Ainda não tenho saudades de Kátia


Acordei sem abrir os olhos. Como um cego acorda, pensei, tentando adivinhar o que realmente tinha me despertado. O sol batendo forte no rosto. Ou a fome doendo no estômago.

Não tinha coragem de abrir os olhos porque sabia que o risco de enxaqueca era grande. Levantei-me de olhos fechados, prudentemente, e sentei-me na beira da cama, de costas para a janela. Agora o sol batia em minha nuca. Calor insuportável. O ventiladorzinho furreca não dava conta. Abri os olhos apreensivo. Estava em casa? A visão do armário de portas abertas, roupas entulhadas lá dentro sem ordem alguma, tranquilizou-me. Abri totalmente os olhos e fui ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes.

No caminho, tropecei numa coisa mole, pesada, e desmoronei, batendo a cabeça na televisão, que por pouco não tomba em cima de mim. Soltei um palavrão. Aliás, dois palavrões. Com uma diferença fundamental entre eles. O primeiro tinha uma entonação furiosa. O segundo soou débil e assustado. A coisa mole e pesada no chão era o corpo enrijecido e gelado de Kátia.

Curiosamente, apesar do susto, não perdi a fome. Estava há dias sem comer. Eu e Kátia nos trancáramos naquele quarto de pensão, com 20 gramas de pó e uma dúzia de garrafas de uísque e vodka. Cheirando, falando, transando, vendo tv e planejando nosso primeiro assalto.

Achei um pacotinho de batatas fritas aberto jogado num canto. As batatas estavam moles, úmidas. Comi mesmo assim. Abri o frigobar e peguei uma coca cola. Evitava olhar o corpo de Kátia. Overdose, pensei.

Não sentia dor pela perda de quem eu tanto amara. A ficha não caíra. Era como se eu estivesse vendo um filme. Pura ficção. A qualquer momento, o filme terminaria, eu iria acordar Kátia e recomeçaríamos os estudos e planejamento para o assalto à mansão do magnata.

Matei a coca cola e peguei uma latinha de cerveja.


(Pintura: Juliano Guilherme)

Um comentário:

Anônimo disse...

Interessante, bom conto policial... vai ter continuação?

vivi

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