Crise de inspiração

(essa é minha última crônica para o Bagatelas - última no sentido de mais recente, é claro, não de derradeira)

Há semanas que estou em crise de inspiração. Todas as histórias me parecem repetitivas. Toda linguagem me parece enfadonha e pouco original. Pra piorar, minha mão direita dói. Tô com tendinite.

Já inventei histórias escalafobéticas sobre mim, escrevi uma crônica sobre a velha (desculpa esfarrapada), interpretei psicodelicamente as aventuras da turma Bagatelas. Agora há pouco, enlouqueci no recém criado grupo de discussão Bagatelas e quase arrumei uma briga verbal com um sujeito chamado Sólon.

Até minhas participações nos comentários estão em crise. "Fóda", foi o máximo que pude dizer sobre o conto da Camilla Lopes. Que fazer, meu Deus? Musas, ó Musas, desçam do Olimpo, se é que estão aí, e venham acudir este aflito escritor carioca.

Humm... Hum..... Não veio nada. Vou fazer um café.

Bem, enquanto a inspiração não chega, a gente continua batendo papo. Tenho uma coisa presa na garganta. Encontrei um escritor numa festa, ano passado, e fui abraçá-lo e cumprimentá-lo pelo seu novo livro. Ele me disse que a gente "nunca vai escrever como Guimarães Rosa". O negócio me atingiu em cheio. Puta que pariu! O cara tá certo. E daí? Foda-se!

Eu adoro Guimarães Rosa, mas sei que ele tem um defeito. Não fala de cidade, de metrópole, e o Brasil hoje é 80% urbano. Portanto, há que surgir o escritor urbano.

O café ficou pronto. Acho que agora vai. Vamos começar assim. Um homem sentado numa praia deserta. Não, deserta não. Uma praia cheia de gente, mas é como se estivesse deserta, porque ele está sozinho e se sente isolado. Ele olha o mar e vê as pessoas entrando na água, pegando onda, as crianças mijando. Ele sabe que muitas entram no mar para mijar, mas todas, naturalmente, disfarçam muito bem. Nosso personagem, então, descobre um passatempo maravilhoso: identificar quem está no mar por puro prazer e quem está por necessidade fisiológica. Em primeiro lugar, é preciso observar as pessoas antes de entrarem na água. Algumas já vem com uma expressão meio aflita no rosto, o que seria um sinal. Bem, não é tão difícil. Como o mar está um pouco agitado, as pessoas que querem mijar são obrigadas a ficar completamente paradas, mais perto do raso, numa postura rígida, uma expressão sempre algo constrangida.

Nosso personagem, que se chama Sherwood Anderson (não me perguntem porque ele tem esse nome, foi seu pai que deu, provavelmente em homenagem ao escritor americano), resolve entrar na água. Não, ele não quer mijar, não agora. Seu objetivo é nadar, até o fundo, até bem longe. Quer se matar? Não, mas de fato ele não me parece muito bem, está se arriscando demais. O mar está agitado. Ele se afasta cada vez mais da praia. Um conhecido seu, que o observava de longe desde o início da história, mas que não lhe dirigira a palavra, olha preocupado para nosso personagem, a esta hora quase invisível.

Ele quer alcançar as Ilhas Cagarras. É, ele estava em Ipanema, no posto 9. Nunca ninguém de suas relações havia tido coragem de fazê-lo. As Cagarras distam uns quatro ou cinco quilômetros da praia. Que eu saiba, somente nadadores profissionais, com apoio técnico, poderiam realizar esta proeza. Ele está louco, o personagem! Sim, está louco. Não nadou nem dois quilômetros e começa a sentir uma forte câimbra na perna direita. Olha pra trás. A praia parece bem mais distante que a ilha. Resolve continuar, mas a perna dói, atrapalhando o desenvolvimento do nado.

Ai, Musas, que fazer? Mato o personagem afogado? Faço vir um deus ex-machina e o salvo? Os céus trovejam e começa a cair uma tempestade. Dessas súbitas e terríveis de verão. O mar se agita, e nosso personagem está engolindo água. Ele chora, a sua vida inteira lhe passa pela mente, como um filme em forward. Grita por socorro, mas o barulho do mar abafa sua voz e a água salgada invade a boca aberta, fazendo-o engasgar e perder o fôlego.

O fim está próximo para o nosso herói. O que ele pensa nesse momento derradeiro? Bem, ele não pensa nada. Sente apenas uma grande e angustiante vontade de mijar e cagar. E ninguém vai reparar! Ele ri. Enquanto caga e mija, as ondas quebrando-lhe por cima, fazendo-o engolir cada vez mais água, ele ri. Debaixo d'água ele ri. "Posso mijar e cagar à vontade, ninguém me verá! Ah Ah Ah!" Nunca se viu alguém realizar suas necessidades com tanta alegria.

É quase uma morte feliz.

Peraí. Antes de morrer afogado, ele põe sua cabeça para fora d'água e olha para o céu. O que vê? Ele me vê! Um grande rosto no firmamento, os olhos gigantescos, monstruosos. O nariz do tamanho da Ponte Rio-Niterói. Sim, ele vê a mim, o Autor, que está rindo mais que ele. Eu digo: "eu estou te vendo, otário! Estou vendo você a cagar a mijar no oceano. Personagem sem-vergonha".

Ele morre enfim, com cara de besta, sem entender nada.

Buk no Rio




Passei a tarde numa biblioteca pública, saboreando Factotum, de Charles Bukoswki, um dos poucos dele que ainda não tinha lido. Devorei quase tudo, tenho que voltar lá para terminar o livro, mas as páginas assimiladas me fizeram refletir sobre as diferenças entre os escritores de lá e os daqui. (nota: tenho que ver o filme Factotum)

Em primeiro lugar, compreendi mais um pouco o carinho que os brasileiros têm pelo velho bêbado. Ele é pobre, fudido e mau pago, como a gente. Esta é a razão da afinidade que sentimos. Outra, ele é humilde, diferente do caráter padrão do norte-americano, arrogante e prepotente.

As semelhanças páram por aí. Um escritor brasuca que se dispusesse a imitar a trajetória etílica do velho não aguentaria quinze dias - o tempo que se leva para uma crise aguda de fome.

Em Factotum, Buk viaja pela América dos anos 40, em plena Guerra. Os EUA haviam se tornado o principal fornecedor de alimentos, insumos e armas para o palco de guerra. Além disso, dezenas de milhares de homens lutavam no front, desafogando o excesso de mão-de-obra no país. Buk vaga por várias cidades, sem emprego, sem dinheiro e mesmo assim dorme em hotéis e passa o dia inteiro bebendo.

O jovem Henry Chinaski, alter-ego de Buk, dá-se ao luxo de passar dias sem folhear os jornais à cata de emprego, e quando o faz arruma um trabalho quase que imediatamente. O trabalho, apesar de pesado e braçal, sempre lhe proporciona grana suficiente para beber uisque, comprar um carro usado e dormir em hotéis baratos.

No tempo livre, entre uma dose e outra, Chinaski escreve. Aí entra outra diferença. Ele envia contos pelo correio para as revistas literárias de sua preferência. São muitas as revistas literárias consagradas nos EUA. E todas, quando aceitam publicar contos dos novos autores, pagam-lhes quantias razoáveis.

A história de Buk em Factotum é muito parecida com a de John Fante em Pergunte ao Pó. Não é outra razão do velho ter se apaixonado pelo livro.

Também li poemas muito bonitos do velho de uma livro recém-publicado, título irrepetível aqui. Sabe, podem falar o que quiserem, gosto cada vez mais desse pinguço filho-da-puta. Não digo isso por deslumbre, nem estou descobrindo Buk agora. Gosto dele bem antes de virar moda, desde o final da década de 80, quando eu era um adolescente desajeitado lendo Cartas na Rua na biblioteca nacional. Desde então, já li quase todos os clássicos, antigos e modernos. Ainda sou um rato de bibliotecas, lendo tudo que me aparece pela frente. Mas são poucos os livros que me dão tanto prazer de ler como os do velho. Por trás de suas histórias, de seu humor corrosivo e calejado, há um humanismo intenso. Uma coisa que acho que faz falta por aqui, um calor humano que o Brasil finge que tem mas que não tem porra nenhuma. Somos um país de pessoas frias, filhas-da-puta no mau sentido, uma burguesia mais cínica e mais burra do que em outros países.

Por isso gosto tanto de ler o velho Buk, para sentir essa fé... não no homem, mas na humanidade, se é que me entendem. Podemos às vezes nos sentir cercados de idiotas, ou mesmo nos sentir idiotas, mas sabemos, pela música, pela literatura, pela arte, que a humanidade é mais que isso. Que a humanidade é surpreendente e que o mundo, por mais que nos dê uns murros de vez em quando, é o mesmo mundo que pode, a qualquer momento, nos oferecer um bom gole de uísque, uma buceta quentinha e um maço de notas, só pra calar nossa boca resmungona, nos fazer olhar a vida nos olhos e dizer: vem cá sua vadia, eu te pago mais uma!

Crônica de uma cidade morta

Rebeliões nos presídios, ataques a policiais, ônibus incendiados, ruas desertas, lojas, bares e shoppings fechados. A rotina da megalópole que disputa com Seul o título de maior cidade do mundo foi severamente abalada pelo crime organizado. Uma leitura isenta e crítica de vários jornais e sites noticiosos permite algumas conclusões sobre o que realmente aconteceu a este município com mais de 10 milhões de habitantes. Hum, não somente à cidade, mas à todo o estado de São Paulo, o mais rico, mais desenvolvido e mais industrializado do país.

Bem, o que aconteceu foi que o PCC, Primeiro Comando da Capital, principal organização criminosa do estado, originado aparentemente dentro dos presídios paulistas, ordenou um ataque sistemático e geral às autoridades. Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, líder do PCC, insatisfeito com o tratamento recebido pelas autoridades penitenciárias, decidiu mandar um aviso à sociedade civil: me respeitem ou eu páro São Paulo.

E parou mesmo. Até conseguir o que queria. A maior cidade do país entrou em pânico, vivendo a maior crise de segurança pública de sua história. Os ataques só cessaram após encontro de autoridades do governo paulista com Marcola e a aceitação de suas exigências, dentre as quais a instalação de 60 televisores de plasma nos principais presídios do estado.

Muitos cidadãos acharam que o pânico foi excessivo. Outros acharam que tudo não passou de boataria. Bem, se você acha que a morte de quase 100 pessoas em apenas 2 dias, 80 ônibus incendiados, ataques a prédios públicos e rebelião em presídios, se você acha que isso não deveria despertar pânico na população, então você está pronto para residir em Bagdá, numa casinha bonita perto de uma base americana, e só para mostrar coragem hastear uma bandeirinha dos EUA no jardim.

O negócio foi feio. O ex-governador do estado, dr.Geraldo Alckmin, soltou mais uma de suas pérolas de sabedoria: "criminalidade é uma coisa séria". Que bom que temos políticos dotados de tanta visão e inteligência! Não fosse ele dizer isso, por quanto tempos ficaríamos iludidos, pensando que a criminalidade não passa de brincadeirinha inocente de garotos mimados! Quando fôssemos assaltados, diríamos aos bandidos: "pára com essa brincadeira, seu bobo, aponta essa arma para lá!". Iluminados pela sabedoria de nossos políticos, podemos tocar nossa vida.

A declaração do governador Claudio Lembo - que não fosse pelo episódio jamais seria tão conhecido nacionalmente - de que a situação estava "sob controle", também foi fundamental para nos tranquilizar. Mesmo aqui no Rio, eu estava preocupado com o que ocorria em São Paulo. Após ouvir Lembro dizer que a situação estava controlada, relaxei e fui dormir tranquilo como um bebê dopado. Ou morto.

O fato é que o PCC matou São Paulo por dois dias e duas noites. As febris madrugadas paulistanas converteram-se em noites vazias e silenciosas. A solução para o problema é complexa. A direita quer endurecer, a esquerda não sabe o que fazer. A classe média quer repressão. Os pobres pagam o pato: a polícia invade as periferias, mata uns pretinhos, diz que são traficantes e sacia a sede de sangue da opinião pública. Intelectuais e artistas voltam a ocupar bares da moda e bebem e cheiram os problemas.

Uns dizem que a melhor saída para o problema da segurança pública nas metrópoles brasileiras continua sendo o aeroporto. Sinceramente, não tenho respostas. Não sou especialista em segurança. Mas tenho uma opinião. Em meio a tantas notícias e declarações sobre o caos paulista, alguém disse que os presidiários têm regalias demais em Sampa. Bem, até onde eu sei, é o contrário. Temos presídios super-lotados, com pessoas vivendo em condições desumanas. Disseram também que é preciso aumentar a pena. Outra besteira, a meu ver. Tem é que transformar os presídios em centros de reciclagem. Investir mais na área de inteligência da polícia e usar menos truculência no trato com as comunidades. Detectar as áreas urbanas mais sensíveis e realizar aí investimentos sociais maciços.

A sociedade civil também precisa participar mais. Em vez das toneladas de teses sobre o homossexualismo de Miguel de Cervantes ou a crise do ser em Heidegger, as universidades podiam contribuir com mais estudos, pesquisas e propostas sobre o tema. Todos os cursos poderiam ajudar, inclusive o de Letras (para ficarmos no terreno literário do exemplo que usei), que poderia elaborar teses sobre o imaginário de violência que prospera na periferia, e como usar a arte e a literatura para convencer crianças e jovens de que o caminho da paz pode ser muito mais corajoso e frutífero do que pegar em armas e lutar uma guerra insana e suicida contra o Estado de direito.

Crônica de uma tarde bêbada

(Conto publicado na última edição do Paralelos, corrigido)


Tenho feito caminhadas pelos arredores da Cruz Vermelha, esmiuçando antigos casarios, sobrados coloniais, a rica e decadente arquitetura do centro da cidade. Há uma energia misteriosa nas ruas cujo significado procuro decifrar. Saio de casa à tarde, por volta das três ou quatro horas. O céu muito azul. Subo a Riachuelo, passando pelo Hospital Espanhol, a Academia Brasileira de Filosofia, entro pela Marques de Pombal, viro na Irineu Marinho, paro num bar e peço uma cerveja.

A sede do jornal O Globo fica na esquina. Enquanto bebo cerveja, procuro identificar algum jornalista. Não vejo nenhum, apenas algumas moças com pinta de estagiária andando apressadas.

Finalmente aparece um cara com pinta de jornalista. Alto, branco, olhos azuis, óculos de aros vermelhos, a roupa limpa e bem passada, cores claras e alegres. Tem um porte altivo, orgulhoso, deve escrever sobre política. Um desses jornalistas que, apesar de assinarem as matérias, a gente nunca sabe o nome, nem lhes conhece o rosto, porque só os colunistas é que ficam famosos.

Ao passar por mim, ele me olha fixamente, de forma um pouco exagerada. Minutos depois ele retorna, entra no bar. Compra cigarros, me observa de perto. Sustento o olhar. Ele sorri, pede um uísque, não tem, pede um conhaque, bebe, me encarando sorrindo. Eu sorrio, iniciamos uma conversa amena. Ele é jornalista, de fato, de política, na mosca!

Na casa dele, cheiramos umas carreiras, ele pergunta se estou com fome, não estou, ele abre o bar e pega uma garrafa de uísque. Eu vou até o som, escolho um cd, ligo, fico dançando, excitada e feliz no centro da sala.

Enquanto danço, excitada, no centro da sala, olho-me no espelho e vejo um homem. Eu sou agora o jornalista de óculos de aros vermelhos, eu sou alto, branco, de olhos azuis e a mulher, que era eu, está sentada no sofá, beijando outra garota. Vou até o bar, completo meu copo, pego o gelo e lembro do que fiz durante o dia. Conversei, ao telefone, com um senador, que me transmitiu informações explosivas sobre a crise política.

As duas prosseguem a perfomance. Uma é garota de programa. A outra, ex-eu, é meio estranha, mas bonita. Encontrei-a num bar perto do jornal. Disse-me que estava escrevendo uma crônica sobre a Cruz Vermelha e precisava de histórias.

Elas páram de se beijar. Uma delas está sem camisa, tem seios grandes, com mamilos enormes, inchados, respira forte, quer sexo. Chamo-a de peituda, ela ri, tem dentes um pouco cavalados, mas o rosto é harmonioso, olhos castanhos claros, nariz fino e lábios suavemente carnudos. Ela acaricia os próprios seios e roça uma perna na outra.

A outra é a escritora, magra, seios pequenos, olheiras profundas muito sensuais, chamo-a de Sherazade. Ela tem um sorriso giocôndico, está cheirando muito pó, digo para tomar cuidado, esse é puro.

No espelho vejo que continuo sendo o jornalista alto, mas estou um pouco mais gordo, e não tenho mais os olhos azuis. A peituda desapareceu. Há somente eu e a escritora na sala, nós dois dançando, eu beijo seu pescoço, ela estremece. Ela me diz que estuda jornalismo, que está desiludida com a profissão, uns vendidos. Não estico o assunto enjoado, já sei o que ela vai falar, sempre a mesma coisa. Beijo sua boca, ela me morde os lábios.

"Puta que pariu! Você me machucou!"

Ela tem um olhar estranho, me dá calafrios. Me afasto um pouco, olho bem dentro de seus olhos, vejo um brilho de loucura, que merda, não tenho sorte com mulher, quando é bonita é louca, quando é legal é um tribufu. Ela pega a estátua de mármore sobre a mesa e parte pra cima de mim, insana!

No espelho, levo um susto, sou eu quem segura a estátua de mármore, estou no meio de um impulso, acerto a cabeça do jornalista, ouço o som dos ossos partindo. O sangue espirra na minha roupa. Ele cai, desacordado, morto?

Revisto à casa à procura de jóias, dinheiro, carteira, agenda. Encontro a agenda, dou sorte, ele anota as senhas do cartão. Limpo as impressões digitais, apago a luz, saio do prédio chique em Ipanema, tomando cuidado para não ser vista por ninguém. São três e cinquenta da madrugada.

Entro no carro dele, estacionado na rua, disparo pelas avenidas, acelero enlouquecidamente no aterro.

Acordo no dia seguinte, vou ao banco, saco o máximo de dinheiro, compro os jornais, paro num bar perto da Cruz Vermelha para beber uma cerveja. Dali a meia hora, vou ao banheiro fazer xixi, o espelhinho me devolve a imagem de um homem com aproximadamente trinta anos, muito bêbado, tentando organizar os pensamentos: bem, com sete reais dá para beber exatamente três itaipavas e uma cachaça com limão.

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