Bons filmes e a doença dos batedores de palma

Eis que la nave se va. O Festival termina amanhã, eu continuo o mesmo de sempre. Tímido como um rato doente antes da terceira latinha, depois um monstruoso e trôpego orador, mistura de collor trincadão, marcelo d2 chapado e renata sorrah de porre. O dia que eu me tornar Regina Duarte, saberei que é meu fim. Mas estou exagerando, como sempre.

Cientificamente falando, sou assim: antes da primeira cerveja, caladão, sombrio, com um sorriso mal ajambrado. Da segunda até a quarta latinha, chego no apogeu, mesclando simpatia, bom humor e um ou outro papo cabeça. Da quinta até a décima, começo a ficar mais filosófico, o que já é um sinal de decadência. Faço elocubrações complexas que sempre esqueço no dia seguinte. Da décima até a décima quinta cerveja, me torno político, aí sai de baixo. Nem eu me aguento. Mas dura pouco, porque a essa altura já estou bebendo bem rápido e logo chego na décima sexta latinha (estou contando em latinhas, em garrafas a proporção é outra, naturalmente - basta dividir por dois). A partir da décima sexta, viro piadista e provocador. Essa é a pior fase, a mais insuportável, a faceta da minha personalidade que não faria falta nenhuma a minha biografia. Fico implicando com qualquer um, às vezes discuto, arrumo brigas. Saravá!

Fim da festa. Amanhã é a premiação, concorrendo Crime Delicado, do Beto Brant; Cinema, aspirinas e urubus, do Marcelo Gomes; e Cidade Baixa, de Sérgio Machado.

Não assisti Cidade Baixa, que está sendo o mais cotado para o prêmio. Seja qual for o vencedor, porém, vale dizer que o cinema brasileiro continua pujante, inovando, ousando e mostrando mais e mais a cara do país. Uma certa linha vem se impondo a todos os novos cineastas: o humanismo na tela, a valorização do povo. Acabou-se a era classe média no cinema brasileiro, graças a Deus. Os cineastas descobriram o povo como fonte inesgotável de histórias, estéticas, paixões e crimes.


O filme de Marcelo Gomes, Cinemas, aspirinas e urubus, coloca o homem em primeiro plano. Através do personagem do alemão que vem ao Brasil vender aspirinas, faz-se o contraste com o nordestino que o acompanha em sua viagem pelo sertão. É um personagem muito peculiar. Há uma cena genial em que o nordestino protesta contra a mania do alemão de dar carona a todo mundo na estrada. "Se você ficar pegando todo povo que pede carona, a gente vai chegar no Rio é só no ano que vem", diz ele. O alemão responde: "mas você também não é do povo?". Ele faz um gesto com a mão ondulando, tipo "mais ou menos", com aquela expressão azeda no rosto. Todo mundo ri, é engraçado, mas é um diálogo profundo. Há brasileiros que se identificam com o povo e há brasileiros que não. Todos os diálogos do filme são precisos. A luz do filme é rigorosamente calculada para provocar efeito estético de acordo com a cena, de maneira que há uma espécie de trilha "luminosa" no filme, assim como há uma trilha "sonora". A história se passa durante a II Guerra, o que permite ao diretor a criação de diversas metáforas interessantes, comparando a fuga do alemão de um país em guerra e a fuga do nordestino de uma terra devastada pela seca e pela miséria.

Minha assessora, cinéfila passional, e que tem umas sacações bem interessantes, comparou Marcelo Gomes a um Fellini do sertão.

Agora, o filme do Lírio Ferreira, Árido Movie, foi decepcionante. Tudo bem, a expectativa era muita, criou-se todo um misticismo em torno do novo cinema pernambucano e tal, mas a verdade é que o filme, apesar de não deixar de ser um bom filme, com uma história muito original, ficou muito aquém do talento que Lírio provou ter em Baile Perfumado. Não deixa de ser um filme importante e uma experiência estética valorosa para a história do cinema nacional. Vale ressaltar ainda que o filme ganhou concurso público e foi produzido com baixo orçamento. Ferreira, no dia da estréia, fez um bonito discurso em defesa da nova safra do cinema nacional e da lei de baixo orçamento. Chamou de mané alguém que escreveu contra a lei do baixo orçamento dizendo que estava levando à deterioração da qualidade do cinema brasileiro. "O que você chama de baixar a qualidade, eu chamo de democratização do cinema brasileiro", falou Lírio, emocionado, gesticulando pra todos os lados.

Enfim, é um filme que faço questão de ver diversas vezes. Aliás, já estou quase mudando de opinião e achando que é um excelente filme. Como eu disse em post anterior, é um filme estranho, que dificulta um julgamento estético apressado. Lembro do Hendrix, que, ao fim de sua primeira apresentação ao vivo num pub de Londres, ficou diante de um público embasbacado, sem saber se batia palmas, vaiava ou ficava quieto.

A verdade é que essa cultura de bater palma já virou uma grande babaquice. Tenho uma puta raiva disso. Sem querer parecer arrogante, essa mania de bater palma é a coisa mais plebéia que existe. Quando vou ao Teatro Municipal assistir a um espetáculo de música clássica, e vou sempre em dias de preços populares e logo com lotação total, sinto a angústia dos músicos diante da ameaça velada da palma. Música clássica é cheia de pausas, às vezes longas pausas, e é duro o público segurar a ânsia de bater palma nesses momentos. No Festival, aconteceu isso. No meio do filme do Marcelo Gomes, aparece FIM na tela, mas era o fim do filme dentro do filme, quer dizer, da projeção que o personagem principal, o alemão, exibia nos povoados onde passava. Não deu outra: um grupo logo desatou a bater palmas, furiosamente, até o momento em que a cena seguinte deixou claro o que já era óbvio: o filme não tinha acabado.

Vou ficando por aqui. Aviso aos navegantes que o meu livro, Contos para Ler no Botequim, já está se esgotando. Quem quiser adquirir um exemplar, não deixe para amanhã.

3 comentários:

Jorge Ferreira disse...

aí Miguelito!! acompanhei as suas aventuras pelo novo cinema...e achei du caralho...estou com uma idéia um pouco parecida e ando remoendo já há algum tempo...a de uma série de sonetos para filames de que gosto...escrevi um para "o jantar", filme de ettore scola e já rasguei, escrevi um para o "psicose" e não gostei do resultado...enfim vou buscando...quando der certo...te falo mais sobre isso...Você tem acompanhado o blog do João? Velho, o cara tem escrito uns poemas foderosos...Lembra do poema história do corpo, não é? então ele acabou virando uma série...ele postou uns dois muito bons...dá uma olhada!
abração!

Miguel do Rosário disse...

Valeu Jorgito! Você também tá ficando cada vez mais fera no poema. Gosto muito de alguns versos brancos também. Vou dar uma olhada no João, abraço.

Roberto Iza Valdés disse...
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