Em viagem



Férias para o blog. Volto aqui somente em 2007. Bom feriado pra todos.

Show do Mundo Livre na Ilha da Reunião


Confesso que, até pouco tempo, nunca tinha ouvido falar dessa ilha, um pedacinho da Europa incrustrado no Oceano Indico. Agora ca estou, digitando em misteriosos teclados franceses e assistindo shows diarios de samba, capoeira e Mundo Livre SA.

Oui, Mundo Livre. Ontem, 2 de novembro, a banda pernambucana fez um showzaço para uma plateia atonita, que do Brasil conhece apenas samba de carnaval, mulatas bundudas, futebol e Gilberto Gil, que tocou na Ilha em julho deste ano.

Ao final do show, subiram ao palco duas deslumbrantes e legitimas mulatas, vestidas à carater: sumarios biquinis cintilantes, paetes imodestos e adereços dourados.

Breve mais informações sobre esta exotica experiencia.

Novo desenho de Emerson Wiscow


Singela homenagem a John Fante, feita para a editora Spectro.
*
Terei muitas dificuldades para atualizar este blog nas próximas semanas, até o final de novembro. Estou agitando e vivendo business trips no período. Depois conto mais. Abraço em todos.

*


Com todo respeito aos amigos tucanos, continuo minha cruzada anti-Alckmin. Se não quiserem Lula, tudo bem. Votem nulo. O bom, velho e consciente voto nulo. Mas Alckmin não! Enquanto a corrupção do governo Lula se mede em milhões, a do PSDB se mede em TRILHÕES! E eles não só desconhecem (o famoso não sei de nada), como se orgulham do que fazem! E com beneplácito dos meios de comunicação, que querem voltar a mamar nas tetas adiposas dos financiamentos públicos!

*


Sugestão de Blog literário legal e divertido:
http://marconileal.zip.net/

Diálogo de mestres


Breve conversa à tarde com John Fante

ele disse: “Eu estava trabalhando em Hollywood
na mesma época em que
Faulkner também estava lá
e ele era o pior de todos
estava sempre bêbado demais para ficar de pé
e ao final da tarde
eu tinha que ajudar a colocá-lo num táxi
dia após dia após dia”

“mas quando ele deixou Hollywood,
eu fiquei
e não bebi como talvez devesse ter feito
para ter o culhão de segui-lo
e dar um basta naquela merda”

eu disse a ele: “você escreve
tão bem quanto Faulkner”

“você acha mesmo?”,
ele perguntou, de sua cama
no hospital, sorrindo

Charles Bukowski
Tradução: Miguel do Rosário
Ler no original.

Ela entendia das coisas


Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

*
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

*
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.


Hilda Hilst
(Alcoólicas)

Resgatando um comentário

Bem, tô publicando só para divulgar o comentário abaixo do escritor baiano Antônio Diamantino, apagado (o comentário, não ele) sem querer, junto com um post meu que era só um aviso sobre problemas técnicos, e por isso deletado. Valeu pela idéia, Diamantino. Concordo contigo que é preciso tomar cuidado com os teóricos. Eles esterilizam a poesia. Gostei da maneira apaixonada como Bloom escreve, mas não concordo com ele em várias coisas. Sobretudo, estou atento ao caráter místico, psicológico e dionisíaco da poesia. Fique tranquilo, não serei iludido tão facilmente. Grande abraço.


Comentário

Cuidado com o papo de teóricos como Bloom. Essas pessoas são como vampiros capazes de extirpar toda a vida do texto literário. São esses seres que transformariam os poemas repletos de alma de Miguel do Rosário em resenhas esdruxulas seguindo os padrões técnicos e científicos de entendimento na esfera academicista. Eles matam o poema em busca de um título.

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Posted by Antonio Diamantino Neto to Hell Bar at 10/17/2006 12:17:04 PM

Bagunça de luxo em Sampa




E aconteceu esta semana uma tremenda pândega literária na indefectível praça Roosevelt. Foi o lançamento de Atire no Dramaturgo, novo livro do brother Mario Bortolotto. Ainda tenho muito a falar sobre o tema. Ele está tentando achar um local de lançamento no Rio.

Harold Bloom com vista para o morro da Mangueira



Ontem passei algumas horas na varanda da biblioteca da Uerj, local que frequento há muitos anos. A vista dá para o morro da Mangueira, imponente e cheio de personalidade, o metrô, o trem, ao fundo a baía de guanabara e a ponte rio-niterói.

Fiquei lendo O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, famoso crítico literário norte-americano. Bloom defende uma visão eminentemente estética da arte, ou seja, que contemple a arte sem falsos moralismos ou viciados sociologismos.

Interessante notar que Bloom, a despeito de sua erudição, procura dismistificar qualquer suposta superioridade do homen "intelectual" frente aos demais cidadãos. O estudo dos clássicos, ou cânone, não nos tornaria pessoas melhores. Pelo contrário, se baseássemos nossa moral apenas no estudo dos clássicos nos tornaríamos monstros de egoísmo, diz ele.

A afirmação de Bloom me fez lembrar de inúmeros "intelectuais" brasileiros metidos a besta e a publicistas políticos, que se gabam tanto de seus conhecimentos literários, apesar do péssimo uso que fazem deles. A ideologia é burra, é um dos lemas da nova direita, omitindo de si mesma que a máxima vale tanto para a esquerda quanto para a direita.

Bloom não se ocupa de que forma os homens podem se tornar melhores. Seu campo é a estética, e para operar livremente ele afasta qualquer inferência moral ou política da análise literária.

Antônio Cândido, o famoso crítico brasileiro, não é tão peremptório quanto Bloom. Cândido tentará realizar uma síntese dialética entre a análise literária puramente estética, defendida por Bloom e a sociológica, defendida por outros autores.

Confesso que me inclino mais para a posição de Bloom, embora reconheça a coerência lógica do entendimento de Cândido, cuja estrutura teórica, inclusive, me parece melhor indicada para dar conta das transformações inerentes ao uso da internet como veículo de comunicação literária.

A grande novidade da internet, no terreno da literatura, a meu ver, é a interação, que transforma a maneira como lemos e, consequentemente, também irá mudar a forma como escrevemos um texto.

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Frases interessantes pescadas no livro de Bloom:

"Resenhar livros ruins, observou certa vez W.H.Auden, faz mal ao caráter".

"Ler os melhores escritores, digamos, Homero, Dante, Shakespeare, Tosltói, não nos tornará melhores cidadãos".

"A arte é inteiramente inútil, segundo Oscar Wilde, que geralmente tinha razão a respeito de tudo".

"Toda má poesia é sincera".

"O Cânone Ocidental, seja lá o que for, não é um programa de salvação social".

"A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de um amálgama : domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante".

"Se lermos o Cânone Ocidental para formar nossos valores morais, sociais, políticos ou pessoais, creio firmemente que nos tornaremos monstros de egoísmo e exploração".

"Ler a serviço de qualquer ideologia é, em minha opinião, não ler de modo algum". (essa vale para certo jornalista político que acha que Dante e Robert Musil escreviam para defender o PSDB)

"Ler a fundo o cânone não nos fará uma pessoa melhor ou pior, um cidadão mais útil ou nocivo".

**

O romance Assunção de Salviano, de Antônio Callado, é uma sucessão de clichês. A escrita de Callado é elegante, como sempre, mas a história em si é fraca. Além disso, há um artificialismo visível no texto, como se pudéssemos enxergar suas engrenagens íntimas. O romance conta as aventuras de uma célula comunista em Juazeiro, Bahia, que trabalha para produzir um foco revolucionário no Nordeste. Um dos "quadros" simula uma conversão religiosa e torna-se um "profeta", uma espécie de Antonio Conselheiro, pregando a fé e a revolução social. Ocorre que Manuel Salviano acaba assumindo de verdade o papel que lhe cabia apenas representar e passa a acreditar em Deus, pregando cada vez menos a revolução e mais a salvação da alma. As multidões passam a venerá-lo e até milagres acontecem. O enredo em si não é mal, apesar de ser um tanto forçado (o autor queria incluir luta de classes, comunismo, revolução, na história, certamente por serem, na época, temas polêmicos). Os defeitos são muitos, mas pode-se resumi-los por: diálogos banais, dicção pobre, trama medíocre e inverossímil e personagens simplórios, maniqueístas, previsíveis.

Quem é maluco?



Melhor ser maluco que ser burro. Não estou aqui querendo provar nada. Let me sing my rock and roll. Raulzito mandando ver de novo.

Contra Alckmin


Só não vote nesse falso moralista aí de cima. Opus Dei do caralho. Vote Raul! Dá-lhe Raulzito! Ouça aqui Raulzito fazendo campanha.

A eterna luta contra o mau poeta que há em nós

No final dos 80's eu tocava violão e compunha músicas de amor. Esqueci tudo e não guardei nada. Lembro apenas, vagamente, que eram canções bregas, embora haja sim a possibilidade de eu ter assassinado algumas canções boas. Mas acho difícil. O Paulo Mendes Campos, numa de suas crônicas (presente no livro Anjo Bêbado), fala desse negócio do escritor ter de matar, diariamente, o mau poeta que há nele. Com certeza, grande Paulo. Os maus poetas nos habitam, às vezes nos dominam.

Quando falo de poesia, falo de literatura. Penso que é tolice esse preconceito que aflorou entre certos literatos contra poesia. Como se a poesia não fosse literatura. A literatura nasceu do poema. Aliás, a literatura moderna, a meu ver, está voltando muito à poesia. Há romances "modernos" que, se transcritos em versos, seriam pura poesia. E há poesias modernas que, diagramadas de outra forma, poderiam ser classificadas como prosa.

Está claro que alguns cidadãos, movidos por necessidade pecuniária, falta de alternativa econômica e certo (quiçá duvidoso) pendor para as letras, decidem se tornar poetas e vender seus livrinhos caseiros em bares, faculdades, na entrada de cinema e centros culturais. Quem já não enfrentou o famoso:

- Gosta de poesia?

Particularmente, não acho uma boa maneira de veicular a poesia. Para muitos, a abordagem é irritante, sobretudo se o poeta resolve explicar, em detalhes, o processo que usou para idealizar, escrever, diagramar e imprimir seu produto. No entanto, compreendo perfeitamente a situação do cara. Não sou eu que condenarei o poeta-camelô. Em teoria, é um ato corajoso, uma afirmação de independência artística. Acho legal o artista ampliar o controle sobre suas atividades. Fica mais livre e, muitas vezes, é a única maneira de ganhar algum dinheiro.

Contudo, também acho desagradável. Fujo dessas abordagens assim como fujo de militantes evangélicos, entrevistadores para campanhas de marketing e ciganas-desesperadas-para-ler-sua-mão.

No entanto, tenho pelo menos dois grandes amigos que vivem de vender poesia nas ruas. Mas esses são extremamente sagazes, abordando apenas pessoas que, notoriamente, demonstram interesse no produto. Em alguns meios, aqui no Rio, sou conhecido apenas como poeta, apesar de, há anos, escrever bem mais prosa que poesia. Conheço inúmeros poetas, a maior parte dos quais desconhecidos do público em geral, embora possuam um trabalho consistente pra caralho. O problema deles é que não exploram bem a internet e não possuem nenhum, nenhum, nenhum talento (pelo menos por enquanto) para venderem a própria imagem. Neste sentido, são completamente desajeitados. Ou puros, por outro ângulo. Românticos, utópicos, fracassados. No entanto, libertos de toda inveja (o que não é necessariamente uma qualidade, mas eles são assim). Altivos, irônicos, quase felizes - não fosse o desespero constante da falta de grana.

Por falar em poesia, deu vontade de escrever uma (quem sabe faz ao vivo).


a cerveja da geladeira


atrás de mim há uma geladeira
com várias latinhas de bavária
compradas no Mundial por 0,79 cada

enquanto escrevo, penso nelas, nas latinhas
penso particularmente em uma
a que porventura eu poderia abrir e beber
caso interrompesse a escrita, nesse momento,
me virasse, abrisse a geladeira
e a colhesse diretamente da árvore

parei

fui lá e peguei a cerveja
são 5:58 da manhã e sou um louco
bebendo cerveja em casa e escrevendo um poema

vou acordar tarde novamente
contrariando meu eterno plano de ir correr
no aterro às seis da manhã
trabalhar duro até o meio dia
almoçar, descansar a siesta
e passar a tarde lendo

tudo bem

agora vou acordar meio-dia
trabalhar até o meio da tarde
ler um livro
dar uma caminhada pelo centro antigo do rio
contemplando a beleza
dos casarões em ruínas

Notícias finais do Festival

C'est fini. O Festival do Rio chegou ao fim, com uma festa meia boca na Tenda de Copacabana. Não tinha uísque, vinho, champagne. Cerveja, só nova schin. O som estava bom, pelo menos. Rolou Bezerra da Silva, Chico Science, Erasmo Carlos, Elizeth Cardoso, entre outros. Mas terminou cedo, às três, quando o negócio ainda estava esquentando. Nem deu tempo pra eu ficar bêbado.

O filme premiado pelo júri oficial foi Céu de Suely, segundo longa de Karim (o primeiro foi Madame Satã). O público deu o prêmio para Cheiro do Ralo, de Heitor Dhália. Pra mim, os prêmios foram merecidos. Os dois são bons filmes.

O curta mais premiado foi Mauro Shampoo, disponível aqui no Porta Curtas.

À margem do concreto, de Evaldo Mocarzel, ganhou prêmio de melhor documentário, no júri oficial. Fabricando Tom Zé levou o "Redentor" de Júri Popular.

Ganharam prêmios ainda Selton Mello (melhor ator, em Cheiro do Ralo), Hermila Guedes (melhor atriz, em Céu de Suely) e Karim (melhor diretor, idem).

Revival

Estou fazendo uma revisão do histórico desse blog e achei umas coisas cuja releitura me divertiram. Acho legal fazer um revival de vez em quando.

1) A poesia dá sede, resenha do livro Tanto Faz, de Reinaldo Moraes
2) O lago escuro, poema de minha autoria.

Eu me lembro

Bons filmes nesta segunda semana de Festival. Cartola, de Lírio Ferreira, é um documentário fundamental para quem deseja compreender o que foi e o que é o samba carioca e, consequentemente, o que foi e o que é o Rio de Janeiro. Filme feito inteiramente, ou quase, com imagens de arquivo, umas antigas, outras mais recentes, com uso constante de pout-pourri (não sei se é assim que escreve...), ou seja, cenas rápidas extraídas de clássicos do cinema nacional, ilustrando as épocas. Notável ainda a persistência de Lírio, que levou oito anos para finalizar a película.

O filme de Lírio foi precedido pelo curta-metragem "O Som da Luz do Trovão", de Petrônio Lorena e Tiago Scorza, que também é muito interessante, feito com audácia e criatividade.

Por fim, "Eu me lembro", novo longa-metragem de Edgar Navarro, grande cineasta baiano, me comoveu. Navarro é conceituadíssimo entre especialistas e amantes do cinema nacional. Lindo, lembrou os antológicos romances que mesclam ficção e memórias, como Bukóswki, Miller, Fante, e mesmo o londrinense Márcio Américo, autor de Meninos de Kichute.

Assisti um documentário bem interessante sobre a vida e morte de um líder sindical do Pará, "Expedito: em busca de outros nortes". E outro fantástico sobre a vida dos três irmãos Souza. Betinho, Henfil e Chico Mário: "Irmãos de Sangue". O filme, também bancado pela Petrobrás, conta a história desses três irmãos que, cada um com seu talento, participaram ativamente da vida cultural e política do Brasil.

Vi também um filmaço de Visconti, no recém inaugurado Centro Cultural da Caixa Econômica, "Os deuses malditos".

Ontem, no Cine Palácio, foi exibido a cópia restaurada de "Como era gostoso meu francês", o clássico de Nelson Pereira dos Santos. É um filme muito bem feito, mas prefiro outros do Nelson, como Rio 40 Graus, Boca de Ouro, O Justiceiro, Vidas Secas, Memórias do Cárcere. O "Como era gostoso meu francês" é um elaborado filme de época, passado no Brasil colônia, nos tempos em que os franceses ocupavam a Ilha de Villegainhon (o nome certamente está escrito errado), no Rio de Janeiro, e aliavam-se aos tupiniquins para combater portugueses e tupinambás. História bem escrita. O único problema é o excesso de homens pelados. O tempo todo aquelas picas na nossa cara. Pequenas, médias, grandes. O cacique tem pau pequeno, o francês tem uma manjuba enorme. Isso achei sacanagem, anti-patriota da parte do Nelson, dar esse crédito ao estrangeiro. Caralho, chega de picas, socorro. Mudando de assunto, urgente.

Quer dizer, mudando de assunto nada. Acabou a crônica. Té mais.

PS: A festa de encerramento e entrega de prêmios é na quinta-feira 05.

O cinema e a vida

O filme Céu de Suely, de Karim Aїnouz, para mim, é o melhor do Festival, até agora. É realmente muito bonito, sensível, autêntico. Tecnicamente impecável. Adulto. Consequente. Não faz nenhuma concessão. Sem clichê. Sem piadinhas. Sem atores famosos (o que não é necessariamente bom ou mau, mas enfim...)

Nesta sexta-feira, assisti ainda Noel, Poeta da Vila, dirigido por Ricardo Van Steen. Cruz credo. Noel deve estar se revirando no túmulo. Que filme ruim, meu Deus. Dá até vergonha. Noel Rosa é, junto com Cartola e Ismael Silva, um dos fundadores do samba moderno carioca. Seus sambas tinham letras inteligentes, divertidas, com uma musicalidade mais complexa que as tradicionais marchinhas de carnaval. O filme, todavia, estraga tudo. Mostra um Noel estereotipado. As cenas são mal montadas, artificiais. A única coisa boa do filme é a Camila Pitanga, que está linda, maravilhosa e, o que deve ser muito difícil num filme com tantas deficiências, competente.

Um curta muito bom foi Acossada. Criativo, elegante, charmoso, divertido. Dirigido por Karen Akerman e Karen Black. Pra mim, merece prêmio. Dá pra ver no Porta Curta, por aqui.

Leia mais resenhas no Blog da Miroir.

Nos bastidores do Festival do Rio

Lá estava eu, atacando pela esquerda e pela direita, que nem o PMDB. Copo de uísque na pata esquerda, long-neck na direita. Ou seja, quase feliz. Digo quase, porque havia um bate-estaca no fundo que eu tentava heroicamente ignorar.

Vamos ao começo. Cheguei na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, onde rolava a festa de lançamento do filme Céu de Suely, por volta da meia-noite, acompanhado de: minha ex-secretária, agora patroa e ídola, Priscila, Justo Dávila, poeta, ex-membro da banda Boatos, e sua consorte, Mariana. Os primeiros momentos foram tensos. Havia uma fila absurda para pegar cerveja. Pior, a fila era para pegar uma ficha para pegar cerveja em outro lugar. Burocracia burra. Mas tudo bem. Fomos pra fila, eu e o Justo, conversando e reclamando. Fila pra cerveja é foda.

Depois de meia hora de fila, a gente quase na caixa, uma garota nos diz que ali não era a fila da cerveja grátis, ali era pra COMPRAR. Escutei a informação perplexo. O Justo mandou essa: a fila é para a gente SABER QUE A CERVEJA GRÁTIS É NOUTRO LUGAR. Caralho, não deu. Explodi de rir. Fiquei descontrolado legal, chorando de rir.

Mas aconteceu que as garçonetes se distraíram e liberaram três long-necks pra gente. As coisas começavam a melhorar. Fomos até a boate e entramos no bate estaca. Eu devia estar louco. Ainda tentei dançar aquela merda. O Justo dançava amarradão, o vendido. A Pri, vendo minha expressão de desespero profundo, fez um lobby pró-rock n'roll com o DJ. O cara era jogo duro. Disse que só ia rolar aquele lixo a noite inteira. Nem tinha trazido outros cds. Puta que pariu. Deu vontade de xingar e esganar o cara.

Saímos dali e, por um tempo, ainda fiquei de mau humor com aquele bate estaca, mas tinha muita gente boa circulando. Topei com Marçal Aquino e Renato Ciasca (co-diretor dos filmes do Beto Brant), e fiquei observando a elite do cinema brasileiro bebendo e trocando idéias. Estavam lá Marcelo Gomes, diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus (escolhido pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil no Oscar), Lírio Ferreira (diretor de Baile Perfumado e Árido Movie), Walter Salles, além do Karim Aїnouz, diretor do filme da noite, Céu de Suely.

Muito bom filme, esse Céu de Suely. Bom mesmo. Sensível pra cacete, autêntico, cinemão. Só fiquei profundamente decepcionado mesmo com o Karim por (ele confessou pra Priscila) ele ter escolhido aquele merda de DJ.

Mais resenhas de filmes exibidos no Festival do Rio

Estão lá no Blog da Miroir.

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Ei, isso é lindo. Jimi Hendrix tocando Like a Rolling Stone. Agora, uma dica, dá também uma lida na letra do poema, autoria de Bob Dylan.

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Dica de Blog: mais talento na blogosfera. Marcelo da Silva Duarte fala de política com elegância e bela prosódia, coisa rara em tempos de radicalismo eleitoral e grosserias ideológicas. Dê uma boa noite pro porco.

Tapa na pantera

Dá não. Planejava eu, ingenuamente, escrever um resenhão pra cada filme, tipo aqueles do Contracampo. Mas eles, da Contracampo, são muitos. Eu sou um só - pelo menos ainda não descobri meus outros eus por aí. O negócio é que a gente acaba vendo um montão de filme e não dá tempo de analisar, pensar e fazer uma resenha genial pra cada um. Deixa quieto. Podem ir lá na Contracampo mesmo. Tentei ser sério, metódico e enérgico, e fracassei. Quando chegar aos sessenta, quem sabe? Depois que inventaram o Viagra, beibes, nós homens vamos longe!

Bem, primeiro um grito de independência - para patentear o meu nível de amadorismo, desculpável talvez por ser deliberado. Vou publicar aqui! Já é um puta trabalho manter a meia dúzia de leitores deste blog, e agora você quer, mon amour, que eu publique meus textos no blog da Miroir? Não é questão de ser ingrato. Só porque, graças a você, ganhei credencial pra assistir todos os filmes? Só porque ganhei convites para todas as festas? Só porque você faz beicinho e dá beijinho? Ã?

Se deixar, o cara vira um lacaio da mulher. Ô bichinho autoritário, mulher. Dizem que Pedro I deu o grito de independência depois de levar um esporro: "vai logo lá, na beira daquele rio barrento, e dá a porra do grito, seu molóide", teria dito dona leopoldina-ou-seja-lá-qual-seja-o-nome-da-bigoduda.

Mas, se não formos nós, quem irá trocar as lâmpadas, abrir as latas de picles, instalar chuveiro elétrico novo, héin?

Corta! Corta! O papo aqui é cinema. Não tá na hora de fazer piadinha sem-graça e batida sobre a decadência do macho.

Vi um filme boliviano muito bom. Pobrinho, sem recurso nenhum. O cara deve ter gasto uns dez reais pra fazer. Todo digital. Cenas improvisadas. Muitos atores não profissionais. Mesmo assim, um filme bom, ousado, verdadeiro. Título original: Lo más bonito y mis mejores anos. Obviamente, os malucos que fazem tradução de título no Brasil tinham que dar seu tradicional pitaco infeliz. Ficou "O mais belo dos meus melhores anos". O diretor, tadinho, um belo mancebo de 26 anos de longas melenas cacheadas, tez morena e sorriso cativante (novamente, perdoem-me a viadagem, mas tenho que inspirar meu público feminino. Não quero só barbado catinguento lendo meu blog), o diretor procurou explicar que o título original consiste em duas orações independentes. Os tradutores, só de sacaganem, trocaram o "y" pelo "dos", como se não fosse nada. Imagina esses caras numa guerra? Seria o desastre. Lembro da minha professora de português contando a história do mensageiro que esqueceu de anotar uma vírgula na nota que entregou ao general romano. O general enviara uma pergunta ao imperador. "Devemos atacar agora os inimigos?", foi a pergunta. O general romano comandava um exército de 40 mil homens. Os inimigos tinham outros 40 mil. O imperador respondeu. "Não, recuem". O mensageiro esqueceu a vírgula e transmitiu: "Não recuem". O general perdeu 20 mil homens, a batalha e a vida.

Ai, essas digressões me matam. Ainda estão aí? Continuemos. O jovem diretor, quando terminou o filme, estava nervoso, sorriso preso. As palmas foram escassas e discretas. É um filme, dizia, tão pobrinho de recursos. Agora entendo porque os bolivianos acham que o Brasil é imperialista. Comparado com eles, nós somos mais ricos que os Estados Unidos. O PIB da Bolívia, já disseram, é menor que o da cidade de São Paulo - embora isso não signifique muita coisa, pois a população também é menor, 8 milhões de habitantes, e São Paulo é a cidade mais rica do Brasil.

Enfim, o diretor se chama Martin Boulocq e disse que, de uns anos pra cá, e média de produção de filmes na Bolívia pulou de 1 por ano para 5 a 8 por ano. Nem contei a história do filme, mas deixa pra lá. A história não tem tanta importância assim, é um filme mais artístico, visual, com boa trilha sonora. Tipo do filme que crítico gosta, mas não tem público. Achei corajoso o filme, mas bem que a câmera podia ser mais firme e a qualidade da imagem um pouco mais nítida. Parece que o cara filmou com a câmera mais vagabunda da praça.

Assisti também ao The wind that shakes the barley (ainda não traduzido, vamos ver que monstrengo vai sair disso em português), do Ken Loach. Hum, é um filme bem feito, mas acho que o público alvo é a galera de centro acadêmico das faculdades de história - e os críticos de Cannes, que o premiaram. O Ken Loach tá se repetindo. Gostei de Terra e Liberdade, Pão e Rosas, Meu Nome é Joe, mas esse aí ficou meio clichê. Os ingleses malvados. Os guerrilheiros heróis. Sei lá, me pareceu meio passado. Bem feito, mas piegas.

Vamo lá. A Comédia do Poder, de Claude Chabrol. Muito bom. Estilo francês, seco, tradicional, planos convencionais, roteiro excepcional, diálogos perfeitos.

(Tô ficando mais sucinto porque está tarde, meu braço tá doendo. Mas quero ir até o fim. Quero falar de todos que eu vi).

Edifício Yacoubian, filme egípcio pra exportação. Excelente. Bons atores, mas muito for export pro meu gosto.

Man Push Cart - do caralho. Iraniano se fudendo em Nova York. Meio tristonga, sem um final surpreendente, mas du caralho, como diz o Bortolotto. Os críticos profissionais, inclusive da Contracampo, estavam todos lá assistindo, anotando. Deve ser bom mesmo.

La Montaña Sagrada, de Alejandro Jodorowsky. Filmado em 1973. Puta que pariu. Loucura, mêu. LSD total. Simbolismo totalmente maluco. Muito bom. Louco, louco. Nem dá pra explicar. Só vendo. O cara exagera talvez. Mas nunca vi nada parecido. É camelo junto com mulheres nuas. Rinocerontes, tigres, criancinhas pintando a bunda nua dos outros. Cristo enchendo a cara. Esse a galera (a galera, não o Galera, o escritor) vai gostar. Parece um pouco cansativo no início, mas vai crescendo, vai inovando, cada hora um absurdo diferente, tudo com muita plástica. Influência óbvia do surrealismo. Vale até dar um tapa na pantera antes de assistir. Digo, vocês, que eu não faço mais essas coisas. (opa! aqui quem fala é o juiz federal Pinto Nino, o que você quer dizer com isso, Miguel? por acaso está incentivando... Não, não juiz. Tapa na pantera significa o cara fazer meditação transcendental alfa budista, de forma a ampliar os canais de percepção... etc, aquele filme do Youtube é que deturpou o sentido original da coisa. Ah, então tá, não vou mandar censurar seu blog, dessa vez passa, mas cuidado!).

É isso, por enquanto. Tem muito filme bom a partir de amanhã. Volto com novidades.

Ressaca braba


Ontem fui ao show do Mundo Livre, no Circo Voador. Massa, rei. Acordei com desesperada dúvida existencial. Estarei vivo? Em caso afirmativo, em qual das minhas encarnações? Qual país, qual ano, qual bairro? Será que as eleições já passaram, o Alckmin ganhou e o Brasil se tornou ético, sério e com taxas maravilhosas de crescimento econômico? A resposta repousava, como sempre, numa latinha de coca-cola, na água fria sobre o rosto e na contemplação cética da minha ironia proto-anarquista.

Mas eu vim aqui dar uma informação importante. Minhas resenhas sobre o Festival do Rio estão sendo publicadas no Blog da Miroir. O negócio ainda está esquentando. Però faccia attenzione: não sou autor exclusivo do blog. As minhas estão assinadas no final.

É isso. Sem condição, no momento, de falar muito.

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Da série exercícios grátis de italiano:

- Cosa c'è da bere? C'è dela birra e del vino.



Pronúncia: Cosa tché da bere? Tché dela birra e del vino.
Tradução: O que há para beber? Há cerveja e vinho.

*

Eterno Raul.

Três notas

Ontem começou o Festival do Rio, com o filme Dália Negra, de Brian de Palma. Bem mais ou menos o filme. Tem todo aquele luxo hooliwoodiano, o clima "las vegas final dos anos 40". O pacote completo: policiais corruptos, mulheres fatais com passado obscuro, políticos venais e empresários inescrupulosos. O clichê excessivo mata o filme. A trama é interessante, mas confusa, difícil de acompanhar.

De Palma é um diretor irregular. Dirigiu o clássico Scarface, aquele que termina com Al Pacino cheirando uma montanha de pó, mas também fez porcarias inomináveis como Missão Marte e Femme Fatale.

A festa aconteceu no Cine Palácio. Para quem estava acostumado com o fausto dos anos anteriores, o evento foi fraquinho, mas não sou eu que vou reclamar aqui do uísque que bebi de graça. Bem, reclamo sim. Faltou champagne e vinho pras mulheres... A música no salão era fraca, sem novidades. O melhor que tocaram foi um Chico Science meio batido, um Boys Dont Cry, do The Cure, que lembrou minha pré-adolescência, mas depois descambaram para o Dance Music, o que foi a minha deixa para abandonar o recinto.

*

Uma palavrinha sobre Pergunte ao Pó, de Tom Cruise: bobinho. Outra palavra: ruim. Um filme inteiro ao crepúsculo. Isso mesmo, o filme inteiro com os raios do sol descaindo, obliquamente, cor dourado-escuro, sobre as ruas e desertos da Califórnia. Muito bonito no início, mas enjoativo ao se repetir ao longo do filme. A atuação do Colin Farrel é medíocre, mas passável. O pior do filme fica por conta de Salma Hayek. Deturparam a história com aguinha e açúcar. Trilha sonora vazia. Filme chato.

*

Finalmente, consertei o driver de som do meu computador. Sou um cara mais feliz. Pra começar, escuto a rádio onde trabalha meu amigo Jorge Ferreira. Aqui. Também posso agora curtir um pouco do You Tube.

Devolveram o herói

Opa, isso merece um post. Mirisola lançou um blog. Já estreou rasgando todas as regras do bom comportamento social do escritor. É um caso que merece reflexão, o Mirisola. Sua verve diabólica, canalha e libertária, simplesmente não encontra espaço na imprensa tradicional. Ele tá revoltado, com toda a razão. Eu tô revoltado há muito tempo. Mas eu não conto, porque eu não sou ninguém. Quer dizer, sou um escritor relativamente conhecido na web, o que significa lhufas, já que existem outros dez mil na mesmíssima situação. Escrevi um conto ou outro interessante, algumas crônicas boas, umas resenhas originais, mas fundamentalmente eu sou um escritor - digamos - em plena florescência (com perdão da viadagem). Estou vivendo minha obra. Sofrendo pra caralho, mas com muito amor e entusiasmo - e o desespero decorrente, é claro.

Eu tava falando do Mirisola, que lançou um blog, surfando numa contra-onda. Bem, o que eu posso dizer é o seguinte, meu chapa: bem vindo ao inferno. Sua literatura abriu porteiras, tá certo, mas tome cuidado, porque, tradicionalmente, os pioneiros sempre se ferram. Quem se dá bem são os que vem depois, encontrando o caminho já pavimentado, com flores nas laterais e a devida escadinha de mármore ao sopé da mansão do sucesso...

O negócio é que a imprensa escrita se tornou uma insossa perfumaria, e não pode desagradar o homem "médio", aposentados, militares, funcionários públicos, os que caras que ficam horrorizados com as declarações de Paulo Betti sobre a ética, bobinhos, bobinhas e agentes da CIA. É a velha história da indústria cultural. Qual o problema? Nos Estados Unidos tudo dá certo, não é? Os escritores são tão felizes nos EUA. Eles lidam bem com a crítica e ganham rios de dinheiro. Além do mais, os escritores americanos são melhores em tudo, não é?

Para falar de Mirisola é preciso inventar um novo conceito: a Dialética do Despeito. O João Filho, que eu conheci em Salvador, havia inventado a Estética do Perrengue. Ele me contou que estava há quatro dias sem comer antes de ser transladado com honras para a Flip. Agora, tá lá em Salvador esperando outro convite. Como cê tá meu chapa? Voltando ao despeito mirisolástico. Repito, o caso Mirisola merece atenção, porque estamos diante de uma situação constrangedora para o país. O Ademir Assunção acha que precisamos de política de Estado, incluir a palavra Literatura não sei aonde. Distribuir bolsas para escritores. Quer saber? Até que seria uma boa. Mas no Brasil, sei não... Não tem clima. O Caetano não ia deixar. Melhor esquecer. Devo estar errado nisso também, porque eu sempre estou errado nesse tipo de coisa. Consegui vencer o lacerdismo materno, mas o pessimismo de missivista do jornal O Globo, esse não me larga.

A culpa de tudo é do Luciano Huck. Caras como ele poderiam ajudar a solucionar muita coisa. Se ele fizesse propaganda de literatura no seu programa, as vendas de ficção aumentariam vertiginosamente. Hã? Tô falando bobagem? Claro que tô. Eu lá tenho solução? Como todo mundo, estou lutando pela sobrevivência e, em última instância, já me basta salvar a própria pele. Quer dizer, eu escrevo artigos políticos, mas até isso é por interesse próprio, para desopilar o fígado, me vingando de crápulas como Miriam Leitão e Merval Pereira, que me atormentam há anos tentando me empurrar sua opinião globista goela abaixo. Por outro lado, hoje em dia, eu até gosto deles. Eu os amo. Eles me inspiram. Esse ódio, percebi só agora, é fundamental na minha vida. Tenho ficado semanas sem escrever por conta da falta de ódio. Esse é outro conceito importante da Dialética do Despeito, teoria estética cujo maior representante é Marcelo Mirisola.

A única coisa boa que posso falar é que essa imprensa escrita está em crise, e a web não pára de crescer. A venda de computador tem aumentado uns 200% ao ano. Melhor ficar atento a isso, meu caro Mirisola. Indo ao que interessa, internet vai dar dinheiro no futuro. O problema é a lógica da quantidade, que não vale pra literatura.

(Digressão. Fico puto com esses colunistas de jornal, com tiragem de 2 milhões de exemplares, que dizem em suas crônicas: meus dois ou três leitores... blá blá. Ei, são uns mentirosos! Quem tem dois ou três leitores sou eu! E não tenho orgulho nenhum disso. Mas fazer o quê?)

Na literatura, o que deveria valer é a qualidade. Se um patrocinador quisesse bancar meu blog, deveria ser porque ele identificou talento por aqui e resolveu dar uma de mecenas. Taí. Boa idéia. Blogs patrocinados. Empresas patrocinariam blogs e teriam desconto no imposto. Que nem fazem pro cinema. Mas sem burocracia, pelo amor de Deus! E sem impor cotas de quantidade de acesso! Bastava ser aprovado por uma comissão civil criada somente para isso e pronto. A empresa que quisesse patrocinar é que cuidaria da papelada toda. Vejam como sou prático às vezes. É que eu levo à sério essas coisas, cara. Minhas opções também estão se estreitando...

Hum... pensando melhor, a idéia não é tão boa. Porque as empresas só patrocinariam os blogs de seu interesse. Blogs bem comportados. Peraí... Só se... as empresas bancassem os blogs através de renúncia fiscal (ou seja, o governo banca, mas seria uma solução provisória até termos um mercado literário mais pujante), mas seu logo não ficaria exposto no blog. Ficaria apenas a chamada que o blog X era patrocinado pela Lei Y, que prevê renúncia fiscal a empresas que patrocinam blogs literários.

Gosto de idéias que resolvem problemas de falta de dinheiro. Essa solução poderia, se eficazmente implementada, gerar milhares de patrocínios de blogs. Aaammm.... tô com sono, amanhã vou reler esse post para corrigir e, a depender da minha avaliação matutina, até apagar tudo que escrevi. Outra vantagem da internet. Eu posso corrigir, incrementar ou deletar meus textos. Leiam com atenção, porque esse post pode ser condenado à morte.

Variados assuntos

Imagino que os frequentadores deste blog são interessados em literatura. Caso contrário, não sei o que estão fazendo por aqui. Mesmo assim, são todos bem vindos. Sempre há tempo de aprender a viver. E nisso consiste, na minha opinião, o valor essencial da literatura: tornar a vida mais interessante. Viver mais intensamente.

Queria falar um pouco sobre bebida. Penso que, às vezes, alguém pode pensar que eu bebo demais. Que sou um bêbado decadente. Não é bem assim. Decadente eu sou mesmo. Bêbado também. Mas tem um porém. Na verdade sou bastante disciplinado. Como sei que, se sair, vou beber, e beber bem, então eu procuro sair o menos possível. Ou seja, sou um cara caseiro. Em casa não bebo. Tomo café, viajo na internet e leio livros. É uma obsessão esse negócio de livro. Quase um vício. Mas é melhor que crack ou cocaína. EU ACHO.

Ontem quase fiquei maluco andando pelos sebos nas adjacências da Praça Tiradentes. Comprei Café na Cama, do Marcos Rey, e Complexo do Portnoy, do Philip Roth, 3 reais cada um. Depois atravessei a rua e entrei num outro sebo. Não tinha mais dinheiro. Mas tinha o cartão. As estantes de literatura eram no segundo andar. Passei a vista e fui juntando o que me interessava: Um outro livro de contos do Philip Roth; um de contos de Arthur Clark, papa da ficção científica; e a Trilogia de Nova York, de Paul Auster.

Infelizmente, não tinha mais nada na conta. O cartão foi recusado. Voltei pra casa um pouco triste, mas tá tranquilo. Tem muita coisa aqui na estante pra ser lida. Terminei de ler esta semana um clássico da ficção científica, Fundation and Earth, de Isaac Asimov. É incrível como o cara conseguiu escrever uma história que se passa uns cinquenta mil anos no futuro. História muito bem construída, gostosa de ler. Faz você viajar pelo tempo, pelo espaço! Você esquece um presente que, à exceção das horas de forte intensidade existencial - como o horário eleitoral gratuito e o programa de venda de tapetes do canal 6 -, nos parece tão enfadonho.

Acho que sou melhor leitor que escritor. Por preguiça. É muito mais confortável ler do que escrever. Ainda mais literatura. Já li muito filosofia, história, política. Mas nos últimos anos só tenho saco pra literatura. Só curtição. Arrumei um trabalho tranquilo, que me dá bastante tempo livre, e pronto. Ser casado ajuda também. Quando era solteiro, perdia as noites correndo atrás de mulher. Tinha seu lado bom, é claro, mas organicamente era negativo, porque um homem solteiro na noite da Lapa não desenvolve hábitos saudáveis.

A blogosfera literária está melhorando. A primeira geração se aposentou. Talvez não aguentassem o tranco de hoje, a competitividade acirrada entre tanta gente talentosa. Os radicais, à direita e à esquerda, se radicalizaram ainda mais e se tornaram anacrônicos. Exemplo de novos blogs bons? Vejam o Marconi Leal, link ao lado. Acho que a internet ainda tem muito a oferecer à literatura no Brasil. Num país com extensão continental, estradas precárias, editoras pobres e custos de produção de livro elevados, a internet surge como uma excelente oportunidade para as pessoas acessarem a nova ficção tupinambá.

Claro que ler na tela do computador não é tão bom como ler um livro impresso. Mas as pessoas estão se acostumando também com isso. Esse negócio de Orkut, MSN, sites e blogs, fazem as pessoas ficarem tanto tempo diante do monitor, que os olhos acabam se adaptando.

Mais fotos do lançamento da Miroir no Cine Odeon


fazendo uma pausa para respirar (priscila, natasha, diana e maria) - para entender essa foto, ver uma das primeiras da sequência abaixo


baronesa Camilla Lopes e barão Mirisola, no pós lançamento

Justo saboreando e eu dando duro como DJ e barman (vida de marido de editora não é mole, rapá!)

Priscila e Natasha, editora e fotógrafa oficial da Miroir


a convidada mais importante da festa, senhora cachaça Magnifíca

a Dira Paes também ficou ligada na Miroir

A festa

as meninas comemorando a chegada da revista

a partir da esquerda: maria, mirisola, natasha, priscila, diana, miguel (eu) e o bortolotto


Lá fomos nós, eu, Diana e o fusquinha branco, para Bonsucesso. Pegamos a perimetral, entramos na Avenida Brasil, prosseguimos uns quilometros e entramos à direita. Bonsucesso é um dos primeiros bairros cortados pela Brasil. Nosso destino: a gráfica Walprint, onde a nova edição da revista Miroir estava sendo finalizada.

A revista não estava pronta. A Diana e o fusquinha voltaram para o Cine Odeon e eu fiquei na gráfica, esperando. Uma hora e meia depois, conseguiu-se aprontar um lote de 175 exemplares e eu entrei no táxi que já estava me esperando na rua, chegando ao Odeon exatamente às 21:45, a tempo de pegar as pessoas aguardando ansiosamente minha aparição.

Foram distribuídas doses de Magnífica ouro e vinho branco. Compareceram diversos amigos, entre eles o nosso querido Mario Bortolotto. Presente ainda o barão da praça Roosevelt, Marcelo Mirisola e sua baronesa, Camilla Lopes, e muitas outras pessoas interessantes.

A revista ficou muito bonita. Não é porque ela é minha esposa, mas a Priscila é realmente uma garota extraordinária. Se eu posso dizer, com orgulho, que muita coisa do que ela sabe eu ensinei, também devo afirmar que, definitivamente, a aluna superou o mestre. Esta nova edição será distribuída no Festival do Rio, e tem um conteúdo que destoa totalmente de qualquer revista do tipo que tem por aí. Tem contos, crônicas, resenhas, matérias, além de magníficos ensaios fotográficos (uma das modelos é a atriz Fernanda D'Umbra).

Depois do Odeon, fomos todos para a Lapa, comer frango a passarinho e molhar mais um pouco as cordas vocais. Quem quiser um exemplar da revista, terá que vir ao Festival do Rio. Ou então enviar um email para editora@miroir.com.br, solicitando um exemplar. Em tempo, estaremos fazendo a cobertura do Festival do Rio, através do site www.miroir.com.br, o qual ainda está em construção. Mas por este blog você se mantém informado.

Tá chegando a hora

"A forma mais ínfima da vida é a ameba. Daí surgiram os grandes homens", Millor Fernandes

O Festival do Rio de cinema está chegando. Hora de começar a azeitar as máquinas. Treinar um pouco a arte de resenhar filmes. Até porque a Revista Miroir, editada pela Priscila, está super-cadastrada para participar do evento. Será lançada uma edição no dia 21 de setembro, junto com a abertura do Festival. Meu objetivo este ano é beber menos e escrever boas críticas, senão profundas e precisas como as da Contracampo, pelo menos suficientemente originais e divertidas para justificarem sua existência.

Comecemos de leve, brincando apenas, para desenferrujar. O título do filme - Fahreinheit 451 - corresponde à temperatura a partir da qual os livros pegam fogo. Bombeiros de um futuro indefinido agem como uma espécie de polícia anti-literatura. Acionados por denúncias anônimas, realizam buscas minunciosas nas casas dos acusados e encontram livros no interior de aparelhos de tv, dentro de torradeiras e em toda espécie de compartimentos secretos. Juntam os livros num bolo e os carbonizam com lança-chamas.

Oskar Werner, que já ficara imortalizado por Truffaut em Jules e Jim, é o protagonista da história, um bombeiro anti-livros que começa a se interessar pelos objetos proibidos. Baseado na obra-prima homônima de um dos maiores nomes da ficção científica norte-americana, Ray Bradbury, o longa de Truffaut foi rodado em 1966. O argumento do filme, apesar de preservar ainda hoje algum valor metafórico, parece meio forçado, inverossímil. Não li o livro, que certamente deve conter muito mais elementos (e portanto mais verossimilhança e coerência) que o filme. Nessa mesma linha, prefiro 1984, de Michael Radford, baseado no livro homônimo de Orwel, protagonizado por Jonh Hurt e Richard Burton.

Aliás (informações atualizadas da bolsa carioca de livros)

Bradbury também possui um livro de contos fabuloso, Remédio para Melancolia, o qual, por uma feliz coincidência, acabo de adquirir num sebo da rua do Catete, por R$ 5. Também comprei hoje, num outro sebo, na Glória, Lições de um Ignorante, de Millôr Fernandes, por R$ 1; e um livrinho de críticas literárias de Machado de Assis, muito instrutivo, por R$ 7.

Em suma, não há suma (como diz Millôr).

Dissidência na Megatongas

Crônica escrita por Antonius Vanquise III, publicada no site Andrômedas do Passado, em 22 de junho de 5.201 DC.


Volto à minha coluna para contar a história da dissidência ocorrida na revista Megatongas, aquela mesma da qual eu falei meses atrás. Aconteceu em meados de 2006, quando os escritores Holgo Benário e Vira Chopes decidiram não mais participar da publicação.

Vira vinha, há algum tempo, enfrentando atritos com o editor de Megatongas, Confrócito, devido à mania deste de implicar com alguns termos usados por ela, e estar sempre posando de grande crítico literário. No início, Vira aceitava as críticas de Confrócito mas, depois de algum tempo, percebeu que se tratava de pura implicância. Por exemplo, ele queria que ela substituísse o termo “idiota” por “bobo”, e coisas do gênero.

Holgo Benário decidiu sair da revista em função de uma súbita tomada de consciência. Com as sobras orçamentárias da primeira edição da revista impressa, a Megatongas havia publicado o romance A Arte de Peidar, de Luiz Inácio Nogueira. Benário não viu problema porque confiava no gosto de Confrócito como editor.

Em São Paulo, onde fizeram o lançamento da revista impressa e do romance, Benário, instado por sua mulher, comprou o livro de Nogueira, pagando vinte reais. No dia seguinte, Benário deu início à leitura, e ficou muito decepcionado com a quantidade de erros encontrada logo nas primeiras páginas. Parou de ler, e foi estudar coisas mais interessantes. Até que lançaram um segundo número da revista impressa, e Benário reparou que o próprio editor, Confrócito, havia assinado e publicado uma resenha sobre o referido livro.

Pôs-se a ler a resenha de Confrócito e ficou estupefato com frases do tipo: “Nogueira é um escritor que tem o talento da escrita” e “Arte de Peidar está aquém e além do gênero policial”. Num primeiro momento, Benário ficou aliviado ao pensar que Nogueira fosse um escritor que tivesse o talento da escrita e não da prática do karatê ou do canibalismo, mas depois um sentimento de perplexidade foi crescendo no espírito de Benário e ele decidiu fazer uma leitura crítica e detalhada do romance em questão.

Foi uma experiência terrificante. O que mais espantou Benário não foram nem os milhares de erros de sintaxe e gramática, e sim a proliferação de clichês baratos, diálogos ridículos, cenas inverossímeis e muitos, muitos, erros e incoerências de estrutura de história e personagem. Abaixo, transcrevo manuscritos de Benário encontrados em seus arquivos, falando sobre o tal livro.



É inacreditável. Um exemplo pra vocês. Leiam esse trecho, faz parte do diário da personagem principal.

“O ar estava imóvel e a falta de ventos aumenta a angústia de quem sente muitas outras faltas. A paz era incômoda, a tranquilidade que antecede as grandes catástrofes”.

Bem, nunca soube que falta de ventos aumenta angústia de ninguém, nem que a paz fosse incômoda, mas isso não vem ao caso. O negócio que é havia falta de ventos, repararam? Pois bem. Logo depois ela continua:

“Otávio havia saído para dar sua caminhada habitual. Levantei-me para aumentar a potência do ar-condicionado central e ao passar pela janela, o parque me chamou a atenção.”

Ã? Não havia falta de ventos? Ah tá. Ela estava dentro de casa, com o ar-condicionado ligado. Até onde eu sei, isso implica em janelas fechadas e... ausência de ventos. Ok.


Saltarei as anotações que fiz para uma série de deficiências. Vamos às piores. Ainda no capítulo em que a viúva escreve em seu diário, ela descreve a cena em que conversa com um vendedor de côco, o Gérson, o homem dos olhos terríveis.

“Eu nunca sei mesmo a hora certa de mostrar minha cultura e falei: Isto me lembra Tchecov, o escritor russo que seria um médico frustrado se não fosse a carta de Grigorovitch, outro escritor, que o encorajou a se entregar à literatura”.

Trata-se de um diálogo totalmente estapafúrdio. Sei que as categorias da verossimilhança, tão defendidas por Aristóteles, já estão meio fora de moda, mas... puta-que-pariu! Tudo tem limite.

Ah, reparem como o autor pontua o diálogo, com ponto, aspas, ponto de novo, ou vírgula. É uma orgia de pontos e vírgulas e aspas. As aspas estão bêbadas, os pontos drogados e as vírgulas se aproveitam para bolinar todo mundo.

“Sim..”,,, lágrimas começaram a rolar pelo rosto da viúva. “Depois de matá-lo, ele levou o seu relógio, sua carteira e os seus sapatos. Ele é frio e cruel. Como uma lebre, encostou o revólver na cabeça do meu marido e fez os disparos. Foi uma execução covarde.”

Como uma lebre? Como uma lebre? Aí é foda!





Benário ficou atônito com tudo isso. Não compreendeu como Confrócito pôde publicar um negócio desses e ainda fazer uma resenha que começa, escandalosamente, chamando Nogueira de “talentoso”.

A resenha tem tantos erros que não ajuda em nada o romance. Benário cita uma frase da resenha: “Um suposto niilismo é evidente na obra”. Ora, se o niilismo é suposto, não poderia ser evidente. Questão de lógica. Mas isso é o de menos, diz Benário. Há outras pérolas. O texto é uma verdadeira bomba escatológica.

Irritado com o que lera, Benário decidiu se desligar do grupo. Alguns anos depois, lançou um livro que, infelizmente, foi ignorado pela crítica. Com trinta e cinco anos, morreu num acidente de carro.

A incrível história do anão

Entrei no bar e Cardan estava sentado à mesa, junto a uma corja brilhante de outros artistas, malucos, bêbados e alguns nobres correspondentes do sexo oposto. Pareciam estar todos bem altos, o que era compreensível, dado o avançado da hora – eram duas da manhã – e o número de garrafas vazias. Alguém me reconheceu e berrou:

“Miguel do Rosário! Sente-se aqui conosco! Ô Clebinho, traz um copo e mais uma cerveja!”

Pedi licença para pegar uma cadeira desocupada numa mesa ao lado, com três rapazes mau humorados, provavelmente desgostosos com a fatalidade de terem estacionado sua boemia discreta ao lado daquele grupo tão silencioso quanto a Regina Casé e Elisa Lucinda recitando poemas eróticos debaixo da sua janela, às quatro da matina.

Cardan enfim me reconheceu e acenou pra mim, lançando-me seu olhar alegre e intrigado de sempre. Micróbio, a seu lado, acompanhou seu olhar e também me acenou, entusiasmado com minha presença.

“E aí Rosário? Que tá fazendo por essas bandas?”, falou Micróbio.
“Vim conferir se a cerveja continua gelada por aqui”, respondi, meio sem graça, sentindo-me deslocado por estar completamente sóbrio numa mesa de ébrios. Não era um problema dos mais complexos, naturalmente, e encaminhei logo uma solução pedindo ao garçom uma dose de Salinas. Melhor, duas doses, por favor.

Depois que bebi as duas doses, fiquei mais à vontade. Cardan e Micróbio riam desbragadamente de uma piada contada por um sujeito cuja aparência por si só parecia justificar as risadas. Aí Micróbio – um baixinho de olhos espertos que possuía um sebo em frente a um badalado teatro da praça Roosevelt – virou-se pra mim e perguntou:

“Aí Miguel, contaí sua versão da briga de Cardan com o anão. O Cardan disse que o cara era um mala insuperável, e que por pouco não estraçalhou o sujeito ali mesmo. Como foi a coisa? Cê tava lá?”

Eu sabia que teria que contar aquela história de novo. Aliás, por isso mesmo é que eu estava já na terceira dose de cachaça, fora os golões na cerveja. É público e notório que minha língua enrola nesse estágio intermediário – mais adiante ela desenrolava, embora aí as idéias é que perdessem grande parte de sua consistência e objetividade originais. Resolvi contar enrolando a língua mesmo, até porque o público ouvinte não me parecia capaz de perceber se eu tinha língua ou não.

“Foi uma merda, Micróbio. Encontrei uns amigos num outro bar e ficamos bebendo chops. Era dia da promoção Terça em Dobro, em que você bebe dois chops e paga um, o que nos levava a beber duas vezes mais que o normal. Como normalmente a gente bebia duas vezes mais que a maioria das pessoas, pode-se dizer que, com esta promoção, a gente bebia quatro vezes mais que o normal. Tinha umas dez pessoas na mesa, inclusive o Anão, um artista plástico com ateliê ali pela Lapa. A gente fechou a conta e eu disse que ia para outro bar encontrar um amigo de São Paulo, diretor de teatro, dramaturgo, escritor, ator. A maioria estava cansada e resolveu ir embora, à exceção de Débora e Aline, minha consorte e minha melhor amiga, respectivamente. Levantamo-nos e fomos pra rua. Resolvi dar uma passada no ateliê do Nilson para pegar um livro emprestado e falei pras meninas irem na frente. Quando atravessei a rua, vi o Anão as seguindo, mas não dei muita bola à coisa. Acabei me atrasando um pouco no ateliê e quando cheguei no outro bar, a situação já estava bastante tensa, embora eu, devido a meu estado etílico, não tivesse percebido.”

Cardan interrompeu o meu relato: “Porra Miguel, que jeito de falar é esse? Parece que tá lendo um conto!”

Eu matei um copo de cerveja e retruquei: “Mas isso é um conto caralho! E você é apenas um personagem. Faça o favor de escutar tudo até o fim”.

Cardan olhou para Micróbio, como quem diz: esse cara tá piroca das idéias, mas levou na boa, balançou a cabeça e levantou seu copo de cerveja na minha direção, num sinal para que eu prosseguisse.

“Bem, como eu ia dizendo, quando eu cheguei lá havia nitroglicerina no ar. Mais tarde, conversando com Débora e Alice, elas disseram que o Anão, de fato, encheu o saco. Foi até meio agressivo com o casal que acompanhava Cardan. Era um casal de atores, muito educados, que estavam jantando sossegadamente quando eles chegaram. O Anão iniciou um discurso bem hostil contra o teatro e a TV e sei lá mais o quê. Não era bem o que ele falava, mas a maneira, agressiva, antipática, entende? me disseram elas.

Eu me sentei à mesa um pouco antes do ponto de ebulição. Sinto-me culpado por não ter vindo junto com elas, e evitado que as coisas chegassem nesse ponto, mas não posso me responsabilizar por outro bêbado que não eu.

Foi isso. Cardan explodiu. Começou a falar muito alto, puto da vida, coisas do tipo: FODA-SE A GLOBO, PORRA! VOCÊ SÓ QUER FALAR DE GLOBO! TÔ CAGANDO PRA GLOBO! VOCÊ CONHECE MEU TRABALHO? CONHECE O TRABALHO DELES (apontando para o casal)? ENTÃO?

Depois desse desabafo, ele até se acalmou. O pior veio depois. O Anão quis comprar briga e desatou a praguejar. Cardan olhou pra ele e mandou:

NÃO QUERO SABER TUA OPINIÃO, CARA. TE ACHO CHATO PRA CARALHO. NÃO GOSTO DE VOCÊ.

O Anão se levantou e quis partir pras vias de fato.

OLHA O TEU TAMANHO!, devolveu Cardan, levantando-se também.

Dois garçons já estavam nas proximidades, procurando resolver a questão. Tinham um risinho no canto da boca; devia ser a diversão do mês pra eles.

Nessa hora, consegui superar minha confusão e convoquei o Anão a se retirar. Como ele possuía algum instinto de sobrevivência, aceitou na boa. Acompanhei-o até o bar do outro lado da rua, sentei-me com ele um instante, tomei um copo de cerveja, encontrei um conhecido para fazer companhia (de forma a garantir que ele não voltasse) e retornei ao bar.

Vou confessar a vocês. Eu estava arrasado com aquilo. Não estava nem mais com muita raiva do Anão. Não sou de guardar rancor. Mas é que o Cardan não merecia ter se estressado daquela maneira. Nenhum de nós. Fazer o quê? No resto da noite, quase não consegui falar, tão abalado fiquei com o episódio. Que merda! O pouco tamanho do sujeito revelou-se inversamente proporcional à sua capacidade de atormentar os outros. Eu estava nervoso, deprimido, bebendo num ritmo além do normal..."


“Pára! Pára! Cala essa boca!”

Olhei assustado para onde vinha o grito. Era um senhor sentado na ponta mais afastada da mesa. Sua fisionomia não me era estranha... Hum... Reinaldo de Moraes! O célebre autor de Tanto Faz! A alegria de reconhecê-lo durou apenas um segundo, afinal o cara estava me mandando calar a boca.

“O rapaz, desculpa pedir para você calar a boca assim. Mas é que você não está indo bem. Seu estilo está muito irregular. Uma hora o texto flui legal, com doses de humor inteligente, à lá Chandler, embora um pouco forçado; em outra você cai para um estilo confessional-descritivo barato, vulgar. Além do mais, você tem que criar mais pausas, mais espaços de respiração. A história não é totalmente má. Mas faltou um pouco de suspense, de ação, drogas. Ah, e o Cardan é MEU PERSONAGEM CARALHO!

“Tá certo, Reinaldo. Olha só. Eu não fui nada pegar livro emprestado no ateliê do Nilson. Fui fumar um baseado. Por isso demorei por lá, e cheguei meio aéreo, distraído, sem perceber o curto-circuito iminente."

“Hum, melhorou um pouco. Pode acabar aqui se quiser. Tudo bem, autorizo você a usar o Cardan.”

“Falou Reinaldo, obrigado pela força."

***

Horas mais tarde, na mesma noite, pediram-me para recitar um poema, o qual transcrevo abaixo.

os homens incendeiam esperanças de papel
enquanto esperam o calor das ressacas
que a manhã despeja
na orla suja da praia

excessivos agostos
rompem a pele macia
das crianças que somos
quando pegamos em armas,
ou tomamos uns drinks

luz destruída
pela reluzente merda
das noites tristes
que anunciam
a sublime escuridão
de um futuro sem asas

os erros prosseguem
fermentando em nós mesmos
aleijões sangrentos
que cultivamos
como nossa mais sutil
indignidade

a qual,
a despeito de sua irisada
imperfeição e vergonha
é também o que possuímos
de mais original
- nossa mais fulgurante
contradição, nosso amor
mais secreto e apavorante

o que se oculta
nas dobras da felicidade
perturbando o sono
gerando confusão
é isso, o poeta
é o artífice
da perplexidade

A luz irrompe onde nenhum sol brilha

Esse cara é o Dylan Thomas, poeta britânico nascido em 1914. Não me lembro direito como o conheci. Acho que foi através do conto O Perseguidor, de Cortázar, no qual o personagem principal, o saxofonista Johnny Walker - inspirado no músico realíssimo Charlie Parker - é leitor assíduo de Dylan. Ou então foi através de alguma biografia de Robert Allen Zimmerman, nosso querido Bob Dylan, que homenageou seu ídolo tomando-lhe emprestado o sobrenome. Vale dizer que o músico Dylan fez jus ao empréstimo. Quem sabe um dia eu, enchendo o saco do meu próprio sobrenome, não resolvo me chamar Miguel Dylan? Não, melhor não.

Na época em que eu lia Dylan pela primeira vez, no início dos 90's, aconteceu uma coisa chata. Meu pai teve um infarte e foi hospitalizado. Eu estava fora de casa, acho que em outra cidade. Voltando ao Rio, peguei um ônibus para visitá-lo no CTI. Consegui a proeza de escrever um poema no próprio ônibus. Um poema inspirado em Dylan Thomas, no texto intitulado A morte perderá seu domínio. Lembro que foi uma poesia muito forte, ou pelo menos me pareceu assim (infelizmente, perdi esse poema), que tinha o objetivo bem ambicioso de salvar a vida do meu pai. Minha poesia falava algo como não se deixar levar pelo caminho mais fácil, não se deixar seduzir pelo canto sedutor da morte. Não pude vê-lo naquele dia, mas entreguei o poema ao médico, para que repassasse a meu pai após a operação de safena. Quando retornei ao hospital, no dia seguinte, seus olhos brilhavam, febris, vivíssimos. Disse-me que tinha amado o poema. Aquilo foi importante pra mim. Tive a impressão de que o poema ajudou-lhe num momento difícil. Ele viveu, depois disso, muitos anos. Ainda pôde trabalhar muito e consumir muitos litros de uísque.

José Barbosa do Rosário, meu pai, foi um grande sujeito. Exagerava na bebida, mas sempre foi muito trabalhador e absolutamente íntegro. Chegou do sertão mineiro com 21 anos de idade e algumas notas escondidas na cueca. Nada ver com aquele infeliz assessor do irmão do Genoíno, pego com cem mil dólares no cuecão. Meu pai carregava seus parcos recursos num bolso costurado na roupa de baixo porque minha avó achava - com razão - que o Rio tava cheio de ladrão.

O velho teve dois grandes sofrimentos na vida. Um foi a destruição mental do irmão Cirilo, internado aos vinte anos numa clínica psiquiátrica obscurantista que torrou seus neurônios de tanto choque elétrico. O tio Cirilo ainda está vivo. Eu e meu pai fomos visitá-lo em vários hospícios dos arredores do Rio.

O segundo trauma foi a morte bárbara de seu outro irmão, Francisco, torturado medievalmente por policiais da nona DP do Rio de Janeiro, no finalzinho da ditadura, 1981, o que motivou meu pai a escrever seu único livro, Quando a polícia mata.

Dia desses conto mais histórias do meu pai e dos meus famíliares do Triângulo Mineiro. Adianto só que um tio avô meu era jagunço autônomo, cobrava para matar e colecionava orelhas de suas vítimas numa bolsa de couro que levava sempre consigo, à guisa de curriculum vitae.

É isso, deixo vocês agora, com 2 poemas do Dylan Thomas, tirados de um site com excelentes traduções de Ivan Junqueira e Fernando Guimarães. Para os feras do inglês, pode-se ler originais do poeta por aqui.
**

A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.

Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.

A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.

A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.

A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

( tradução: Fernando Guimarães)

**

E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direcção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.


( tradução: Fernando Guimarães)



PS: Por último, pero not least, dêem um chego no site do Claudinei, para ler o texto do Mirisola sobre a Flip.

O primeiro

Imagino os seres humanos como milhões de espermatozóides nadando desesperadamente pelos canais uterinos, disputando um lugar dentro do óvulo, conquistar o troféu, atingir a glória, romper a membrana do anonimato, entrar no mundo quentinho e protegido onde serão alimentados, mimados. Onde poderão se desenvolver e se tornar grandes, inteligentes e poderosos.

Quem será o vencedor? O mais rápido, negando a parábola da lebra e da tartaruga, ou o mais paciente, confirmando-a? O mais esperto, o mais culto, o mais criativo?

O tropel de candidatos passa por mim, atropelando, machucando, pisando no meu pé. A gritaria fere meus ouvidos, o cheiro de desodorantes vencidos causa-me náuseas. Há tempos que observo, inquieto, diante de tal tumulto, minha incapacidade de prosseguir. Deixo-me estar, à margem, sem pressa, contemplando o tumulto cada vez maior.

Uma aparição inusitada

Aconteceu uma coisa tão incrível comigo esta noite que sinto necessidade de compartilhar com os milhares de leitores deste blog, na esperança de que alguém possa me fornecer explicações razoáveis sobre o fato, ou trazer-me o alívio de confessar que também já passou por experiência semelhante. É notório que as pessoas, quando vivenciam uma experiência demasiadamente insólita, ficam constrangidas de relatar o que viveram por temerem a fama de falastronas ou pior, doidas.

Sem mais delongas, vamos ao que interessa. Deitei-me na cama para dormir ontem mais cedo que o habitual, meita-noite. Havia terminado meu trabalho no meio da tarde e gastara o resto do dia num barzinho das redondezas, lendo jornais e o livro A Outra Volta do Parafuso, de Henry James, adquirido por mim, no mesmo dia, pela inacreditável bagatela de 1 real, num sebo de rua ali perto.

À noitinha, vim pra casa, tomei um banho, assisti os jornais da tv, naveguei um pouco pela internet e logo comecei a sentir muito sono, efeito natural das cervejas ingeridas à tarde.

A Priscila estava fora, com um grupo de turistas franceses. Chegou por volta da meia noite e já me encontrou dormindo. Ela me contou que ficou viajando na internet algumas horas e depois foi se deitar a meu lado.

De madrugada, eu acordei com o ruído de teclado, quer dizer, de alguém digitando num teclado, muito rápido. Pelo silêncio absoluto que vinha da rua, constatei que devia ser muito tarde, quase de manhã, e estranhei o fato da Priscila ainda estar acordada. Ia voltar a dormir quando, horrorizado, verifiquei que a Pri estava ali, na cama, dormindo profundamente.

Então, quem estava ao teclado? Eu moro num conjugado, ou kitchennette, dividido ao meio por uma cortina vermelha. Na salinha de entrada, temos uma cozinha americana, a geladeira e a mesa do computador. Do outro lado da cortina, o sofá cama, onde dormimos, a tv e o armário de roupas.

Fiquei paralisado por muitos segundos, procurando em vão acordar do que eu achava fosse um pesadelo. O ruído prosseguia. Às vezes paráva, como se a pessoa tivesse usando apenas o mouse. Dava pra ouvir os clicks.

A essa altura eu sentia um enorme frio na barriga. Passando mal de medo. Mas aí lembrei que podia ser uma amiga da Pri, que ela trouxera sem me avisar, e que agora estava escrevendo em nosso computador. Aliviado com essa hipótese, única explicação plausível, perguntei:

- Ei, quem está aí?

Minha voz soou estranha, trêmula, nitidamente nervosa, por mais que eu tivesse tentado disfarçar o mal estar. Não houve resposta. O ruído do teclado não foi interrompido. Perguntei de novo, num tom mais calmo, procurando afetar o máximo de tranquilidade:

- Ei, quem tá aí na sala?

Nada. Levantei-me. Não conseguia pensar em nada. Sentia-me fraco. Fui até a sala e deparei com uma figura absolutamente desconhecida. Era um homem da minha altura, um metro e oitenta, nem gordo nem magro, pele morena e cabelos pretos, um verdadeiro mestiço brasileiro, como eu. Aparentava ter uns trinta anos e vestia jeans e uma camisa preta de botão. Não fosse um intruso, pareceria inofensivo.

- Quem é você? - indaguei, indo na direção da cozinha pra pegar uma faca.

Ele me olhou de lado com um sorrisinho irônico, deu uns cliks no mouse e voltou a escrever.

Tonto de confusão e medo, alcancei a pia e peguei a faca, que escondi atrás de mim. Observei sua cintura e mãos, à procura de alguma arma, mas não vi nada. Encorajado por isso, falei mais alto:

- Saia já da minha casa, seu... seu... maluco!

O sorrisinho irônico dele dissipou-se; rodou a cadeira giratória pro meu lado e me encarou. Eu senti um calafrio perpassando todo meu corpo: conhecia aquele cara de algum lugar.

- Te conheço? - perguntei.

Ele me olhou de alto a baixo e falou pela primeira vez:

- Nunca pensei que você fosse assim. Patético.

A voz era grossa, aveludada, um pouco rouca; não sei se foi o tom sarcástico... mas aquelas palavras calaram fundo em mim, irritando-me fortemente. Quem era esse sujeitinho que invadia minha casa para me ofender? Mostrei a faca.

- Guarda essa faca, Miguel. Não sabe que eu sou, cara? Eu sou a tua persona literária. Não acredita? Ué, por tanto tempo você implorou para que eu surgisse... Um dia até chorou... Disse que nunca seria um escritor de verdade senão encontrasse sua persona literária.

Minhas pernas amoleceram. Aquilo só podia ser loucura. Tenho histórico na família. Um tio esquizofrênico. Quando moleque, fui visitá-lo várias vezes no hospício. Sempre temi que acontecesse comigo, mas nunca pensei que a coisa viesse assim, de forma tão direta, tão...

- Sei o que você está pensando. Que está louco. É o que todos pensariam, meu caro, numa situação dessa. Mas não é o caso. Acredite em mim. Você está completamente normal. Eu sou a sua persona literária. E mais, já comecei a escrever o seu romance. Olhe aqui, já temos dez páginas escritas.

Ele apontou para o monitor e, com o mouse, fez rolar as páginas escritas no editor de texto.

- Eu tinha que vir em pessoa, Miguel. Não dava mais para esperar você me "incorporar". Você é muito preguiçoso. Várias vezes, quando eu achava que seria o meu momento, você calçava os chinelos e ia pro botequim, beber cerveja ou coisa que o valha. Quantas vezes! Cansei. Eu tenho que viver porra!

De tão nervoso, eu senti vontade de rir e, de fato, soltei uma risada que mais parecia uma tosse. O frio na barriga tinha aumentado. Eu não sabia o que fazer. Apenas olhava, estupidamente, aquela aparição esdrúxula. Aquele demônio.

- Não fique assim, irmão, tudo vai dar certo. Eu simplesmente vou escrever o seu romance, assim como fizeram as personas literárias de John Fante, de Bukóswski, do Mirisola, depois vou embora. Você terá seu livro. Possivelmente, poderá até ganhar prêmios. Com certeza, seu prestígio social vai aumentar exponencialmente. Agora sim, você poderá conversar de igual para igual com todos os escritores brasileiros com a segurança de quem escreveu uma grande obra literária!

Eu estava meio em transe. Não sei bem porque eu fiz aquilo. Alguma coisa naquela persona me desagradou profundamente. Aproximei-me dela e enfiei-lhe a faca no peito, no lugar que eu supunha ser o coração. Enterrei a faca bem fundo e a deixei lá.

A persona me lançou um olhar de perplexidade. Eu sabia o que ela pensava. Ela não compreendia a razão de um escritor matar a própria persona literária. Eu também não entendia. Só sei que me sentia profundamente aliviado. Livre.

Conforme o sangue vazava de seu corpo, ela ia desaparecendo, ficando cada vez mais transparente, até sumir de vez. Eu me sentei na cadeira e, sem me dar ao trabalho de olhar o que estava escrito na tela, apaguei o texto. Depois apaguei o arquivo, inclusive da lixeira.

Quero que as personas literárias se danem, pensei, antes de voltar a dormir.

Filosofia do café solúvel (em gerúndios ascendentes)

Queria ser mais honesto comigo, mais cínico em meus delírios. Aliás, honestidade e cinismo tem origem na mesma palavra em aramaico, sabiam? Realizei algumas experiências meio bestas, assimétricas: porres solitários, leitura de clássicos, observação de coelhos esfolados (depois de fodidos). Apud Mirisola, dei para vomitar estrogonoffs em melancólicas tardes de agosto e estrangular crianças. Na esquina da Maria Antônia com a Consolação, pensei em sequestrar uma menina que chorava ao lado da mãe. Não fui ao show dos Stones em Copa e, desesperado, decidi apelar: relembrei antigos casos de amor. Horrível.

Ela andava aborrecida porque eu não escrevia sobre nossa história. Tenho um bloqueio contra isso. A troco de quê conspurcar a relação com meu fracasso literário? O amor, pra mim, tinha muito a ver com café solúvel e pão com manteiga, às três da manhã. Talvez eu explique isso adiante.

Veja só, com vinte anos eu tinha paixões fulminantes por garotas que passavam na rua. Qualquer sorriso, o mínimo gesto de simpatia, me envenenavam de morbidez romântica. E lá ficava eu, apaixonado como um chimpanzé. Esquizóide, totalmente. Eu era louco, cara, um enfant terrible de merda .

Por essas e outras, falar de amor não dá. Amor se vive assim, assim, às escondidas. Assistindo filme francês, fazendo longas caminhadas, tomando chuva, realizando viagens malucas para Arraial do Cabo, dormindo no colchonete durante um ano, degustando miojo com elegância de artista incompreendido.

Droga, essas coisas me atrasaram. O romantismo babaca, a mania de ficar triste, o escapismo da cerveja e, naturalmente, o café solúvel. Maldito café solúvel!

No início dos anos 90, eu queria ser roqueiro. Eu e um chapa criamos a banda Ratos de Bar e compomos vinte músicas, inclusive alguns pequenos sucessos universitários, como Acidente de Moto e Noites de Inverno. Até que um cara-dono de um estúdio no Rio Comprido engatilhou sua opinião na minha testa: cara, você não toca nada. Fiquei calado, ferido de morte, máscara firme no rosto, bebendo a cerveja que ele nos oferecera.

Naquele momento, eu podia dar uma de Robert Jonhson, sumir por uns tempos, fazer um pacto, e voltar gênio, vingativo. Mas decidi que o melhor era desistir da música e escrever. A merda foi o café solúvel, que estragou tudo.

O amor, baby, prefiro vivê-lo, suave e intensamente. Caçando passarinhos e os lambendo, vivos, bem devagar. Bebendo uísque pelo gargalo, com calma de bêbado profissional. Sobre o café, não dou explicações; é o pequeno mistério dessa noite.

Os porres no bairro de Fátima, bem, insistirei neles. Até agora não me inspiraram porra nenhuma, em termos literários; mas valem pelas filosofias que eclodem entre a quarta e a quinta antartica, antes de vazarem pelo ralo do mictório. Triste pra caralho isso, o esquecimento; ou talvez seja necessário.

- O porre é o botão "reset" da alma.

Além disso, nada mais acintosamente humano que o esquecimento e a ressaca. Infelizmente, também é humano ver mulheres atropeladas por caminhões de gás, tendões estraçalhados por bombas clusters, embora, andei pensando, no fim das contas, alguns pirralhos sobrevivem ao tiroteio, pirralhos azuis, lilases, amarelos. Vale o mesmo para velhas desonestas, que roubam gerânios negros e xepa de feira, criam gatos fedidos e neuróticos e bebem - ó deuses do jack daniels - café solúvel.

A história termina sem conclusões, com parasitas rastejando em minhas costas e o autógrafo de Fagner no álbum da família; longe, longe, a gente bebendo - com doses excessivas de gerúndio - caipirinhas, Dylan cantava I shall be released, apenas isso (dinheiro no bolso, claro): nós mesmos, dois loucos brindando ao nosso amor - apenas levemente ferido por clichês - e à existência e maldição do café... ah, do café e seus mistérios...

Todas as histórias já foram contadas? Não necessariamente

Na entrevista para o Globo, a escritora Marcia Denser se alinha com a turma da linguagem pura, ao afirmar que "todas as histórias já foram contadas" e que "o importante na literatura não é o conteúdo". A turma em questão é numerosa e densa. Reúne autores que inclusive não gostariam de ser colocados na mesma sala. Declarações bem parecidas podem ser colhidas em livros e entrevistas de Ruffato e Mirisola, e no mesmo Prosa & Verso que publicou a matéria sobre a autora de Caim (Editora Record), há uma resenha bem interessante de Flávio Izhaki sobre o novo livro de Evandro Affonso Ferreira, Catrâmbias! (Editora 34), na qual o Izhaki comenta justamente a opção de Ferreira pelo experimentalismo sintático.

Essa escola tem representantes de peso na literatura ocidental, a começar por Faulkner e James Joyce. Mesmo quem não gosta desses dois, tem que admitir a importância deles na renovação do romance moderno. Marcia Denser, por exemplo, é admiradora veemente da obra de Faulkner.

Então, será mesmo que "a história" acabou? Que a única literatura que presta, com letra maiúscula, que merece ganhar prêmios e ser estudada em universidades, será a literatura de linguagem?

Ontem estava conversando com um amigo, o artista plástico Hélcio Barros, um pessimista radical assumido e ele respondia nossas perguntas com um sábio: "não necessariamente". Brincamos que essa resposta serviria para todos os questionamentos do mundo. Igual a ela somente o célebre "ou não" de Caetano.

Pois bem, copio a resposta do amigo Hélcio. Não necessariamente.

Em primeiro lugar, nota-se uma profunda (e crescente) clivagem entre a literatura comercial, que vende muito (O caçador de Pipas, Quando Nietzsche Chorou, Código Da Vinci, etc) e a LITERATURA (na qual incluo trabalhos muito bons e ousados, mas também muito lixo pretensioso, de baixíssimo valor artístico) que vende cada vez menos.

Na literatura comercial, também se pode encontrar coisa boa, embora não para pedantes refinados e bêbados como são quase todos os literatos (incluindo eu). O povo gosta, fazer o quê? E olha que esse "povo" não é o mesmo que recebe o Bolsa Família, mas classe média e alta, enfim gente que tem muito mais dinheiro que os próprios "críticos" e "escritores", geralmente, têm - sobretudo se vivem das mixarias que jornais e revistas pagam pelas resenhas.

Sem mais delongas, discordo da opinião da Denser. Eu me considero um dos últimos românticos a acreditar no valor da história e que ela ainda tem e terá uma importante função estética dentro do texto LITERÁRIO. Não será mais soberana, como já foi, mas compartilhará o poder, dentro do texto, com a originalidade e o estilo.

Eu gosto de textos com história. Prefiro Doistoiésvki à Faulkner; Proust à Joyce. Até hoje curto ler Conan Doyle e suas intrigas policiais mirabolantes. Procuro sempre estar atualizado quanto aos novos autores policiais norte-americanos.

Mais que isso, tenho fé de que somente a história, ou enredo, poderá libertar a LITERATURA do gueto. Claro que, para que isso se concretize, será preciso novos autores das letras nacionais. Alguém que crie histórias muito boas e as narre de uma forma genial. Não digo que precisamos de um Messias, mas se for o caso, que pelo menos seja um de acordo com essa lenda aqui.

De novo na Roosevelt

"camisinha usada é ressaca de caralho esclarecido", MM



Neste sábado, o re-lançamento dos livros do Mirisola reuniu uma cambada de escritores na praça Roosevelt. Legal observar o pessoal se encontrando sem objetivo determinado, sem pretensão de criar nenhum "movimento", sem compromissos mútuos, apenas o prazer e a liberdade de estar juntos, tomar umas geladas, e fazer o velho e bom tráfico de idéias - o que alguns também denominam "filosofar", ou simplesmente "falar merda".

Aviso aos amigos que se confundiram: não estou morando em São Paulo. Só estive lá uns dias. Ontem, no evento organizado pelo Claudinei Vieira (que rolará todo último sábado do mês, das 14 às 18), conheci mais uma pá de gente e re-encontrei alguns novíssimos brothers (vejam como meu vocabulário se apaulistou).

O Mirisola, daqui em diante chamado O AUTOR, subiu à sua quitinete de marfim e achou um Buchanan que, generosamente, botou na roda. Não durou muito, mas foi bem degustado, sobretudo pelo Douglas Kim, que pegou a garrafa e saiu correndo para o meio da praça, tentando beber tudo pelo gargalo. Foi perseguido furiosamente por alguns dos presentes, enquanto Marcelo Montenegro recitava belíssimos poemas, ao ritmo místico e onomatopeico da guitarra de Daniel Galera.

Enfim, o uísque foi recuperado e o famigerado coreano amarrado num poste em frente ao bar, de onde passou a vociferar obscenidades (segundo informaram conterrâneos continentais presentes) em sua língua materna.

Camilla Lopes se divertia botando as mirisoletes pra correr e o AUTOR discorria sobre seu ceticismo radical em relação ao elefantinho da Cica e conjecturando, gravemente, sobre quem seria a velhinha da Casa do Pão de Queijo. E perguntava: "onde está aquele filhadaputa do Reinaldo de Moraes?"

De repente, todos os olhares se voltaram para uma das mesas. Diante do público estarrecido, Pindoca e Picunha beijavam-se na boca, um beijo incendiário, nitroglicerina pura. Até Kim parou de berrar em coreano e contemplava a cena em total perplexidade (ciúmes?).

Indignado, Vieirinha foi lá e interrompeu o idílio. "Vocês estão estragando a festa porra!". Os dois sorriram, envergonhados, e concordaram em segurar a tesão (no feminino, como prega o AUTOR) por mais algumas horas.

As coisas foram voltando ao normal. Os berros de Kim haviam alcançado harmonia com a música e a poesia. Alguém teve pena e foi lá dar um pouco de uísque pra ele. Enquanto isso, a Marcia Denser e eu travávamos uma dura discussão, ela defendendo Faulkner e menosprezando Dostoiésvki, eu dizendo que o único livro de Faulkner que prestava era Santuário e que o velho Dosti é que era O CARA. Até que me dei por vencido, beijei-lhe as mãos e concentrei-me no que restava do Buchanan.

O AUTOR continuava falando sobre o elefantinho da Cica e a velhinha da Casa do Pão de Queijo, até que alguém lembrou de lhe perguntar o que faria com o dinheiro do Jabuti, caso fosse o vencedor deste ano. O AUTOR então se ergueu, lentamente, olhou para um lado e outro, olhos brilhando de malícia, como se tivesse esperado anos para dizer aquilo e soltou:

- VOU MANDAR O R., O M., O N. E O P. TODOS ELES PARA A PUTA QUE OS PARIU! É ISSO MESMO, VOU MANDAR TODO MUNDO MANDAR NO CÚ! INCLUSIVE VOCÊS TODOS AQUI.

Todos ficaram muito constrangidos, mas ninguém ousava dizer palavra. Ouviu-se uma voz doce:

- Até eu, amor?

Ao identificar a voz, foi como se O AUTOR tivesse recebido uma descarga elétrica. Voltou-se e viu a sua AMADA, sorrindo carinhosamente. Ele abriu um sorrisão e disse:

- VOCÊ NÃO, VOCÊ NÃO.

Os dois se abraçaram e Camilla levou o AUTOR para seu apartamento, que fica dezessete andares acima do bar. Eu decidi soltar o Kim, que parecia estar bem mais calmo. Pedi, e fui atendido, para que ele não me aplicasse letais golpes de kung-fu. Conversamos sobre literatura - ele me contou que meu problema era levar as coisas a sério demais, a pensar muito, isso prejudicava meu texto e tal. Chegou mesmo a ficar furioso quando ousei falar que o Fome, do Hansum, também ficou conhecido fora dos meios literários pelas descrições precisas e minuciosas dos sofrimentos causados pela falta de comida. Nem pude falar em Josué de Castro. O Vieirinha chegou e acrescentou que o único texto meu do qual ele realmente gostou havia sido A RESENHA (o que não falei é que até A RESENHA, a meu ver, também não era lá essas coisas).

Durante todo o tempo (tirando o episódio do rapto do Buchanan), Bortolotto observou a confusão com serenidade budista, mas sabíamos que torcia para que qualquer um de seus MALAS prediletos chegasse para que pudesse exercitar seus punhos de caminhoneiro. Mais tarde, nos confessou que sua sede de boxe era tão grande que estava aceitando bater até em MALA MULHER, principalmente se fosse uma certa fulana que tentou queimar um amigo seu (e o próprio Bortolotto, por tabela) que trabalha na Folha, só porque o cara tinha assistido a uma peça do B, gostado e escrito uma crítica positiva.

Sentados junto ao balcão, Bactéria e Trovão morriam de rir. Mesmo quando fui lá e falei pro Trovão que eu ia pendurar a conta, o Trovão continuou rindo. Achei legal da parte dele. O Bactéria me cumprimentou pela RESENHA e falou sobre seus planos de montar uma filial no Rio de Janeiro. Enquanto falávamos sobre como os sebistas do Rio, em sua maioria, não tinham noção do valor dos livros que vendiam, ofertando às vezes verdadeiras raridades por preços irrisórios, um vento frio, terrivelmente frio, provocou calafrios em todos nós.

Uma sensação muito estranha pareceu invadir cada um dos presentes. Ninguém mais falava, só nos olhávamos nos olhos um dos outros e víamos uma espécie de pavor irracional. Seria o PCC? Seria o Alckmin? Alguém sussurrou que era o novo prefeito de São Paulo, Kassab, que vinha conhecer o Satyros 2. Felizmente, era só boato. Entretanto, a sensação ruim continuava. Alguém viu um vulto correndo pra cá e pra lá nos escuros da praça Roosevelt. Todos voltaram sua atenção para o local e, de fato, havia algo se movimentando.

- Esquisito, comentou alguém, parece que o vulto é... AZUL!

A frase caiu como uma bomba. Ouviu-se um "uuuhhh" geral. As mulheres começaram a gemer. Alguns, entre eles Picunha e Pindoca, saíram correndo, desabalados, gritando "o horror, o horror". Eu virei a Salinas que estava na mesa, e que nem era minha. O silêncio aterrorizado de todos era o silêncio que sucede a constatação de que algo terrível aconteceu. Enfim ouviu-se a voz de Bortolotto, trêmula, mas numa altura inteligível a todos no bar.

- Meu Deus, não é possível. É...
- Você sabe o que é isso, Bortolotto? - perguntou a Fernanda, olhos arregalados.
- Sei, mas não acredito. Não pode ser.
- Porra, diz logo cara, o que é isso? - eu insisti.

O vulto parecia se aproximar, trazendo um vento frio que gelava a alma... e aquele azul-claro mortiço, doentio, cintilando sinistramente por trás dele.

Enfim, Bortolotto falou, numa voz desconsolada:

- É ele, Jesus! Meu pai, é ele! O FILHO MORTO DA PRAÇA ROOSEVELT!



(essa é uma crônica ficcional, com suaves pinceladas de realidade. A cena do beijo, por exemplo, assim como o são as peripécias de Kim, é fictícia; foi incluída justamente como um toque de absurdo. A única coisa realmente verdadeira na crônica foi a aparição do fantasma azul)

Um Filho Morto na Praça Roosevelt

Não, Mirisola, não vou vender essa resenha por trezentos reais para o Prosa e Verso do Globo. Já bastam os “coelhos despachados a pontapés” da minha vida, oscilando entre o tédio da Fispal e a bebedeira na praça Roosevelt. Até porque eles nunca iriam pagar. Aliás, o que eles publicam ali não é resenha. É informe publicitário.

Tudo porque resolvi reler o livro, e o negócio bateu mais forte que a primeira vez – olhe que já tinha sido foda (eu nunca acreditei em primeiras vezes, as melhores sensações sempre vêm depois). Talvez porque estou em São Paulo, me sentindo às vezes um caipira, prestando muita atenção aos carros que vem de todas as direções. As encruzilhadas de sete pontas.

Sabe, cara, eu sempre achei – o que foi o meu erro capital – que a tristeza poderia me redimir. Ou seja, se eu ficasse muito triste, eu seria perdoado. Da minha covardia, principalmente. Essa mania de pedir desculpas. Fiz isso de novo, há pouco, depois de jurar que eu seria diferente. É foda... mas foda-se. Pra ser livre, a gente tem que brigar um pouco, fazer umas sacanagens, decepcionar os tolinhos e magoar os velhos frustrados.

Um escritor disse que toda literatura nasce da humilhação, ao que não dei muita bola. Me pareceu uma dessas frases de efeito. No entanto, a citação me parece pertinente ao Azul, um livro que, a meu ver, trata basicamente do sentimento de humilhação.

Todavia o escritor “é um bicho que fode”, e também um impotente (sim porque, infelizmente, a literatura nunca será uma foda em si), que se desespera porque vê o amor vencer o sexo e o amor, ah, o amor – o amor é uma merda. Bom mesmo é foder sem amor, mesmo fodendo aquela que você ama.

Eu quero escrever uma resenha do Azul sem falar da classe média e seus temores & vergonhas & podridões e não vou não vou. Foda-se a classe média. Ou antes, viva a classe média. Já chega meus ARTIGOS POLÍTICOS, que transferiram a dor que eu sentia no estômago (úlceras anti-colunismo, que besteira) para os tendões do meu braço direito. Voltei à cerveja.

Aliás, o que a classe média tem a ver com o teu livro, mêu? Nada, nadica, nonada. O teu livro – na visão que eu tive, enquanto descia a rua da consolação, pensando bem rápido, as palavras borbulhando, sem sequer imaginar que, horas mais tarde, tomaria uma surra na sinuca do Bortolotto – o teu livro é uma sinfonia de Stravinsky, ou melhor, um solo de Charlie Parker, e os caras que não perceberam isso são uns boçais. Os caras reconheceram o próprio rabo, isso sim, porque o rosto que emerge do livro não é do autor, é o rosto em si. Ou antes, o próprio cu. O cu em si. Um cu arrombado e sujo de sangue e fezes. O livro é música, cara, música clássica produzida com uma sintaxe louca, apaixonada, uma sintaxe bêbada, impossível, com bolsas embaixo dos olhos.

No dia seguinte, depois que terminei de ler o livro na cama, desci e fiquei na frente do hotel, bestando, olhando a rua, olhando uma garotinha que segurava o braço da mãe e chorava quietinha. Ela tinha trancinhas, a mãe era nordestina, nem ligava pro choro da filha. Tão triste, tão triste, tão humano, mas nem a tristeza me redimia. Não descansaria enquanto não botasse pra fora pelo menos uma parte da caralhada de coisas que pensei, subindo e descendo a rua augusta, bebendo umas cachaças no bar do Trovão, rodopiando, em transe, pelos corredores idiotas do parque de exposições Anhembi, fraudando a sala de imprensa de uma feira de alimentos para falar de literatura (o pior é a bicha que não pára de gritar histericamente do meu lado, não respeita nem a porra de uma sala de imprensa, o escroto).

Você reclamou de uns caras que vinham tentando te imitar. É melhor você se acostumar com isso. Picasso enlouqueceria se fosse implicar com todo mundo que resolveu fazer cubismo depois dele. Vale o mesmo para Chuck Berry. Eu mesmo meio que tô te imitando nessa resenha, sendo que, ao menos, tenho a elegância de assumir publicamente.

Voltando à humilhação. Porra, me senti humilhado. Ainda tô assim. Senti vontade de queimar tudo que escrevi. Começar de novo, sei lá. Talvez ainda haja tempo. Não vou te imitar. Aliás, antes que eu esqueça, vá se fuder (na eventualidade de você ter pensado isso). Contudo, a arte, depois que é publicada, vira patrimônio coletivo. Van Gogh não seria Van Gogh se não estudasse os pintores contemporâneos de Montmartre. O velho Dosty não seria quem foi não fosse um leitor assíduo de Tostói, Gogól e Puschkin, dos quais ele foi o brilhante continuador. A humilhação, disse outro escritor, não advém da vergonha por um erro pessoal, cometido acidentalmente, mas pela constatação de que somos o que somos e não há como mudar isso.

Ah, meu Deus, “que bosta, puta que pariu”, a liberdade sintática, estilística, narrativa do Azul do Filho Morto representa um marco importante na literatura brasileira e sabe porquê?

Antes, uma observação: sei que você não gosta muito do Rosa, e faz bem, mas eu gosto pra caralho daquele sertanejo sabidão, e no entanto achava que o filhodaputa tinha matado boa parte das minhas esperanças. Agora me sinto mais leve, embora humilhado. E triste pelos coelhos capotados, a morte do gente boa, a morte do meu pai, essa dicotomia dilacerante entre uma escrita de merda (às vezes) e uma razoável e firme e cruel intuição literária.

Bem, é um marco porque consolida uma liberdade que vem sendo buscada há tempos pelos escritores, uma liberdade não gratuita, um surrealismo refletido, existencial, realista mesmo. É melhor que (com perdão aos que gostam) as bobeiras holliwoodianas dum Agripino de Paula. Mais verdadeira (ô palavrinha besta, mas aqui vem com um sentido de autenticidade, força, verossimilhança) que os delírios non-sense do Campos de Carvalho. Sobretudo ajuda a libertar o meio literário da influência (não me incluo entre as vítimas dessa influência) dos analfabetos auto-promocionais e dos burocratas da pirotecnia virtual.

“Eu devo ser uma ameaça pra vida saudável”, diz você no livro. Bem, isso é mentira. Ou melhor, um paradoxo, um daqueles antigos e deliciososo paradoxos da literatura. Tão antigos quanto a maçã (uma vaga num puteiro, pois sim; ou seria um livro?) que a serpente & cafetina & tutora ofereceu à Eva.

Afinal, não é o tipo de saúde que eu quero. Saúde de hamsters de laboratório. Porra, o Azul é a celebração da doença! Nascemos mongolóides. Um bando de retardadinhos empilhando cubos e “lambendo azulejos”. Só depois aprendemos a queimar a bunda das putas e atropelar mendigos - isso sem perder a aura santa dos estetas canalhas. Aí começa a verdadeira merda.


PS técnico: Azul do Filho Morto, de Marcelo Mirisola, foi relançado há pouco pela Editora 34. Está disponível nas principais livrarias do país, porém o mais honesto é comprar no Sebo do Bactéria, na praça Roosevelt.

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