O diabo não bebe cerveja


(Faces com língua, de Emilio Mogilner - www.123emilio.com)


Faz dez anos que tenho problemas com a bebida. Perdi o emprego. Afastei-me dos amigos, da família. Mas como sempre conseguia um biscate, criando websites ou consertando computadores, vivia sem grandes preocupações. Até que um dia, meti-me numa briga de bar e esfaqueei um homem. Nem lembro direito como aconteceu, apenas de chegar em casa, pela manhã, muito bêbado e com a roupa toda suja de sangue. O sujeito morreu. Aí me acusaram de louco e me prenderam aqui.

Não sou louco. Quero provar a vocês que sou um cara normal. Ou quase. Apenas fui vítima de acontecimentos insólitos, cujas lembranças me tornaram um sujeito desequilibrado emocionalmente.

Começou assim: eu era casado com uma linda mulher e vivia num aconchegante apartamento em Botafogo. Três quartos, duas salas, uma cozinha espaçosa e uma enorme varanda que dava para uma vista magnífica da praia de Botafogo, do Pão de Açúcar e das avenidas litorâneas. Vivíamos um para o outro e não nos separávamos nunca por mais de algumas horas. Até fazer compras no supermercado era, pra nós, uma deliciosa aventura.

Uma noite, recebemos ligação de um amigo, ex-namorado de Eurídice - esse era o nome de minha esposa. Convidou-nos para uma festa em Copacabana. Ficamos empolgados com o programa, pois Hefestos sabia das coisas. Sempre que saíamos com ele, era diversão garantida. Eurídice vestiu uma túnica verde-musgo, amarrada na cintura e cingiu uma flor azul a seus cabelos longos e negros. Eu optei por minha bata branca tradicional.

Chegamos à festa por volta da meia-noite. Tocava um som muito louco e todos dançavam freneticamente. Os garçons passavam servindo bebidas variadas. Mergulhei fundo na coisa. Eurídice me olhava assustada, às vezes, e voltava a dançar. Ela e outra moça, também muito bonita, faziam uma coreografia diabolicamente sensual. Eurídice rebolava, saltava, mexia os peitos, balançava os braços, fazia o diabo com o corpo. A outra garota não deixava por menos, acompanhando-a em todos os movimentos. Eu não estava a fim de dançar e me instalei num banquinho junto ao balcão, concentrado em beber cerveja o mais rápido possível. Aos poucos, ou de repente, não sei, tudo começou a brilhar. Quando dei por mim, estava dançando também. Era estranho, nem parecia eu. Parecia que um demônio tomara conta de meu corpo e dançava em meu lugar. Diversas garotas dançavam comigo, todas bonitas, cabelos compridos, cabelos curtos, cinturas finas, vestidos negros, vermelhos, cintilantes. Fiquei tonto. Desmaiei.

Quando acordei, a boate estava vazia. Por todo lado, centenas de latinhas de cerveja, copos de plástico, sapatos, brincos perdidos, celulares. A primeira coisa que pensei, quando minha mente deu sinais de vida, foi, é claro, em Eurídice. Onde está ela? O engraçado é que assim que pensei isso tive a impressão de já ter a resposta.

Não tenho tempo de descrever todos os lugares sórdidos pelos quais passei antes de encontrá-la. A busca durou meses. Além dos hospitais, clínicas e necrotérios, estive em prostíbulos imundos, sinistras bocas de fumo, bares suspeitos, e outros lugares mal-afamados. Vou resumir: encontrei-a trabalhando numa estranha boate na área portuária de Santos.

Seu chefe era um homem sombrio, parecia estrangeiro e possuía olhos esbugalhados e sempre injetados de sangue. O nome caía-lhe como luva: Plutão. Podia jurar que o sujeito era o próprio diabo em pessoa. Hospedei-me numa espelunca ali perto e passei a observar a rotina de Eurídice. Havia sido praticamente escravizada. O estranho é que não parecia se importar. Por que não fugia? Por que não chamava a polícia? Sem respostas, decidi salvá-la imediatamente, livrá-la das garras daquele demônio.

Esperei uma noite em que Plutão se recolheu mais cedo e Eurídice ficou sozinha atendendo os clientes. Pedi uma cerveja. Quando ela veio, segurei sua mão e a olhei bem nos olhos. Vi que estremecia, mas não havia me reconhecido. O que o desgraçado fizera com ela? Soltei sua mão, deixei que continuasse a trabalhar. Esperei. Lá pelas quatro da manhã, tentei nova abordagem. Falei que era seu marido, que meu nome era Orfeu, e que nós costumávamos ser felizes. Seus olhos brilharam, um lampejo de lucidez cintilou em seu rosto. Senti imenso alívio ao ver que recuperava a memória e me olhava enternecida. Mas durou pouco. Logo voltou ao estado catatônico que, pelo jeito, era seu natural. Voltei ao hotel e esperei o dia seguinte.

Entrei no bar à meia-noite e pedi uma tequila. Plutão estava sentado a uma mesa nos fundos, fumando um charuto e sorvendo um líquido vermelho e viscoso. Aproximei-me. Ele mediu-me por um instante, cumprimentou-me com a cabeça e voltou a se concentrar na bebida. Sem saber como abordá-lo, disse a primeira coisa que me ocorreu.

- Com licença, senhor, poderia me dizer o que está bebendo?
- Sangue. Por quê? Quer um pouco?
- Ah, sangue - respondi, tentando sorrir do que achava ser uma piada. É um novo tipo de bebida?
- É uma bebida especial para pessoas especiais, meu caro. O que você quer?
- Quero levar Eurídice. Ela é minha esposa.
- O quê? Você quer levar minha melhor funcionária?
- Sim. Ela é minha esposa, já falei.

Ele riu e deu mais um gole na bebida nojenta. Puxei um revólver de dentro da calça e apontei para sua cabeça.

- Vou levar por bem ou por mal. Agora.

Notei uma expressão de medo em seu rosto. Ele procurou me acalmar.

- Eh, fica frio, rapaz. Não vamos brigar por causa disso. Tudo bem, pode levar a garota. Pegue-a pelo braço e diga: “Plutão mandou você vir comigo”. Vá na frente. Ela vai te seguir. Saia da boate. Caminhe até o fim da rua sem olhar pra trás. Sem olhar pra trás, ouviu bem? Ela estará te seguindo. Quando vocês contornarem a primeira esquina, estarão salvos.
- Salvos de quê?
- Do inferno, ora!! - e riu desbragadamente, exibindo os dentes sujos de sangue ou seja lá o que fosse.

Quase perguntei que inferno era aquele, mas dei uma olhada rápida ao redor e certifiquei-me de que estávamos mesmo num lugar assombrosamente infernal. As pessoas se comportavam de uma maneira bizarra. Ninguém ria ou conversava. Vi, num canto escuro do bar, um homem seviciando uma garota nua da cintura pra cima. Ele chicoteava a garota impiedosamente, e ela não gritava, apenas fazia caretas desesperadas. Em outra parte, dois homens faziam sexo furiosamente.

- Tudo bem. Vou lá pegar Eurídice.

Fui até onde ela estava e sussurrei em seus ouvidos.

- Plutão ordenou que você me acompanhe.

Foi como apertar o botão de um robô. Ela me olhou com obediência comovente. Largou a bandeja e me seguiu. Em alguns segundos estávamos fora do local. Senti desejo de olhar pra trás, mas lembrei-me do aviso de Plutão. Um pouco antes de chegar à esquina, a curiosidade mordeu-me o espírito novamente. Não pude resistir. Dei uma olhada ligeira pra trás. Ela arregalou os olhos e correu de volta.

Corri atrás dela, mas quando tentei entrar no estabelecimento, dei com a porta trancada. Esmurrei, chutei, gritei, mas não me deixaram entrar. Frustrado e deprimido, voltei ao hotel.

Vou resumir: nunca mais vi Eurídice. Acionei a polícia, a justiça, detetives particulares, paguei anúncios em jornais, e nada. O bar de Plutão transferiu-se para lugar desconhecido.

Comecei a beber descontroladamente. Aí vocês conhecem o resto da história. Talvez o que não saibam é que eu aprendi a tocar violão. Quando algum de vocês vier me visitar, posso mostrar as músicas que ando compondo...

Ainda não tenho saudades de Kátia


Acordei sem abrir os olhos. Como um cego acorda, pensei, tentando adivinhar o que realmente tinha me despertado. O sol batendo forte no rosto. Ou a fome doendo no estômago.

Não tinha coragem de abrir os olhos porque sabia que o risco de enxaqueca era grande. Levantei-me de olhos fechados, prudentemente, e sentei-me na beira da cama, de costas para a janela. Agora o sol batia em minha nuca. Calor insuportável. O ventiladorzinho furreca não dava conta. Abri os olhos apreensivo. Estava em casa? A visão do armário de portas abertas, roupas entulhadas lá dentro sem ordem alguma, tranquilizou-me. Abri totalmente os olhos e fui ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes.

No caminho, tropecei numa coisa mole, pesada, e desmoronei, batendo a cabeça na televisão, que por pouco não tomba em cima de mim. Soltei um palavrão. Aliás, dois palavrões. Com uma diferença fundamental entre eles. O primeiro tinha uma entonação furiosa. O segundo soou débil e assustado. A coisa mole e pesada no chão era o corpo enrijecido e gelado de Kátia.

Curiosamente, apesar do susto, não perdi a fome. Estava há dias sem comer. Eu e Kátia nos trancáramos naquele quarto de pensão, com 20 gramas de pó e uma dúzia de garrafas de uísque e vodka. Cheirando, falando, transando, vendo tv e planejando nosso primeiro assalto.

Achei um pacotinho de batatas fritas aberto jogado num canto. As batatas estavam moles, úmidas. Comi mesmo assim. Abri o frigobar e peguei uma coca cola. Evitava olhar o corpo de Kátia. Overdose, pensei.

Não sentia dor pela perda de quem eu tanto amara. A ficha não caíra. Era como se eu estivesse vendo um filme. Pura ficção. A qualquer momento, o filme terminaria, eu iria acordar Kátia e recomeçaríamos os estudos e planejamento para o assalto à mansão do magnata.

Matei a coca cola e peguei uma latinha de cerveja.


(Pintura: Juliano Guilherme)

a poesia não paga o aluguel do meu apartamento

(Egon Schiele)


desespero-te sombriamente
entre a luz morta das praças do subúrbio
e o sonho vago, ansioso, de pequenos
proxenetas da rua Paisandu

esqueci-te num outrotra lânguido,
impregnado de magnetismo e crueldade,
eu era-me, brisa ácida, pelinhos tremulando
em pernas bronzeadas

ceticamente vaguei,
trajando roupas de aço,
por rodoviárias sujas e terrenos baldios,

estremecimentos que matam, assíduo enjôo
sem comida, pensamentos pesados,
sonhos simplórios, vil angústia

morro e mato,
verei membros arrancados,
lenta, amorosamente,
num contraste suicida,
entre a bomba e o piercing
no umbiguinho da garota dançando

desespero-te sem medo
ligeiro ódio apenas
para carburar, com rocks antigos,
teu coração cínico

os momentos transvivem-me
sangrentos, biliosos,
briga de velhos amigos,
hiroximas florindo
uma flor azul-assassino
que paradoxalmente
enrubesce o mundo

exaustos soldados,
punhetam-se nas sombras do bairro sujo
enfumaçado, destruído,
corpos mutilados
beijando fungos e cães

um sol doente
espalha negrumes brilhantes
pelos bares do centro
despertando seres estranhos,
aracnídeos semi-humanos
que vão copular em silêncio
nos cemitérios

o amor é uma mancha
de sêmen na calça
a lapa na sexta
o fogo das manhãs
sem cocaína de agosto
o grito das árvores
nas ruas engarrafadas

o anoitecer armado,
suavemente histérico,
que precede as guerras,
os casamentos,
as demissões em massa,
e as rodas de samba
da joaquim silva

Revisitando textos recém-antigos

Soneto do cangaceiro

Misterioso é o sol da morte.
Deus e armas regem o universo
Um dois três e fecho o verso
Tu vais pro sul, eu vou pro norte.

Cada um, meu, tem seu porte,
é melhor você rezar o terço,
pois sou poeta desde o berço,
está no sangue e na cor forte.

Sou índio, mestiço e brasileiro,
Serei o que a morte permitir.
Quem no caminho for traiçoeiro,

E tentar, rasteiro, me destruir,
Verá o meu facão de cangaceiro,
Que você no meio eu vou partir.

escrito por Miguel do Rosário Domingo, Fevereiro 27, 2005


***


A cor da justiça é o verde
Porque é a cor da floresta
E a floresta é a flor do mundo.

Verde é a ferida do inferno
Guerrilha das plantas
Contra a tirania do concreto.

Apesar do cinza, sangue das cores,
O verde resiste
No interior do azul
Seu amigo mais fiel
Cúmplice nas lutas.

Graças aos exércitos
Terríveis do verde
E os batalhões
Numerosos do azul
A terra, o ceú,
E sobretudo o mar
Forjam o dourado
E o vermelho,
Que embriagam a alvorada.

*****

Essa é outra poesia. É uma paródia de uma poesia do Robert Frost chamada Tudo que é dourado deve morrer.

Ianques go home

O primeiro verde da justiça é vermelho
Para ela a cor mais difícil de acalmar
A primeira flor é uma bomba
Depois bomba se rende à bomba
E o Paraíso se transforma em Bagdá.

A paz se converte em nostalgia
A justiça morre em agonia.

Bagatelas! Cheia de novidades

A Bagatelas!, que virou revista impressa e pode ser encontrada nas principais livrarias, começa seu ano após o carnaval com boas novidades! Inaugura seu selo editorial publicando um livro que seria capaz de fazer o mais honesto dos cristãos sentir-se um monstro diabólico: A Arte de Odiar, do escritor Julio Cesar Corrêia (finalista do concurso Contos do Rio de 2004).

E para quem estava com saudades dos bate-papos informais sobre literatura nas tardes de sábado, o Encontros & Bagatelas está de volta! Este será em homenagem ao consagrado Rubem Fonseca, com a presença dos escritores Tatiana Carlotti [SP], Rodrigo Melo [BA] e Julio Cesar Corrêia, que estará autografando seu livro. O evento acontece sábado, dia 01/04, às 14h, na Livraria Imperial - Paço Imperial, 48, lj. 3, Praça XV.

Entrevista com Flavio Côrrea de Mello, poeta carioca


"O fato é que ler e escrever pra mim é tão necessário quanto beber uma água ou comer, se deixo de escrever durante algum tempo algo de catastrófico se passa... "


"... é a arte que acolhe o sujeito na sua diferença, com braços e veias pulsantes o envolve e, assim, ele pode doar o que tem de melhor, a capacidade de se libertar, a capacidade de transcendir o cotidiano mesquinho que o tolhe e que o reprime. Não há loucos, loucos são os outros, os outros, eu não."


Flávio Corrêa de Mello


Hoje venho com uma entrevista com Flávio Corrêa de Mello, grande poeta, do qual tenho a honra de ser amigo de longa data. Não admiro sua poesia, porém, por ser ele meu amigo. Pelo contrário. Como é frequente entre poetas, minha amizade é que nasceu da admiração por seu trabalho.

Mello lançou, há alguns anos, o livro Poemas Suíços, pela editora Ibsis Libris, e atualmente é colunista do site Bagatelas.net. Mello é carioca, mora na Tijuca, dá aulas de francês e trabalha na LIvraria da Travessa. Nesta entrevista, Mello filosofa sobre poesia e suas relações com o mundo, a loucura, a vida.


Miguel do Rosário: Flávio, quando você começou a escrever poesia?

Flávio: Com 16 anos, na época eu havia descoberto um vinil do Brasileiro, Profissão Esperança, de Paulo Pontes. Era uma gravação de um espetáculo sobre a vida e a obra de Antônio Maria e Dolores Duran, com direção de Bibi Ferreira. O lado 2 do lp me tocou muito, tinham uns monólogos que o Paulo Gracindo interpretava, entre eles um texto do José Régio, o famoso Cântico Negro. Mas ainda levou um tempo até a poesia tomar forma mesmo. Acho que a consciência poética, a consciência do ato de fazer poemas foi se moldando na UERJ, durante a graduação em LETRAS.


Miguel do Rosário: Na sua opinião, qual a importância da poesia para o ser humano?

Flávio: Para o ser humano eu não sei não, não dimensiono, neste aspecto, entendo a poesia de uma forma particular, uma forma de "religare" com o divino ou o caldeirão de emoções e pensamentos que fabricamos diariamente. Entretanto, pode-se perceber ao longo da história a importância da poesia na formação do caráter do indivíduo, desde a antiguidade, seja ela ocidental ou oriental, ela sempre esteve presente com função formadora, tanto intelectual e mental como emocional. De certo modo, hoje vejo a poesia como a arte mais íntima, na qual o poeta se expõe de maneira plena, porém discreta, até mesmo porque a poesia perante outras artes perdeu muito de sua força de influência, mas não perdeu de modo algum sua possibilidade de transformação interior, tanto para o poeta quanto para a sociedade na qual ele se insere, vide, por exemplo, casos como o de Agostinho Neto, poeta de Angola, e o de Xanana Gusmão, poeta do Timor, ambos exerceram sua poesia como elemento volitivo de transformação interior e exterior.

Miguel do Rosário: Em sua opinião, o que caracteriza a poesia de nosso tempo, de um tempo onde o audivisual impera e as pessoas sofrem com a falta de tempo livre?

Flávio: Até bem pouco tempo pensava na poesia como algo impresso... tipo tinta no papel, suor e tensão na caneta, esperma na tinta... entende... Pensava para mim, para minha produção pessoal. Hoje reavalio, pois as possibilidades do fazer artístico estão por aí... estão dadas, de modo que o poeta tem por obrigação captá-las e transformá-las, amalgamando-as no seu trabalho poético. Sim, é verdade, a poesia hoje está para além do poema propriamente dito, seja ele verso livre ou metrificado. Há um hibridismo latente em todos gêneros literários... isto eu sinto e percebo, porém, de modo algum vou sair urrando em cada esquina que o poema esquemático ou o livro morreu, ou que não há mais espaço para livros que não são lidos. Sou daqueles que, apesar das intempéries, das dificuldades capitais e físicas, acredita que ainda há espaço para o poema. Também não radicalizo a experiência de uma poética voltada para a ausência de palavras. O poema para mim, digo isto bem especificamente, faz-se com palavras e é por elas que ele torna-se vida durante a criação e, para o leitor, durante a fruição. Gosto de mesclar imagens a textos, acho isso interessante, dá cor e sabor ao texto. A proposta de artes plásticas, fotografias envolvendo-se ao texto vem a somar para o leitor, para o prazer do leitor. Quanto à falta de tempo, isto influi a feitura da poesia contemporânea sobremaneira, podemos perceber os ritmos velozes que impregnam boa parte da literatura desde o século vinte, as imagens estanques, as aliterações e as repetições. Todos esses recursos são característicos de nosso tempo. Sou influenciado por isso, você também e outros escritores também são. Entretanto, o que busco é um outro tempo textual, uma outra possibilidade literária que não está ligada ao real, mas sim a tranfiguração deste real, deste cotidiano... Quero que meus leitores tenham todo o tempo do silêncio para fruir meus poemas, que num primeiro olhar, numa primeira leitura não apreendam sentidos ou significações, mas que aos poucos mergulhem na leitura, de maneira que possam extrair algo de concreto, um sentimento, algo que eles possam se conectar a partir de uma abstração inicial, tendo tempo necessário para tal.


Miguel do Rosário: Poderia divagar um pouco sobre a tão falada relação entre a arte e a loucura?

Flávio: Mas o que é a loucura? Van Gogh cortou as orelhas. Dolores Duran chegou em casa com 29 anos e disse vou dormir, não quero acordar... Artaud tomando choques elétricos, vivendo um corpo sem órgãos, fluídico. Bispo do Rosário... outros tantos... O projeto de rádio que havia no hospital psiquiátrico Pedro II (no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro) com os frequentadores do hospital... não há segmentação, compartilhamento ou distinção. É a convivência com os detalhes internos que povoam nosso ser que pode dinamizar um processo de criação artística... Viver seus personagens, habitá-los ao ponto de não mais saber diferenciar o que é real... até mesmo por que quem é que desmistifica o real do imaginário, o estado, a ciência?... Uns tão loucos quanto os outros. A internação dos ditos "loucos", nomeadamente "loucos" foi um elemento que se sedimentou com o advento do capitalismo industrial moderno. Foucault inventariou isso muto bem, basta ler a História da Loucura. Hoje, esses conceitos se transformam, se redimensionam já que cada vez mais valorizamos a necessidade de criarmos nosso legado, nossa biografia, vide as comunidades de relacionamento que pipocam na inernet, as redes... cada vez mais o que vale é ser diferente, ser pessoal, embora ainda tenhamos medos e paranóias coletivas, tais como: medo da felicidade, medo da incerteza, medo de dar os passos que nos libertem dos paradigmas capitais, dos paradigmas de consumo. E, neste ponto, ainda necessitamos das classificações, das estratificações, de: "quem é o louco... ou aquele cara é louco", não consegue fazer suas contas, não tem juízo e incorre contra sua própria vida. Entretanto, a arte é a válvula que impulsiona o louco... é a arte que acolhe o sujeito na sua diferença, com braços e veias pulsantes o envolve e, assim, ele pode doar o que tem de melhor, a capacidade de se libertar, a capacidade de transcendir o cotidiano mesquinho que o tolhe e que o reprime. Não há loucos, loucos são os outros, os outros, eu não.


Miguel do Rosário: Fale um pouco de seu processo de inspiração?

Flávio: Difícil falar... geralmente é uma frase... as vezes estou emborcando no sono e dali vem o gérmen... esse é o foco inicial, tenho que anotar rapidamente para não perder... existem as frases que vem na rua, andando, escrevo mentalmente muita coisa que se perde, que dariam poemas geniais, mas ficam ali no cérebro. Leio muito, isso fermenta a inspiração. Reescrevo bastante... um poema meu, muitas vezes guarda apenas um verso original do pensamento inicial, não tenho essa coisa... esse hábito de preservar o movimento inicial, aceito tudo que o poema me indica, o caminho que ele me sugere... os sons, sobretudo os sons... para isso repito em voz alta... e ando de um lado para o outro... o poema só acaba quando entrego os originais para a publicação e ainda quando o leio, após ser publicado, vejo coisas que gostaria de reescrever, assim foi com o Poemas Suíços. Entretanto, há algo extremamente importante: meu estado de espírito, cultivo a angústia para que ela se liberte no texto... Nesse ponto procuro ser o mais sensível e sincero comigo, depois vem a ourivesaria, algo que me dá muito tesão, procuro apenas manter a tensão que permeia o texto, tanto na prosa quanto no poema, pois é a tensão que vai indicar o ritmo e o andamento da literatura que faço. Mas tudo se trata de experimentação, não existe uma regra fixa, existem sim alguns nós, que em alguns momentos precisam ser bem nítidos e em outros não, devem ser desatados e fluídicos. O fato é que ler e escrever pra mim é tão necessário quanto beber uma água ou comer, se deixo de escrever durante algum tempo algo de catastrófico se passa...


Blog de Flávio Mello
Poemas do autor
Coluna de Flávio Mello na Bagatelas

Dejetos de um luxo carioca à sombra de satânicas flores azuis

Siqueiros, O tormento


(Série Posts preferidos)


vai, meu chapa, olha a vida
de frente e paga a conta
de seus porres de outrora
homem que é homem chora
lágrimas de cachaça
e está sempre brincando
em serviço

secos estão seus olhos?
molha-os com o mar
branco de teu ódio
apimentado, acarajé
com coca-cola

com pupilas limpas
contempla as ruas
e as moças semi-nuas
da praça castro alves

pega um ônibus
e vai pra chapada
da diamantina
contemplar a imensidão

eleja-se presidente de si mesmo
depois o derrube
torne-se anarquista
sem bombas, dê gargalhadas
com teus amigos do bar

não esqueças, todavia
que a palavra "buça" é sagrada,
ou satânica, não a disperdices
em poemas sem amor

a poesia às vezes se finge
de cínica,
pra comer um pouco mais
de carne vermelha

mas ainda é o amor,
sombrio e desesperado
que corre em suas veias
inchadas de poesia,
dialética prostituta
cujo beijo
exala átomos
de bondade, inteligência
e levedos
de cerveja

Lá na revista Storm

(Esculpindo Rodin, por Juliano Guilherme)


Duas dicas para vocês: uma é o conto publicado na minha coluna no Bagatelas, intitulado "O dono do Audi não gosta mais de política". Outra é o conto na Revista Storm, no link Novos autores.

Preconceito burro das salas de cinema


Ontem fui assistir ao filme "Um herói de nosso tempo", de Radu Mihaileanu. O título original é "Va, vis et deviens", que literalmente significa "Vá, viva e transforme-se". Ao término do filme, estava paralisado, sem coragem de fazer qualquer movimento, com receio de ter um acesso de choro. Tudo bem, sou meio chorão em filme mesmo, mas esse aí é o dramalhão mais triste que já assisti na vida. Mas é bom. É de um humanismo corajoso, verdadeiro, tocante. Fala da história dos judeus negros etíopes, que foram levados, na década de 80, para Israel. A viagem da comunidade de 8 mil judeus à Israel era secreta, com medo de retaliações das diversas nações árabes inimigas da região. Eles vão a pé até o Sudão, onde ficam em campos de refugiados. Metade deles morre de doença, fome, sede e crimes horrendos cometidos por outras etnias.

Em dado momento, o acampamento onde os judeus etíopes esperam a chegada do transporte que os levarão aos aviões, para chegar em Israel, recebe refugiados de várias partes da África.

O personsagem principal do filme, é o filho de uma mãe etíope não judia. Uma das negras judias havia perdido o filho e aceita levar o garoto como se fosse seu. O garoto é instruído a mentir às autoridades israelenses, dizendo ser judeu e inventando nomes judeus para si e seus parentes.

Bem, a história prossegue com uma trama muito bem construída. Ao final da exibição, o diretor participou de um debate com o público. O responsável pela distribuição do filme no Brasil, Ugo Sorrentino, também falou.

Sorrentino falou da dificuldade de trazer filmes estrangeiros não-americanos para o Brasil. As salas multiplex, por exemplo, só aceitam exibir filmes norte-americanos. Sorrentino informou ter recebido diversos nãos com a justificativa de que o filme não era falado em inglês.

Isso é de uma estupidez e de uma ignorância tão crassa que quase me deixou gago. Mas é a dura realidade do cinema brasileiro. Sorrentino explicou que as salas de cinema no país estão sendo dominadas por multinacionais americanas, cuja filosofia é essa: só passar filmes americanos, com um filme brasileiro de vez em quando e muito brevemente. Com a palavra: o governo e os cineastas. O que vocês vão fazer sobre isso.

Em tempo: Radu Mihaileanu também dirigiu o filme Trem da Vida, que se passa na II Guerra e também foi exibido recentamente no cinema do Consulado Francês no Rio. É muito bom e engraçado.

Antigo escuro


(Nilton Pinho)


"Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados
O esplendor do sentido nenhum da vida...
Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!
Quero cessar sem conseqüências...
Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo." Fernando Pessoa

Não tenho saudades de nada. Desconsiderando a dor no braço, está tudo bem. Guimarães Rosa tirava lições de vida contemplando o São Francisco. Tento fazer o mesmo observando o ventilador portátil. Toda crítica é política. Estética virou ética, ética virou estética, nos martelava o professor de teoria da comunicação. Contra o que eu me insurgia, com a violência característica de um jovem de ressaca pela manhã. Muitas vezes me calei, acumulei ódios e guerras no armário do quarto.

Se eu perdesse a voz? Voz incômoda que nem parece minha. Há tempos me cansei de espelhos. A imagem que tenho de mim mesmo sempre foi mais interessante. Aprendi a errar, a usar o erro em benefício próprio. Criei uma seita de errados e vagabundos. Só botequins me deixam à vontade para pensar e conversar. Sou hipocritamente tolerante com a opinião alheia. Prefiro ficar só, bebendo minha cerveja. Ou na companhia de caras tão malucos que ninguém se importa com o que eles pensam.

Porque a gente é assim

(ateliê de Nilton Pinho)

Tateei a ilusão no escuro. Senti uma coisa gosmenta, gelada. Não queria mais sonhar, e no entanto continuava a distrair-me em nebulosass divagações. Arrancava um braço do monstro e mastigava, feliz, cuspindo o osso pela janela. Contemplei o escuro do abismo e quis saltar, como quem pretende aniquilar a dor a golpes de niilismo.

Não consigo mais improvisar histórias simples. Como aquela da menina que bebeu um copo de ácido quando soube que seu amor havia se casado com outra mulher. Não morreu, coitada, mas o esôfago ficou meio destruído. Condenada à dieta líquida.

Já contei-lhes sobre meu tio-avô jagunço? Miguelão colecionava orelhas em sua bolsa de couro. Eram o seu curriculum vitae.

Cacique de Ramos

O tradicional bloco desfilou pela avenida Rio Branco na terça-feira de carnaval, tocando clássicos do samba, como Traição, Coisa Bonita do Pai, Vou Caciquiar, entre outras. Além das belas fantasias do bloco, a roupa de índio, o cocar, as saias de pena, acompanhavam a festa foliões com os trajes mais hilários e diversos. Homens vestidos de mulher maravilha, mulheres com roupas de pistoleiro, viúvas negras, presidiários, oncinhas, piranhas, gorilas, colombinas, fantasias para todos os gostos.

Foi muito bom.

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