Entrevista com Flavio Côrrea de Mello, poeta carioca


"O fato é que ler e escrever pra mim é tão necessário quanto beber uma água ou comer, se deixo de escrever durante algum tempo algo de catastrófico se passa... "


"... é a arte que acolhe o sujeito na sua diferença, com braços e veias pulsantes o envolve e, assim, ele pode doar o que tem de melhor, a capacidade de se libertar, a capacidade de transcendir o cotidiano mesquinho que o tolhe e que o reprime. Não há loucos, loucos são os outros, os outros, eu não."


Flávio Corrêa de Mello


Hoje venho com uma entrevista com Flávio Corrêa de Mello, grande poeta, do qual tenho a honra de ser amigo de longa data. Não admiro sua poesia, porém, por ser ele meu amigo. Pelo contrário. Como é frequente entre poetas, minha amizade é que nasceu da admiração por seu trabalho.

Mello lançou, há alguns anos, o livro Poemas Suíços, pela editora Ibsis Libris, e atualmente é colunista do site Bagatelas.net. Mello é carioca, mora na Tijuca, dá aulas de francês e trabalha na LIvraria da Travessa. Nesta entrevista, Mello filosofa sobre poesia e suas relações com o mundo, a loucura, a vida.


Miguel do Rosário: Flávio, quando você começou a escrever poesia?

Flávio: Com 16 anos, na época eu havia descoberto um vinil do Brasileiro, Profissão Esperança, de Paulo Pontes. Era uma gravação de um espetáculo sobre a vida e a obra de Antônio Maria e Dolores Duran, com direção de Bibi Ferreira. O lado 2 do lp me tocou muito, tinham uns monólogos que o Paulo Gracindo interpretava, entre eles um texto do José Régio, o famoso Cântico Negro. Mas ainda levou um tempo até a poesia tomar forma mesmo. Acho que a consciência poética, a consciência do ato de fazer poemas foi se moldando na UERJ, durante a graduação em LETRAS.


Miguel do Rosário: Na sua opinião, qual a importância da poesia para o ser humano?

Flávio: Para o ser humano eu não sei não, não dimensiono, neste aspecto, entendo a poesia de uma forma particular, uma forma de "religare" com o divino ou o caldeirão de emoções e pensamentos que fabricamos diariamente. Entretanto, pode-se perceber ao longo da história a importância da poesia na formação do caráter do indivíduo, desde a antiguidade, seja ela ocidental ou oriental, ela sempre esteve presente com função formadora, tanto intelectual e mental como emocional. De certo modo, hoje vejo a poesia como a arte mais íntima, na qual o poeta se expõe de maneira plena, porém discreta, até mesmo porque a poesia perante outras artes perdeu muito de sua força de influência, mas não perdeu de modo algum sua possibilidade de transformação interior, tanto para o poeta quanto para a sociedade na qual ele se insere, vide, por exemplo, casos como o de Agostinho Neto, poeta de Angola, e o de Xanana Gusmão, poeta do Timor, ambos exerceram sua poesia como elemento volitivo de transformação interior e exterior.

Miguel do Rosário: Em sua opinião, o que caracteriza a poesia de nosso tempo, de um tempo onde o audivisual impera e as pessoas sofrem com a falta de tempo livre?

Flávio: Até bem pouco tempo pensava na poesia como algo impresso... tipo tinta no papel, suor e tensão na caneta, esperma na tinta... entende... Pensava para mim, para minha produção pessoal. Hoje reavalio, pois as possibilidades do fazer artístico estão por aí... estão dadas, de modo que o poeta tem por obrigação captá-las e transformá-las, amalgamando-as no seu trabalho poético. Sim, é verdade, a poesia hoje está para além do poema propriamente dito, seja ele verso livre ou metrificado. Há um hibridismo latente em todos gêneros literários... isto eu sinto e percebo, porém, de modo algum vou sair urrando em cada esquina que o poema esquemático ou o livro morreu, ou que não há mais espaço para livros que não são lidos. Sou daqueles que, apesar das intempéries, das dificuldades capitais e físicas, acredita que ainda há espaço para o poema. Também não radicalizo a experiência de uma poética voltada para a ausência de palavras. O poema para mim, digo isto bem especificamente, faz-se com palavras e é por elas que ele torna-se vida durante a criação e, para o leitor, durante a fruição. Gosto de mesclar imagens a textos, acho isso interessante, dá cor e sabor ao texto. A proposta de artes plásticas, fotografias envolvendo-se ao texto vem a somar para o leitor, para o prazer do leitor. Quanto à falta de tempo, isto influi a feitura da poesia contemporânea sobremaneira, podemos perceber os ritmos velozes que impregnam boa parte da literatura desde o século vinte, as imagens estanques, as aliterações e as repetições. Todos esses recursos são característicos de nosso tempo. Sou influenciado por isso, você também e outros escritores também são. Entretanto, o que busco é um outro tempo textual, uma outra possibilidade literária que não está ligada ao real, mas sim a tranfiguração deste real, deste cotidiano... Quero que meus leitores tenham todo o tempo do silêncio para fruir meus poemas, que num primeiro olhar, numa primeira leitura não apreendam sentidos ou significações, mas que aos poucos mergulhem na leitura, de maneira que possam extrair algo de concreto, um sentimento, algo que eles possam se conectar a partir de uma abstração inicial, tendo tempo necessário para tal.


Miguel do Rosário: Poderia divagar um pouco sobre a tão falada relação entre a arte e a loucura?

Flávio: Mas o que é a loucura? Van Gogh cortou as orelhas. Dolores Duran chegou em casa com 29 anos e disse vou dormir, não quero acordar... Artaud tomando choques elétricos, vivendo um corpo sem órgãos, fluídico. Bispo do Rosário... outros tantos... O projeto de rádio que havia no hospital psiquiátrico Pedro II (no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro) com os frequentadores do hospital... não há segmentação, compartilhamento ou distinção. É a convivência com os detalhes internos que povoam nosso ser que pode dinamizar um processo de criação artística... Viver seus personagens, habitá-los ao ponto de não mais saber diferenciar o que é real... até mesmo por que quem é que desmistifica o real do imaginário, o estado, a ciência?... Uns tão loucos quanto os outros. A internação dos ditos "loucos", nomeadamente "loucos" foi um elemento que se sedimentou com o advento do capitalismo industrial moderno. Foucault inventariou isso muto bem, basta ler a História da Loucura. Hoje, esses conceitos se transformam, se redimensionam já que cada vez mais valorizamos a necessidade de criarmos nosso legado, nossa biografia, vide as comunidades de relacionamento que pipocam na inernet, as redes... cada vez mais o que vale é ser diferente, ser pessoal, embora ainda tenhamos medos e paranóias coletivas, tais como: medo da felicidade, medo da incerteza, medo de dar os passos que nos libertem dos paradigmas capitais, dos paradigmas de consumo. E, neste ponto, ainda necessitamos das classificações, das estratificações, de: "quem é o louco... ou aquele cara é louco", não consegue fazer suas contas, não tem juízo e incorre contra sua própria vida. Entretanto, a arte é a válvula que impulsiona o louco... é a arte que acolhe o sujeito na sua diferença, com braços e veias pulsantes o envolve e, assim, ele pode doar o que tem de melhor, a capacidade de se libertar, a capacidade de transcendir o cotidiano mesquinho que o tolhe e que o reprime. Não há loucos, loucos são os outros, os outros, eu não.


Miguel do Rosário: Fale um pouco de seu processo de inspiração?

Flávio: Difícil falar... geralmente é uma frase... as vezes estou emborcando no sono e dali vem o gérmen... esse é o foco inicial, tenho que anotar rapidamente para não perder... existem as frases que vem na rua, andando, escrevo mentalmente muita coisa que se perde, que dariam poemas geniais, mas ficam ali no cérebro. Leio muito, isso fermenta a inspiração. Reescrevo bastante... um poema meu, muitas vezes guarda apenas um verso original do pensamento inicial, não tenho essa coisa... esse hábito de preservar o movimento inicial, aceito tudo que o poema me indica, o caminho que ele me sugere... os sons, sobretudo os sons... para isso repito em voz alta... e ando de um lado para o outro... o poema só acaba quando entrego os originais para a publicação e ainda quando o leio, após ser publicado, vejo coisas que gostaria de reescrever, assim foi com o Poemas Suíços. Entretanto, há algo extremamente importante: meu estado de espírito, cultivo a angústia para que ela se liberte no texto... Nesse ponto procuro ser o mais sensível e sincero comigo, depois vem a ourivesaria, algo que me dá muito tesão, procuro apenas manter a tensão que permeia o texto, tanto na prosa quanto no poema, pois é a tensão que vai indicar o ritmo e o andamento da literatura que faço. Mas tudo se trata de experimentação, não existe uma regra fixa, existem sim alguns nós, que em alguns momentos precisam ser bem nítidos e em outros não, devem ser desatados e fluídicos. O fato é que ler e escrever pra mim é tão necessário quanto beber uma água ou comer, se deixo de escrever durante algum tempo algo de catastrófico se passa...


Blog de Flávio Mello
Poemas do autor
Coluna de Flávio Mello na Bagatelas

3 comentários:

Julio Cesar Corrêa disse...

"Esperma na tinta". Bem poético, a sua cara. Gostei das considerações sobre a loucura, essa nossa velha companheira de quarto. É o preço que pagamos. Mas vale a pena.
gd ab

marcelo sahea disse...

Esse Flavio de Mello é coisa fina. Conheci há pouco e já curti o cara.
Poeta nato. Abração.

Miguel do Rosário disse...

falou galera. obrigado pela visita. apareçam. abraço!

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