou democrata. Um bom escritor, idem.

Arte & Política - Que tipo de literatura você definitivamente não gosta?
Literatura feita por caras que escrevem uns troços juvenis e andam por aí com o nariz empinado, pensando que são uma mistura de Norman Mailer com James Joyce.

Rolling Stones no Rádio Terra



Vale a pena. Clique no link aí à direita, do Rádio Terra e selecione os Stones 70's ou 60's. É de chorar de felicidade e poesia.

A dor extraordinária sob os escombros da insone metafísica

angústias eletrônicas chocam-me a honra azul
do sonho incômodo, o amor profundo
pelo homem vil, pelo mundo
em seus defeitos mais antigos
PODRIDÃO
compreendida como desespero da ética
e tudo grita e luta
tentando ajustar-se às contradições
sangrentas do universo

estou morto, como Deus
triste sou, como seus
olhos cor de adrenalina
e sua boca
de saliva cristalina

minha carta também acende
crudélissimos sentimentos, iras
e temores inauditos
sonhos desmentidos
poemas malditos

não quero o país
cor de rosa dos imbecis de chapéu côco
recuso o sonho imberbe
do comunismo burguês
de intelectuais de calça cáqui

quero o país como ele é
em sua plenitude dolorosa
verdadeiro,
sincero, humilde, grandioso

sou poeta, e as noites
para mim são sempre estreladas,
gotejam sangue, solidão
e lágrimas de liberdade

(Pintura: Picasso)

Lançamento da revista feminina Miroir

Amanhã (quinta-feira 08/09), estará sendo lançada a Revista Miroir, editada por Priscila Miranda, minha mulher, e diagramada por mim. O evento será realizado no Cariolapa, elegante bar e casa de show na Mem de Sá 61, Lapa, RJ, a partir das 20:30. Clique no convite aí ao lado para ampliar e ver em detalhe.

Haverá música ao vivo (sambinha de primeira), a cerveja custa R$ 2. O ingresso é R$ 10,00, mas quem deixar mensagem aqui nesse post, apresentando-se, corre o risco de entrar de graça.

A revista traz matérias voltadas ao público feminino, além de conto inédito de Mara Coradello. Será distribuída gratuitamente no evento. Não perca.

Degenero ao sol-cão da minha crise

Inversamente, sou feliz no desespero: urubu sobrevoando carniças de vontades insatisfeitas. Estou solitário em minha tentativa de enlouquecer-me - triste liberdade que apodrece na agonia suja da noite.

Deus cego? Enchentes, furacões, maremotos, tudo sou, tudo devoro no afã de amar o mundo. Estuprei-me furiosamente no bar, onde almoçavam tubarões de gravata, proxenetas intelectuais sem orelhas, cujos mamilos brilhavam como sóis de plutônio.

Já sei: serei a favor das guerras. Inventarei novas formas de exploração, e uma nova risada de cinismo. Em mim, vivem pássaros angustiados, asas feridas e olhos argutos. Corromper-me-hei, mas não ao ponto de me tornar um deles, os meninos da televisão.

Não querem histórias? Em sacrifício, cortarei os pulsos de um outro eu, e beberei o sangue como quem se embriaga de champagne diante do pai morto. É isso! Serei infame, como eles. Como eles!

Falo do amor, mas subentende-se que é sobretudo o ódio que me move. Doce ódio pelo destino insosso de meu desatino. Não vou! Não serei arauto dos desvalidos de plástico. Meu não será um sim sangrento, armado, feroz e triste. Aurora envelhecida. Dez mil anos de sofrimento e compreensão produziram bilhões de imbecis. Já disse: defenderei as guerras, os bandidos, os traficantes. Morte às mães, às tias, aos jornais, aos amigos. Solidão e guerra, bandeiras do meu novo eu cínico: sucesso e dinheiro virão rápido, como cães, um suicídio.

(pintura: Flavio Shiró - Herança, 1996)

Porque poetas não gostam de política?



está fora de moda, para o artista
falar de política,
a não ser, é claro
se for pra falar mal
do Bush ou do Lula

além do mais,
a situação do poeta
está tão precária
que o próprio diabo
é bem vindo
- o poeta sabe
que o pior diabo
é o estômago vazio

esquerda ou direita
são conceitos ultrapassados
e o poeta está
definitivamente
enjoado disso tudo

no fundo, o poeta
é um ser amargurado
com o mundo democrático...

as democracias
sempre citaram os poetas
como grandes líderes
espirituais
e sempre os deixaram
morrer de fome

os poetas têm saudades
dos tempos antigos
em que eram ajudados
pelos reis e por mecenas
ricos de Florença

as democracias
premiam os best-sellers
e condenam os poetas
a se tornarem
apresentadores de tv

poetas não gostam de trabalhar
e a democracia idolatra o trabalho

poetas adoram a devassidão
e a democracia é puritana

poetas são corruptos assumidos
e a democracia é moralista

poetas revolucionários
em geral são filhos
de latifundiários e isso lá
pros idos do século XIX

o poeta hoje
é conservador
porque tem medo, muito medo
de ser triturado pelo avassalador,
assassino, e hipócrita
idealismo do mundo
moderno

o poeta é absurdamente
individualista
não suporta "o coletivo"

no entanto,
políticos e filósofos,
da esquerda e direita,
não páram de citar os poetas
para justificar sua última tese
sobre a guerra ou a crise

as crises fazem parte do processo
mas não é o governo que libertará o Brasil
e sim poetas, engenheiros, proletários,
camelôs e camponeses,
uns sonhando, outros construindo,
até os ladrões tem seu papel


o Brasil se libertará com livros,
muitos livros,
que esmaguem a ignorância
e a violência
com seu peso inefável
sua força onírica
sua magia transcendental

agora, se não querem
patrulha ideológica
enchendo-lhes o saco
sejam coerentes
não patrulhem
os homens que fazem política
mesmo sendo poetas

são homens e tem sangue
circulando nas veias

no fundo no fundo
você já escolheu seu lado
só não tem coragem
de dizer

Mais um poema vadio

amanhã mais uma vez
vou acordar tarde
preparar um café e ler o jornal
com toda a calma do mundo
embora querendo rasgar
algumas páginas
sobretudo a seção política

amanhã acordarei tarde
sonhando com possibilidade
de encontrar algum dinheiro
e ir ao bar tomar uma cerveja
enquanto a menina de olhos
doces e firmes objetivos
vai no curso de inglês

há algum tempo
perdi-me da poesia
andei procurando por ela
pelas esquinas sujas da Lapa
em livros bolorentos
e filmes antigos

não a encontrei
aí publiquei um livro ruim
e decidi deixar pra lá

me perdi da poesia
agora deixo ela
me encontrar

O lobo do homem

O cão está alerta, brilho de loucura nos olhos baços, fio de sangue escorrendo da boca arreganhada. Animal obediente. O serviço foi bem feito, estão mortos, os dois, o velho e o menino. Terroristas. O sangue tem cheiro de fruta estragada.
Tenho tanta fome. Observo o sangue formando poças na sala. O cão arfa, esgotado pelo esforço. Olho os corpos e tento imaginar que são dois animais mortos, suas carnes frescas esperando a consumação final.

No alto do prédio, há um terraço. Posso fazer o churrasco lá. Escuto tiros na rua. O mundo se afunda na guerra. Se eu não o fizer, outros hão de fazê-lo. Morrerei de fome por causa dum princípio pré-apocalipse?

Foda-se, hoje vou jantar de qualquer maneira. Eu e o cão. Faço uma carícia em sua cabeça. Ele me olha agradecido por ter optado pela solução mais racional.

(pintura: Francis Bacon)

Um poema de Roberto Piva

Tenho ouvido muito falar de Roberto Piva. Agora o camarada Flavinho Mello, em entrevista para a Revista Entre Livros, também cita Roberto Piva como uma de suas influências. Acredito que muita gente também não conhece esse curioso poeta paulistano. Abaixo um poema dele.



A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos

Roberto Piva - Paranóia (1963)

O cão e o nariz: um conto pós-moderno

Emilio Mogilner
www.123emilio.com


Sobre o amor, nenhuma palavra. Sexo. Isso sim. Corpos suados. Uma transa feita sem ventilador, no verão escaldante do Rio. Esperma, esperma, litros e litros de esperma, e a garota bebendo o esperma num copo, como quem bebe uma vitamina e diz: "Hum... que gostoso".

A garota não é tão garota, trinta e cinco anos. Seios pequenos, cadeiruda, movimenta-se rápida e fica repetindo: "me come... me come..."

Depois da transa, saímos. Fomos a um barzinho, beber cerveja, conversar. Ela me perguntou, em tom de ironia, se eu queria casar com ela. Claro, eu disse, quando? Combinamos de nos casar depois do carnaval.

Claro que é depois do carnaval, ela riu. No carnaval, ninguém é de ninguém.

Aí eu vi o cão. Ele estava na porta do bar, olhando-me sarcástico, com a língua de fora. Ergui-me e gritei para o garçon. Vocês deixam cachorros entrarem nesse bar?

Como se tivesse compreendido o que eu dissera, o cão latiu e partiu pra cima de mim. Desviei-me e o cão caiu sobre minha noiva. Seus dentes cravaram-se no belo nariz de Andrucha, e arrancaram-no.

Terminamos a noite no hospital: Andrucha mutilada, e eu decidido a adiar o casamento até que tivéssemos dinheiro para uma plástica de reconstituição do nariz.

O menino

Emilio Mogilner
www.123emilio.com

Ele vendia laranjas junto ao muro da casa do pastor. Chorava muito, uns moleques o haviam roubado. Eu esperava o pastor chegar e vi tudo. Aproximei-me do menino e perguntei quantas laranjas tinham levado. "Dez", ele disse, entre soluços. Estendi a ele uma nota de dois reais, que cobria o prejuízo. Ele olhou a nota, perplexo, sem entender que eu queria apenas ajudá-lo. Depois, sem falar nada, apanhou a nota e guardou-a no bolso. Reparei que uma de suas mãos tinha um aspecto estranho. Era grande demais, a mão de um adulto, com pêlos.

A mão esquerda era normal, mas a outra era bizarra. O menino notou que eu observava sua mão e a escondeu no bolso da calça. Encarou-me com um olhar frio.

O mercedes negro do pastor parou diante do portão e ele saiu. Esqueci do menino e me dirigi ao pastor, sorrindo forçadamente. Vinha ali numa missão delicada: vários fiéis da minha igreja contaram-me que o pastor Sávio estava recebendo em sua casa gente de péssima fama na região, políticos acusados de corrupção, empresários suspeitos de ligação com o tráfico. Havia ainda o boato de que estariam ocorrendo orgias, com presença de prostitutas, na casa do pastor.

O pastor Sávio cumprimentou-me, muito rígido, sem sorrir, e olhou para onde estava o menino, que tirou a monstruosa mão direita do bolso e acenou.

Entramos na casa, após atravessarmos o jardim, e eu me instalei num dos grandes sofás do salão de visitas. Um crucifixo pendurado na parede, sobre a televisão, parecia feito de ouro, e me despertou a curiosidade em relação à maneira como o pastor obtinha tanto dinheiro operando numa das paróquias mais pobres do Grande Rio.

Estava absorto em meus pensamentos, aguardando o pastor, que pedira uns minutos para tomar uma ducha, quando senti alguém tocar em meu ombro. Virei-me, surpreso, e vi o menino das laranjas. Seus olhos tinham um brilho febril e reparei que segurava, na outra mão, a mão peluda e grande - vi que segurava uma faca. Gritei.

Acordei empapado em suor. Minha mulher me olhava assustada, de pé ao lado da cama, apontando para a sala. "Sávio, acorda!", a polícia está aqui. Levei alguns segundos para reunir os pensamentos. O sonho fora tão real! Depois, um temor agudo paralisou-me. Havia algo de muito estranho em tudo aquilo. Aquela mulher... não era minha mulher. E, porra, meu nome não era Sávio! Levantei-me num salto para me olhar no espelho pendurado sobre a cômoda. Meu rosto!

Eu não era eu! Lembrei-me do menino e sua mão horrível. Tentei recordar a noite anterior e senti uma espécie de dor aguda na cabeça.

Só muitos meses depois, conversando com um velho na prisão, descobri o que me acontecera. O pastor Sávio, ciente de que seria preso, realizou uma ritual satânico através do qual transferiu minha consciência para seu corpo, a dele para o meu.

E quem era o menino?, perguntei.

"Você ainda pergunta?", disse o velho, "o menino era... Ele", persignou-se, assustado.

poema sindical

o sonho endureceu antes da noite
antes de converter-se em amor
antes mesmo de ser solidão
amargura e férias
na estação do inferno

o sonho era um verão desgovernado
pássaro de óculos
fé das velhas matriarcas
riso ensanguentado das crianças
que gostam de cair de árvores

Estupro na Joaquim Silva

Pensava poder resistir. Brava gente brasileira, cantarolava baixinho, enquanto mirava o xixi numa aranha enxerida perambulando no muro. Resistirei, dizia de mim para meu zíper, fechando-o cuidadosamente devido à falta de dinheiro na cueca; pela falta mesmo da própria cueca.

Eles estavam estuprando a garota no vão entre o monza e o muro da joaquim silva. Aproximei-me e vi os peitões da morena. Não gritava mais, de tanto que apanhara. Devem ter lhes quebrado os dentes, pensei distraidamente, chegando perto, pau duro.

Só na boquinha da hora, tomei a decisão. Peguei a barra de ferro que eles usavam nos assaltos, ingenuamente jogada junto a um dos pneus do monza.

Dei uma cacetada tão forte na cabeça de Antônio que ela rachou como um côco. Ricardo, que obrigava a moça a chupar sua pica espetando-lhe uma faca no pescoço, para se prevenir de mordidas, fixou seus olhos vazios em mim.

Dei-lhe uma cacetada também. Devido à minha posição, não fui tão eficiente quanto com o primeiro. Ricardo caiu de lado, sangrando por todos os buracos do rosto: nariz, boca, olhos, ouvidos, mas atento e esperto. Quando me aproximei, ele passou-me uma rasteira e caí.

Escutei o som de madeira rachando.

A garota levantara-se e batera na cabeça de Ricado com um paralelepípedo.

Seus peitos balançavam, livres, selvagens. Eram bem redondos, com grandes mamilos rosados.

Palestina

Elas engasgavam sangue, porra e cachaça: na cama, junto com armas de fogo e plantas medicinais. Ana e Ana eram duas e a mesma pessoa, repetição poética que explodia em Hebrón às três horas da tarde. Por liberdade, elas morreram, pela Palestina sublime, eterna - incêndio negro e impossível.

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