Dissidência na Megatongas

Crônica escrita por Antonius Vanquise III, publicada no site Andrômedas do Passado, em 22 de junho de 5.201 DC.


Volto à minha coluna para contar a história da dissidência ocorrida na revista Megatongas, aquela mesma da qual eu falei meses atrás. Aconteceu em meados de 2006, quando os escritores Holgo Benário e Vira Chopes decidiram não mais participar da publicação.

Vira vinha, há algum tempo, enfrentando atritos com o editor de Megatongas, Confrócito, devido à mania deste de implicar com alguns termos usados por ela, e estar sempre posando de grande crítico literário. No início, Vira aceitava as críticas de Confrócito mas, depois de algum tempo, percebeu que se tratava de pura implicância. Por exemplo, ele queria que ela substituísse o termo “idiota” por “bobo”, e coisas do gênero.

Holgo Benário decidiu sair da revista em função de uma súbita tomada de consciência. Com as sobras orçamentárias da primeira edição da revista impressa, a Megatongas havia publicado o romance A Arte de Peidar, de Luiz Inácio Nogueira. Benário não viu problema porque confiava no gosto de Confrócito como editor.

Em São Paulo, onde fizeram o lançamento da revista impressa e do romance, Benário, instado por sua mulher, comprou o livro de Nogueira, pagando vinte reais. No dia seguinte, Benário deu início à leitura, e ficou muito decepcionado com a quantidade de erros encontrada logo nas primeiras páginas. Parou de ler, e foi estudar coisas mais interessantes. Até que lançaram um segundo número da revista impressa, e Benário reparou que o próprio editor, Confrócito, havia assinado e publicado uma resenha sobre o referido livro.

Pôs-se a ler a resenha de Confrócito e ficou estupefato com frases do tipo: “Nogueira é um escritor que tem o talento da escrita” e “Arte de Peidar está aquém e além do gênero policial”. Num primeiro momento, Benário ficou aliviado ao pensar que Nogueira fosse um escritor que tivesse o talento da escrita e não da prática do karatê ou do canibalismo, mas depois um sentimento de perplexidade foi crescendo no espírito de Benário e ele decidiu fazer uma leitura crítica e detalhada do romance em questão.

Foi uma experiência terrificante. O que mais espantou Benário não foram nem os milhares de erros de sintaxe e gramática, e sim a proliferação de clichês baratos, diálogos ridículos, cenas inverossímeis e muitos, muitos, erros e incoerências de estrutura de história e personagem. Abaixo, transcrevo manuscritos de Benário encontrados em seus arquivos, falando sobre o tal livro.



É inacreditável. Um exemplo pra vocês. Leiam esse trecho, faz parte do diário da personagem principal.

“O ar estava imóvel e a falta de ventos aumenta a angústia de quem sente muitas outras faltas. A paz era incômoda, a tranquilidade que antecede as grandes catástrofes”.

Bem, nunca soube que falta de ventos aumenta angústia de ninguém, nem que a paz fosse incômoda, mas isso não vem ao caso. O negócio que é havia falta de ventos, repararam? Pois bem. Logo depois ela continua:

“Otávio havia saído para dar sua caminhada habitual. Levantei-me para aumentar a potência do ar-condicionado central e ao passar pela janela, o parque me chamou a atenção.”

Ã? Não havia falta de ventos? Ah tá. Ela estava dentro de casa, com o ar-condicionado ligado. Até onde eu sei, isso implica em janelas fechadas e... ausência de ventos. Ok.


Saltarei as anotações que fiz para uma série de deficiências. Vamos às piores. Ainda no capítulo em que a viúva escreve em seu diário, ela descreve a cena em que conversa com um vendedor de côco, o Gérson, o homem dos olhos terríveis.

“Eu nunca sei mesmo a hora certa de mostrar minha cultura e falei: Isto me lembra Tchecov, o escritor russo que seria um médico frustrado se não fosse a carta de Grigorovitch, outro escritor, que o encorajou a se entregar à literatura”.

Trata-se de um diálogo totalmente estapafúrdio. Sei que as categorias da verossimilhança, tão defendidas por Aristóteles, já estão meio fora de moda, mas... puta-que-pariu! Tudo tem limite.

Ah, reparem como o autor pontua o diálogo, com ponto, aspas, ponto de novo, ou vírgula. É uma orgia de pontos e vírgulas e aspas. As aspas estão bêbadas, os pontos drogados e as vírgulas se aproveitam para bolinar todo mundo.

“Sim..”,,, lágrimas começaram a rolar pelo rosto da viúva. “Depois de matá-lo, ele levou o seu relógio, sua carteira e os seus sapatos. Ele é frio e cruel. Como uma lebre, encostou o revólver na cabeça do meu marido e fez os disparos. Foi uma execução covarde.”

Como uma lebre? Como uma lebre? Aí é foda!





Benário ficou atônito com tudo isso. Não compreendeu como Confrócito pôde publicar um negócio desses e ainda fazer uma resenha que começa, escandalosamente, chamando Nogueira de “talentoso”.

A resenha tem tantos erros que não ajuda em nada o romance. Benário cita uma frase da resenha: “Um suposto niilismo é evidente na obra”. Ora, se o niilismo é suposto, não poderia ser evidente. Questão de lógica. Mas isso é o de menos, diz Benário. Há outras pérolas. O texto é uma verdadeira bomba escatológica.

Irritado com o que lera, Benário decidiu se desligar do grupo. Alguns anos depois, lançou um livro que, infelizmente, foi ignorado pela crítica. Com trinta e cinco anos, morreu num acidente de carro.

A incrível história do anão

Entrei no bar e Cardan estava sentado à mesa, junto a uma corja brilhante de outros artistas, malucos, bêbados e alguns nobres correspondentes do sexo oposto. Pareciam estar todos bem altos, o que era compreensível, dado o avançado da hora – eram duas da manhã – e o número de garrafas vazias. Alguém me reconheceu e berrou:

“Miguel do Rosário! Sente-se aqui conosco! Ô Clebinho, traz um copo e mais uma cerveja!”

Pedi licença para pegar uma cadeira desocupada numa mesa ao lado, com três rapazes mau humorados, provavelmente desgostosos com a fatalidade de terem estacionado sua boemia discreta ao lado daquele grupo tão silencioso quanto a Regina Casé e Elisa Lucinda recitando poemas eróticos debaixo da sua janela, às quatro da matina.

Cardan enfim me reconheceu e acenou pra mim, lançando-me seu olhar alegre e intrigado de sempre. Micróbio, a seu lado, acompanhou seu olhar e também me acenou, entusiasmado com minha presença.

“E aí Rosário? Que tá fazendo por essas bandas?”, falou Micróbio.
“Vim conferir se a cerveja continua gelada por aqui”, respondi, meio sem graça, sentindo-me deslocado por estar completamente sóbrio numa mesa de ébrios. Não era um problema dos mais complexos, naturalmente, e encaminhei logo uma solução pedindo ao garçom uma dose de Salinas. Melhor, duas doses, por favor.

Depois que bebi as duas doses, fiquei mais à vontade. Cardan e Micróbio riam desbragadamente de uma piada contada por um sujeito cuja aparência por si só parecia justificar as risadas. Aí Micróbio – um baixinho de olhos espertos que possuía um sebo em frente a um badalado teatro da praça Roosevelt – virou-se pra mim e perguntou:

“Aí Miguel, contaí sua versão da briga de Cardan com o anão. O Cardan disse que o cara era um mala insuperável, e que por pouco não estraçalhou o sujeito ali mesmo. Como foi a coisa? Cê tava lá?”

Eu sabia que teria que contar aquela história de novo. Aliás, por isso mesmo é que eu estava já na terceira dose de cachaça, fora os golões na cerveja. É público e notório que minha língua enrola nesse estágio intermediário – mais adiante ela desenrolava, embora aí as idéias é que perdessem grande parte de sua consistência e objetividade originais. Resolvi contar enrolando a língua mesmo, até porque o público ouvinte não me parecia capaz de perceber se eu tinha língua ou não.

“Foi uma merda, Micróbio. Encontrei uns amigos num outro bar e ficamos bebendo chops. Era dia da promoção Terça em Dobro, em que você bebe dois chops e paga um, o que nos levava a beber duas vezes mais que o normal. Como normalmente a gente bebia duas vezes mais que a maioria das pessoas, pode-se dizer que, com esta promoção, a gente bebia quatro vezes mais que o normal. Tinha umas dez pessoas na mesa, inclusive o Anão, um artista plástico com ateliê ali pela Lapa. A gente fechou a conta e eu disse que ia para outro bar encontrar um amigo de São Paulo, diretor de teatro, dramaturgo, escritor, ator. A maioria estava cansada e resolveu ir embora, à exceção de Débora e Aline, minha consorte e minha melhor amiga, respectivamente. Levantamo-nos e fomos pra rua. Resolvi dar uma passada no ateliê do Nilson para pegar um livro emprestado e falei pras meninas irem na frente. Quando atravessei a rua, vi o Anão as seguindo, mas não dei muita bola à coisa. Acabei me atrasando um pouco no ateliê e quando cheguei no outro bar, a situação já estava bastante tensa, embora eu, devido a meu estado etílico, não tivesse percebido.”

Cardan interrompeu o meu relato: “Porra Miguel, que jeito de falar é esse? Parece que tá lendo um conto!”

Eu matei um copo de cerveja e retruquei: “Mas isso é um conto caralho! E você é apenas um personagem. Faça o favor de escutar tudo até o fim”.

Cardan olhou para Micróbio, como quem diz: esse cara tá piroca das idéias, mas levou na boa, balançou a cabeça e levantou seu copo de cerveja na minha direção, num sinal para que eu prosseguisse.

“Bem, como eu ia dizendo, quando eu cheguei lá havia nitroglicerina no ar. Mais tarde, conversando com Débora e Alice, elas disseram que o Anão, de fato, encheu o saco. Foi até meio agressivo com o casal que acompanhava Cardan. Era um casal de atores, muito educados, que estavam jantando sossegadamente quando eles chegaram. O Anão iniciou um discurso bem hostil contra o teatro e a TV e sei lá mais o quê. Não era bem o que ele falava, mas a maneira, agressiva, antipática, entende? me disseram elas.

Eu me sentei à mesa um pouco antes do ponto de ebulição. Sinto-me culpado por não ter vindo junto com elas, e evitado que as coisas chegassem nesse ponto, mas não posso me responsabilizar por outro bêbado que não eu.

Foi isso. Cardan explodiu. Começou a falar muito alto, puto da vida, coisas do tipo: FODA-SE A GLOBO, PORRA! VOCÊ SÓ QUER FALAR DE GLOBO! TÔ CAGANDO PRA GLOBO! VOCÊ CONHECE MEU TRABALHO? CONHECE O TRABALHO DELES (apontando para o casal)? ENTÃO?

Depois desse desabafo, ele até se acalmou. O pior veio depois. O Anão quis comprar briga e desatou a praguejar. Cardan olhou pra ele e mandou:

NÃO QUERO SABER TUA OPINIÃO, CARA. TE ACHO CHATO PRA CARALHO. NÃO GOSTO DE VOCÊ.

O Anão se levantou e quis partir pras vias de fato.

OLHA O TEU TAMANHO!, devolveu Cardan, levantando-se também.

Dois garçons já estavam nas proximidades, procurando resolver a questão. Tinham um risinho no canto da boca; devia ser a diversão do mês pra eles.

Nessa hora, consegui superar minha confusão e convoquei o Anão a se retirar. Como ele possuía algum instinto de sobrevivência, aceitou na boa. Acompanhei-o até o bar do outro lado da rua, sentei-me com ele um instante, tomei um copo de cerveja, encontrei um conhecido para fazer companhia (de forma a garantir que ele não voltasse) e retornei ao bar.

Vou confessar a vocês. Eu estava arrasado com aquilo. Não estava nem mais com muita raiva do Anão. Não sou de guardar rancor. Mas é que o Cardan não merecia ter se estressado daquela maneira. Nenhum de nós. Fazer o quê? No resto da noite, quase não consegui falar, tão abalado fiquei com o episódio. Que merda! O pouco tamanho do sujeito revelou-se inversamente proporcional à sua capacidade de atormentar os outros. Eu estava nervoso, deprimido, bebendo num ritmo além do normal..."


“Pára! Pára! Cala essa boca!”

Olhei assustado para onde vinha o grito. Era um senhor sentado na ponta mais afastada da mesa. Sua fisionomia não me era estranha... Hum... Reinaldo de Moraes! O célebre autor de Tanto Faz! A alegria de reconhecê-lo durou apenas um segundo, afinal o cara estava me mandando calar a boca.

“O rapaz, desculpa pedir para você calar a boca assim. Mas é que você não está indo bem. Seu estilo está muito irregular. Uma hora o texto flui legal, com doses de humor inteligente, à lá Chandler, embora um pouco forçado; em outra você cai para um estilo confessional-descritivo barato, vulgar. Além do mais, você tem que criar mais pausas, mais espaços de respiração. A história não é totalmente má. Mas faltou um pouco de suspense, de ação, drogas. Ah, e o Cardan é MEU PERSONAGEM CARALHO!

“Tá certo, Reinaldo. Olha só. Eu não fui nada pegar livro emprestado no ateliê do Nilson. Fui fumar um baseado. Por isso demorei por lá, e cheguei meio aéreo, distraído, sem perceber o curto-circuito iminente."

“Hum, melhorou um pouco. Pode acabar aqui se quiser. Tudo bem, autorizo você a usar o Cardan.”

“Falou Reinaldo, obrigado pela força."

***

Horas mais tarde, na mesma noite, pediram-me para recitar um poema, o qual transcrevo abaixo.

os homens incendeiam esperanças de papel
enquanto esperam o calor das ressacas
que a manhã despeja
na orla suja da praia

excessivos agostos
rompem a pele macia
das crianças que somos
quando pegamos em armas,
ou tomamos uns drinks

luz destruída
pela reluzente merda
das noites tristes
que anunciam
a sublime escuridão
de um futuro sem asas

os erros prosseguem
fermentando em nós mesmos
aleijões sangrentos
que cultivamos
como nossa mais sutil
indignidade

a qual,
a despeito de sua irisada
imperfeição e vergonha
é também o que possuímos
de mais original
- nossa mais fulgurante
contradição, nosso amor
mais secreto e apavorante

o que se oculta
nas dobras da felicidade
perturbando o sono
gerando confusão
é isso, o poeta
é o artífice
da perplexidade

A luz irrompe onde nenhum sol brilha

Esse cara é o Dylan Thomas, poeta britânico nascido em 1914. Não me lembro direito como o conheci. Acho que foi através do conto O Perseguidor, de Cortázar, no qual o personagem principal, o saxofonista Johnny Walker - inspirado no músico realíssimo Charlie Parker - é leitor assíduo de Dylan. Ou então foi através de alguma biografia de Robert Allen Zimmerman, nosso querido Bob Dylan, que homenageou seu ídolo tomando-lhe emprestado o sobrenome. Vale dizer que o músico Dylan fez jus ao empréstimo. Quem sabe um dia eu, enchendo o saco do meu próprio sobrenome, não resolvo me chamar Miguel Dylan? Não, melhor não.

Na época em que eu lia Dylan pela primeira vez, no início dos 90's, aconteceu uma coisa chata. Meu pai teve um infarte e foi hospitalizado. Eu estava fora de casa, acho que em outra cidade. Voltando ao Rio, peguei um ônibus para visitá-lo no CTI. Consegui a proeza de escrever um poema no próprio ônibus. Um poema inspirado em Dylan Thomas, no texto intitulado A morte perderá seu domínio. Lembro que foi uma poesia muito forte, ou pelo menos me pareceu assim (infelizmente, perdi esse poema), que tinha o objetivo bem ambicioso de salvar a vida do meu pai. Minha poesia falava algo como não se deixar levar pelo caminho mais fácil, não se deixar seduzir pelo canto sedutor da morte. Não pude vê-lo naquele dia, mas entreguei o poema ao médico, para que repassasse a meu pai após a operação de safena. Quando retornei ao hospital, no dia seguinte, seus olhos brilhavam, febris, vivíssimos. Disse-me que tinha amado o poema. Aquilo foi importante pra mim. Tive a impressão de que o poema ajudou-lhe num momento difícil. Ele viveu, depois disso, muitos anos. Ainda pôde trabalhar muito e consumir muitos litros de uísque.

José Barbosa do Rosário, meu pai, foi um grande sujeito. Exagerava na bebida, mas sempre foi muito trabalhador e absolutamente íntegro. Chegou do sertão mineiro com 21 anos de idade e algumas notas escondidas na cueca. Nada ver com aquele infeliz assessor do irmão do Genoíno, pego com cem mil dólares no cuecão. Meu pai carregava seus parcos recursos num bolso costurado na roupa de baixo porque minha avó achava - com razão - que o Rio tava cheio de ladrão.

O velho teve dois grandes sofrimentos na vida. Um foi a destruição mental do irmão Cirilo, internado aos vinte anos numa clínica psiquiátrica obscurantista que torrou seus neurônios de tanto choque elétrico. O tio Cirilo ainda está vivo. Eu e meu pai fomos visitá-lo em vários hospícios dos arredores do Rio.

O segundo trauma foi a morte bárbara de seu outro irmão, Francisco, torturado medievalmente por policiais da nona DP do Rio de Janeiro, no finalzinho da ditadura, 1981, o que motivou meu pai a escrever seu único livro, Quando a polícia mata.

Dia desses conto mais histórias do meu pai e dos meus famíliares do Triângulo Mineiro. Adianto só que um tio avô meu era jagunço autônomo, cobrava para matar e colecionava orelhas de suas vítimas numa bolsa de couro que levava sempre consigo, à guisa de curriculum vitae.

É isso, deixo vocês agora, com 2 poemas do Dylan Thomas, tirados de um site com excelentes traduções de Ivan Junqueira e Fernando Guimarães. Para os feras do inglês, pode-se ler originais do poeta por aqui.
**

A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.

Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.

A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.

A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.

A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

( tradução: Fernando Guimarães)

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E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direcção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.


( tradução: Fernando Guimarães)



PS: Por último, pero not least, dêem um chego no site do Claudinei, para ler o texto do Mirisola sobre a Flip.

O primeiro

Imagino os seres humanos como milhões de espermatozóides nadando desesperadamente pelos canais uterinos, disputando um lugar dentro do óvulo, conquistar o troféu, atingir a glória, romper a membrana do anonimato, entrar no mundo quentinho e protegido onde serão alimentados, mimados. Onde poderão se desenvolver e se tornar grandes, inteligentes e poderosos.

Quem será o vencedor? O mais rápido, negando a parábola da lebra e da tartaruga, ou o mais paciente, confirmando-a? O mais esperto, o mais culto, o mais criativo?

O tropel de candidatos passa por mim, atropelando, machucando, pisando no meu pé. A gritaria fere meus ouvidos, o cheiro de desodorantes vencidos causa-me náuseas. Há tempos que observo, inquieto, diante de tal tumulto, minha incapacidade de prosseguir. Deixo-me estar, à margem, sem pressa, contemplando o tumulto cada vez maior.

Uma aparição inusitada

Aconteceu uma coisa tão incrível comigo esta noite que sinto necessidade de compartilhar com os milhares de leitores deste blog, na esperança de que alguém possa me fornecer explicações razoáveis sobre o fato, ou trazer-me o alívio de confessar que também já passou por experiência semelhante. É notório que as pessoas, quando vivenciam uma experiência demasiadamente insólita, ficam constrangidas de relatar o que viveram por temerem a fama de falastronas ou pior, doidas.

Sem mais delongas, vamos ao que interessa. Deitei-me na cama para dormir ontem mais cedo que o habitual, meita-noite. Havia terminado meu trabalho no meio da tarde e gastara o resto do dia num barzinho das redondezas, lendo jornais e o livro A Outra Volta do Parafuso, de Henry James, adquirido por mim, no mesmo dia, pela inacreditável bagatela de 1 real, num sebo de rua ali perto.

À noitinha, vim pra casa, tomei um banho, assisti os jornais da tv, naveguei um pouco pela internet e logo comecei a sentir muito sono, efeito natural das cervejas ingeridas à tarde.

A Priscila estava fora, com um grupo de turistas franceses. Chegou por volta da meia noite e já me encontrou dormindo. Ela me contou que ficou viajando na internet algumas horas e depois foi se deitar a meu lado.

De madrugada, eu acordei com o ruído de teclado, quer dizer, de alguém digitando num teclado, muito rápido. Pelo silêncio absoluto que vinha da rua, constatei que devia ser muito tarde, quase de manhã, e estranhei o fato da Priscila ainda estar acordada. Ia voltar a dormir quando, horrorizado, verifiquei que a Pri estava ali, na cama, dormindo profundamente.

Então, quem estava ao teclado? Eu moro num conjugado, ou kitchennette, dividido ao meio por uma cortina vermelha. Na salinha de entrada, temos uma cozinha americana, a geladeira e a mesa do computador. Do outro lado da cortina, o sofá cama, onde dormimos, a tv e o armário de roupas.

Fiquei paralisado por muitos segundos, procurando em vão acordar do que eu achava fosse um pesadelo. O ruído prosseguia. Às vezes paráva, como se a pessoa tivesse usando apenas o mouse. Dava pra ouvir os clicks.

A essa altura eu sentia um enorme frio na barriga. Passando mal de medo. Mas aí lembrei que podia ser uma amiga da Pri, que ela trouxera sem me avisar, e que agora estava escrevendo em nosso computador. Aliviado com essa hipótese, única explicação plausível, perguntei:

- Ei, quem está aí?

Minha voz soou estranha, trêmula, nitidamente nervosa, por mais que eu tivesse tentado disfarçar o mal estar. Não houve resposta. O ruído do teclado não foi interrompido. Perguntei de novo, num tom mais calmo, procurando afetar o máximo de tranquilidade:

- Ei, quem tá aí na sala?

Nada. Levantei-me. Não conseguia pensar em nada. Sentia-me fraco. Fui até a sala e deparei com uma figura absolutamente desconhecida. Era um homem da minha altura, um metro e oitenta, nem gordo nem magro, pele morena e cabelos pretos, um verdadeiro mestiço brasileiro, como eu. Aparentava ter uns trinta anos e vestia jeans e uma camisa preta de botão. Não fosse um intruso, pareceria inofensivo.

- Quem é você? - indaguei, indo na direção da cozinha pra pegar uma faca.

Ele me olhou de lado com um sorrisinho irônico, deu uns cliks no mouse e voltou a escrever.

Tonto de confusão e medo, alcancei a pia e peguei a faca, que escondi atrás de mim. Observei sua cintura e mãos, à procura de alguma arma, mas não vi nada. Encorajado por isso, falei mais alto:

- Saia já da minha casa, seu... seu... maluco!

O sorrisinho irônico dele dissipou-se; rodou a cadeira giratória pro meu lado e me encarou. Eu senti um calafrio perpassando todo meu corpo: conhecia aquele cara de algum lugar.

- Te conheço? - perguntei.

Ele me olhou de alto a baixo e falou pela primeira vez:

- Nunca pensei que você fosse assim. Patético.

A voz era grossa, aveludada, um pouco rouca; não sei se foi o tom sarcástico... mas aquelas palavras calaram fundo em mim, irritando-me fortemente. Quem era esse sujeitinho que invadia minha casa para me ofender? Mostrei a faca.

- Guarda essa faca, Miguel. Não sabe que eu sou, cara? Eu sou a tua persona literária. Não acredita? Ué, por tanto tempo você implorou para que eu surgisse... Um dia até chorou... Disse que nunca seria um escritor de verdade senão encontrasse sua persona literária.

Minhas pernas amoleceram. Aquilo só podia ser loucura. Tenho histórico na família. Um tio esquizofrênico. Quando moleque, fui visitá-lo várias vezes no hospício. Sempre temi que acontecesse comigo, mas nunca pensei que a coisa viesse assim, de forma tão direta, tão...

- Sei o que você está pensando. Que está louco. É o que todos pensariam, meu caro, numa situação dessa. Mas não é o caso. Acredite em mim. Você está completamente normal. Eu sou a sua persona literária. E mais, já comecei a escrever o seu romance. Olhe aqui, já temos dez páginas escritas.

Ele apontou para o monitor e, com o mouse, fez rolar as páginas escritas no editor de texto.

- Eu tinha que vir em pessoa, Miguel. Não dava mais para esperar você me "incorporar". Você é muito preguiçoso. Várias vezes, quando eu achava que seria o meu momento, você calçava os chinelos e ia pro botequim, beber cerveja ou coisa que o valha. Quantas vezes! Cansei. Eu tenho que viver porra!

De tão nervoso, eu senti vontade de rir e, de fato, soltei uma risada que mais parecia uma tosse. O frio na barriga tinha aumentado. Eu não sabia o que fazer. Apenas olhava, estupidamente, aquela aparição esdrúxula. Aquele demônio.

- Não fique assim, irmão, tudo vai dar certo. Eu simplesmente vou escrever o seu romance, assim como fizeram as personas literárias de John Fante, de Bukóswski, do Mirisola, depois vou embora. Você terá seu livro. Possivelmente, poderá até ganhar prêmios. Com certeza, seu prestígio social vai aumentar exponencialmente. Agora sim, você poderá conversar de igual para igual com todos os escritores brasileiros com a segurança de quem escreveu uma grande obra literária!

Eu estava meio em transe. Não sei bem porque eu fiz aquilo. Alguma coisa naquela persona me desagradou profundamente. Aproximei-me dela e enfiei-lhe a faca no peito, no lugar que eu supunha ser o coração. Enterrei a faca bem fundo e a deixei lá.

A persona me lançou um olhar de perplexidade. Eu sabia o que ela pensava. Ela não compreendia a razão de um escritor matar a própria persona literária. Eu também não entendia. Só sei que me sentia profundamente aliviado. Livre.

Conforme o sangue vazava de seu corpo, ela ia desaparecendo, ficando cada vez mais transparente, até sumir de vez. Eu me sentei na cadeira e, sem me dar ao trabalho de olhar o que estava escrito na tela, apaguei o texto. Depois apaguei o arquivo, inclusive da lixeira.

Quero que as personas literárias se danem, pensei, antes de voltar a dormir.

Filosofia do café solúvel (em gerúndios ascendentes)

Queria ser mais honesto comigo, mais cínico em meus delírios. Aliás, honestidade e cinismo tem origem na mesma palavra em aramaico, sabiam? Realizei algumas experiências meio bestas, assimétricas: porres solitários, leitura de clássicos, observação de coelhos esfolados (depois de fodidos). Apud Mirisola, dei para vomitar estrogonoffs em melancólicas tardes de agosto e estrangular crianças. Na esquina da Maria Antônia com a Consolação, pensei em sequestrar uma menina que chorava ao lado da mãe. Não fui ao show dos Stones em Copa e, desesperado, decidi apelar: relembrei antigos casos de amor. Horrível.

Ela andava aborrecida porque eu não escrevia sobre nossa história. Tenho um bloqueio contra isso. A troco de quê conspurcar a relação com meu fracasso literário? O amor, pra mim, tinha muito a ver com café solúvel e pão com manteiga, às três da manhã. Talvez eu explique isso adiante.

Veja só, com vinte anos eu tinha paixões fulminantes por garotas que passavam na rua. Qualquer sorriso, o mínimo gesto de simpatia, me envenenavam de morbidez romântica. E lá ficava eu, apaixonado como um chimpanzé. Esquizóide, totalmente. Eu era louco, cara, um enfant terrible de merda .

Por essas e outras, falar de amor não dá. Amor se vive assim, assim, às escondidas. Assistindo filme francês, fazendo longas caminhadas, tomando chuva, realizando viagens malucas para Arraial do Cabo, dormindo no colchonete durante um ano, degustando miojo com elegância de artista incompreendido.

Droga, essas coisas me atrasaram. O romantismo babaca, a mania de ficar triste, o escapismo da cerveja e, naturalmente, o café solúvel. Maldito café solúvel!

No início dos anos 90, eu queria ser roqueiro. Eu e um chapa criamos a banda Ratos de Bar e compomos vinte músicas, inclusive alguns pequenos sucessos universitários, como Acidente de Moto e Noites de Inverno. Até que um cara-dono de um estúdio no Rio Comprido engatilhou sua opinião na minha testa: cara, você não toca nada. Fiquei calado, ferido de morte, máscara firme no rosto, bebendo a cerveja que ele nos oferecera.

Naquele momento, eu podia dar uma de Robert Jonhson, sumir por uns tempos, fazer um pacto, e voltar gênio, vingativo. Mas decidi que o melhor era desistir da música e escrever. A merda foi o café solúvel, que estragou tudo.

O amor, baby, prefiro vivê-lo, suave e intensamente. Caçando passarinhos e os lambendo, vivos, bem devagar. Bebendo uísque pelo gargalo, com calma de bêbado profissional. Sobre o café, não dou explicações; é o pequeno mistério dessa noite.

Os porres no bairro de Fátima, bem, insistirei neles. Até agora não me inspiraram porra nenhuma, em termos literários; mas valem pelas filosofias que eclodem entre a quarta e a quinta antartica, antes de vazarem pelo ralo do mictório. Triste pra caralho isso, o esquecimento; ou talvez seja necessário.

- O porre é o botão "reset" da alma.

Além disso, nada mais acintosamente humano que o esquecimento e a ressaca. Infelizmente, também é humano ver mulheres atropeladas por caminhões de gás, tendões estraçalhados por bombas clusters, embora, andei pensando, no fim das contas, alguns pirralhos sobrevivem ao tiroteio, pirralhos azuis, lilases, amarelos. Vale o mesmo para velhas desonestas, que roubam gerânios negros e xepa de feira, criam gatos fedidos e neuróticos e bebem - ó deuses do jack daniels - café solúvel.

A história termina sem conclusões, com parasitas rastejando em minhas costas e o autógrafo de Fagner no álbum da família; longe, longe, a gente bebendo - com doses excessivas de gerúndio - caipirinhas, Dylan cantava I shall be released, apenas isso (dinheiro no bolso, claro): nós mesmos, dois loucos brindando ao nosso amor - apenas levemente ferido por clichês - e à existência e maldição do café... ah, do café e seus mistérios...

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