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O belo e o escalafobético

Por Miguel do Rosário


Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência inflingida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.


Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir - antes tarde do que nunca - uma carreira menos intangível.


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Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma super-valorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre - ou quase nunca - à altura do mestre.


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Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908 – 1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909 – 1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960 – 1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravantantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário, pode eventualmente ser genial, mas isso só ocorre porque consegue causar forte prazer estético no espectador.



A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afeta de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.



Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.



Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.



Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX - unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa - emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: “Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra”.



Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.



Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelângelo.



Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem. Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inagurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.

A volta do marginal

Ensaio sobre o filme Cidade de Deus



Por Miguel do Rosário


Com o filme Cidade de Deus se consolida uma nova escola do cinema brasileiro contemporâneo, superando inclusive a "Retomada", como está sendo conhecido a etapa que se seguiu ao vácuo do início dos anos 90, após o fim da Embrafilme, com os lançamentos de Carlota Joaquina e, um pouco mais tarde, Terra Estrangeira, sob os auspícios da Lei do Audivisual. A exploração estética da poesia suburbana das metrópoles representa um ressurgimento triunfal da idéia preconizada por Glauber Rocha, que nos anos 60 escrevia que o cinema dos países periféricos só alcançaria produzir um efeito estético contundente através da manipulação artística da violência e da fome. O rebelde politizado de Glauber, porém, será substituído pelo bandido cínico do cinema marginal pós-64, como por exemplo o Bandido da Luz Vermelha, visto que a produção cinematográfica estará sob severa vigilância da censura militar.

Esta nova estética marginal do cinema brasileiro não deve ser confundida com a eterna paixão pelo gangsterismo de holliwood, embora as influências sejam inevitáveis. Enquanto o bandido americano (Poderoso Chefão, Scarface, Bons Companheiros, Pulp Fiction) é um capitalista que optou pelo enriquecimento fácil, ou então um caso de perturbação psicológica (Psicose, Kannibal), o bandido brasileiro é mostrado sempre como uma vítima social, um rebelde cínico ou politizado, cujos valores morais foram submergidos por circunstâncias alheias à sua vontade.




Um épico da modernidade - Nesta volta surpreendente da estética marginal, o mesmo herói bandido aparece inserido num contexto sócio-político definido com assombrosa lucidez e encaixado numa película elaborada com um profissionalismo de fazer inveja aos melhores técnicos de holliwood. Embora a censura tenha se esvaído com o fim da ditadura, os cineastas continuam vigiados por executivos dos departamentos de publicidade que aprovam os projetos de patrocínio. Os heróis marginais de Cidade de Deus, por exemplo, não têm nenhum discurso político consistente, porque são totalmente, ou quase, analfabetos. Ainda não é o momento do cinema engajado, se é que ele terá seu momento, já que a arte não necessita de uma forma explícita para atingir um determinado objetivo estético ou político. O ritmo da câmera, a música, as cores, enfim a linguagem, serão suficientes para influenciar a percepção moral dos personsagens. Através destes recursos, Meirelles consegue iluminar os bandidos com uma luz que parece vir da consciência do espectador, que lhes compreende o desvio moral como resultado da realidade dolorosa do Rio ou de qualquer outra metrópole.


Universalismo - Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. Mesmo a guerra das gangues tem um motivo digno da Ilíada: o estupro da mulher de Zé Galinha lembra o rapto de Helena, e a fúria titânica do vingador aparece como a ira de Ulisses. Nesta parte mesma, o narrador diz: "só mesmo um milagre... mas existe um lugar melhor para um milagre do que uma cidade com o nome de Cidade de Deus?". E Zé Galinha, como que protegido por Atenas, deusa da guerra, irrompe atirando, sozinho, contra um bando de mais de doze homens armados, colocando-os em fuga e matando um deles. As mulheres que o rodeiam, enquanto ele observa sua primeira vítima, recordam o coro de uma tragédia grega, expressando os pensamentos da comunidade: "Legal você... Matou bem... Esse foi um, mas ainda não foi todos...".


A galinha em pânico - Voltemos ao início do filme. Churrasco, samba, cerveja, caracterizam, em traços rápidos e precisos, o ambiente da favela. A alegria é contagiante, envolve completamente o público através do contraste desconcertante entre a realidade vibrante da comunidade e a imobilidade quase mórbida da sala de cinema. A galinha, esse personagem inesquecível, símbolo do ser em perigo, do medo e, enfim, da fuga, a galinha escapa da morte, com suas próprias pernas, e pôe-se a correr pelas ruelas, acompanhada pela câmara que, assim, apresenta o público à Cidade de Deus. A cena continua alegre, apesar dos empurrões que Zé Pequeno dá nas pessoas que atravessam seu caminho. Uma introdução clássica, idílica, que mostra de quebra o adorável vestígio rural da periferia onde as galinhas ainda são compradas vivas. Em poucos quadros, alguns elementos centrais do filme são apresentados: Zé Pequeno, líder de um bando armado, obviamente um traficante, a favela, a inocência constante dos personagens, exacerbada pela presença de crianças no grupo. A galinha chega a uma rua mais larga e encontra Buscapé, ele também um ser em fuga, como mais tarde se evidenciará no filme. Buscapé e o animal se enfrentam, como iguais. Começa de fato o drama. Não admira que uma cena tão espetacular fosse o fio que amarra o começo ao fim da história.


Estética negra - A linearidade da história é total. Depois desta introdução, o filme segue uma ordem lógica e tocantemente simples, dando mostra de uma preocupação peculiar de tornar o filme acessível a qualquer pessoa. E ainda temos um narrador onisciente - o próprio protagonista - que explica, em linguagem coloquial e voz pausada, as origens da favela e outros pontos capitais do filme. O recurso à imobilização das cenas, descansando a vista do espectador e dando tempo para a compreensão de determinada cena ou personagem, e os flash backs, que refrescam a memória ou explicam situações, completam uma linguagem assumidamente didática, legitimando a veracidade absoluta da narrativa. Esta veracidade extremada se desenvolve com diálogos espontâneos e personagens escolhidos a dedo, tipos físicos negros e mestiços absolutamente verdadeiros. Com isso, Meirelles consegue enfim superar o próprio Glauber Rocha, que apesar de sua busca apaixonada pela legitimidade social, não conseguiu nunca transformar o homem do povo em sujeito da narrativa. O vaqueiro Manuel, de Deus e Diabo, assim como Corisco, é um personagem de Glauber, uma fantasia bem construída de um diretor genial, mas o Zé Pequeno e demais personagens da Cidade de Deus não são criações de Meirelles, nem de Paulo Lins. Eles são reais, autônomos, personagens nascidos prontos, senhores de seu mundo e auto-referentes. E aí temos outra característica efetivamente revolucionária de Cidade de Deus, digna de ser louvada como um marco na história do cinema brasileiro: a consolidação estética da beleza negra. Com uma honestidade comovente, Meirelles mostrou a negritude essencial do brasileiro, sem traços finos, sem subterfúgios de espécie alguma, praticamente inaugurando uma nova referência estética-racial para o cinema nacional, ainda fortemente preso a uma estética branca e "global".


Pequenas dissonâncias - É difícil encontrar defeitos em Cidade de Deus, mas uma crítica sincera não pode deixar de opinar sobre os pontos mais problemáticos. Alguns personagens são um pouco mal construídos, como o puxa-saco de Zé Pequeno, embora ele seja importante. O próprio Zé Pequeno, apesar de interpretado magistralmente por Leandro Firmino da Hora, peca por um maniqueísmo exagerado, como vilão de história em quadrinhos, enquanto Bené, seu comparsa, assume ares de bom moço um pouco incoerentes com o seu envolvimento em tantos crimes e assassinatos. Esses defeitos, contudo, se é que são defeitos, fazem parte do filme, como nossos defeitos fazem parte de nossa personalidade.

Falta falar da fotografia e da música. Sobre a primeira, o filme consegue um efeito bastante eficiente, ao conferir uma cor antiga, fosca e tênue, e mesmo em preto e branco, aos períodos mais antigos da história, os anos 60, e cores vivas aos períodos mais recentes. A trilha sonora também participa desta ambientação histórica. A entrada das primeiras cenas dos anos 70 é acompanhada por uma música tipo discoteca que serve como uma descrição perfeita da época. Todas as músicas parecem ter sido feitas especialmente para o filme, desde o emocionante Cartola, que sublinha as cenas mais românticas, até o Seu Jorge, com seu suíngue dançante da cena inicial do churrasco.


O sacrifício dos inocentes - Muitos espectadores devem ter ficado chocados, com razão, com a cena de brutalização de duas crianças pequenas, exacerbada pelo fato de que o autor do disparo mortal em uma delas ser ainda uma criança, também violentada pela coerção da qual é vítima por parte dos bandidos mais velhos. Esta cena, porém, tem um significado crucial e representa, paradoxalmente, o momento mais humanista do filme. É porque ela é construída de maneira a evitar, a todo custo, a banalização da morte. As crianças estão ali, contorcendo-se de medo e dor, diante do espectador impotente. Não são bandidos cínicos e cruéis, nem vítimas anônimas. São crianças, frágeis, aterrorizadas, que haviam participado de um assalto tosco de uma padaria, para roubar frango assado, e que não conseguiram fugir dos algozes no momento que eles surgem para cumprir a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade. O espectador participa da cena, a qual é recortada do que vem antes e depois, aprofundando o sentido de estranhamento e perplexidade perante o ato irracional, quase inacreditável, que introduz brutalmente, com uma violência de forma perfeitamente ajustada à violência de conteúdo, uma crítica amarga e ferina a uma sociedade indiferene ao destino das primeiras gerações. Com esta cena, o filme rompe por completo certa solidariedade com o público, a qual é retomada contudo nas cenas seguintes. A participação destes guris, o bando da "caixa baixa", será constante no filme e serão eles, inclusive, que ao fim darão cabo ao vilão-mor da história. A narrativa termina com eles confabulando, de maneira infantil, e terrível, sobre quem deverá morrer na favela.


O galã marginal - O personagem Bené, comparsa boa praça de Zé Pequeno, faz parte do instrumental do diretor para forçar o público a uma atitude compreensiva perante o fenômeno do banditismo. Bené é um rapaz bom, um contra-ponto à ferocidade incontrolável do parceiro. É leal, simpático, carinhoso, sabe amar, sabe ser amigo, e o público não o vê em nenhum momento matando alguém, pelo contrário a sua intervenção é sempre no sentido de preservar a vida dos outros. "Você quer matar todo mundo!", é o protesto que ele repete mais de uma vez para Zé Pequeno. A cena do baile - a despedida de Bené - é um dos pontos altos do filme. Bené conquista o amor da musa da história, Angélica, garota de classe média baixa – filha de um sargento -, que lhe convence a abandonar o crime. Bené não é obcecado pelo poder como Zé Pequeno, ele representa a busca da felicidade. Com o dinheiro do tráfico, ele ascende socialmente, ingressando na turma dos "cocotas", usando roupas de marca, pintando o cabelo de loiro, ganhando um charme irresistível que conquista o público. Após construir uma intensa relação afetiva de Bené com o espectador, o roteirista decide matá-lo no auge da festa, provocando um forte efeito dramático. A despedida de Bené, afinal, era mesmo o fim de sua participação na história. Após sua ida, tudo fica mais sombrio na Cidade de Deus. Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. Sem Bené, o bandido vai desenvolver, sem limites, toda a sua crueldade, como fica claro na primeira cena após a morte do amigo, o estupro da namorada de Zé Galinha. A guerra é deflagrada. Temos um combate. Tiros, muitos tiros. Entra o personagem que vende armas, mancomunado com a polícia. Um personagem espetacular, chamado Tio Sam, numa referência interessante ao principal país produtor de armas do mundo, que gasta tanto dinheiro em repressão de drogas, mas é tão tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.


O combate - As cenas de combate, todavia, são apressadas, entrando o filme numa etapa um pouco mais descuidada e fantasiosa, o que revela talvez um certo desinteresse do diretor pelas cenas puras de violência, priorizando os dramas pessoais dos personagens. Apesar de apressadas, contudo, são eficientes e transmitem o efeito desejado, de que uma violência caótica e desorganizada se instalou na Cidade de Deus. Os assaltos do bando de Cenoura e Zé Galinha, por outro lado, são magistralmente encenados, embora bastante rápidos. A entrada de Zé Galinha na história, com todos os seus dilemas morais, reforça novamente a idéia de que um destino trágico, mais do que a má índole, força os personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.


The End - E aí chegamos ao final do longa-metragem, em que se repete algo da cena inicial. Buscapé, já contratado pelo jornal, consegue a foto desejada. Enquanto as crianças desfilam armadas, adultos anônimos cruzam as ruelas, atarefados. Buscapé conversa com seu amigo sobre suas expectativas profissionais. O narrador diz seu nome verdadeiro: Wilson Rodrigues. Os bandidos se perdem no passado, mortos, presos, distantes em sua aventura tresloucada, ou reduzidos a crianças inconsequentes. O personagem de Buscapé ganha realce, é um rapaz inteligente, esforçado e irremediavalmente honesto, como aliás a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos constantemente às maiores privações, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho. Em tempos pós-modernos, em que não julgar, não se posicionar é sinônimo de qualidade estética, Cidade de Deus termina com uma mensagem moralista explícita e corajosa, como tudo neste filme brilhante, que abre tantas perspectivas novas para o cinema brasileiro.

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