Crônica de uma tarde bêbada

(Conto publicado na última edição do Paralelos, corrigido)


Tenho feito caminhadas pelos arredores da Cruz Vermelha, esmiuçando antigos casarios, sobrados coloniais, a rica e decadente arquitetura do centro da cidade. Há uma energia misteriosa nas ruas cujo significado procuro decifrar. Saio de casa à tarde, por volta das três ou quatro horas. O céu muito azul. Subo a Riachuelo, passando pelo Hospital Espanhol, a Academia Brasileira de Filosofia, entro pela Marques de Pombal, viro na Irineu Marinho, paro num bar e peço uma cerveja.

A sede do jornal O Globo fica na esquina. Enquanto bebo cerveja, procuro identificar algum jornalista. Não vejo nenhum, apenas algumas moças com pinta de estagiária andando apressadas.

Finalmente aparece um cara com pinta de jornalista. Alto, branco, olhos azuis, óculos de aros vermelhos, a roupa limpa e bem passada, cores claras e alegres. Tem um porte altivo, orgulhoso, deve escrever sobre política. Um desses jornalistas que, apesar de assinarem as matérias, a gente nunca sabe o nome, nem lhes conhece o rosto, porque só os colunistas é que ficam famosos.

Ao passar por mim, ele me olha fixamente, de forma um pouco exagerada. Minutos depois ele retorna, entra no bar. Compra cigarros, me observa de perto. Sustento o olhar. Ele sorri, pede um uísque, não tem, pede um conhaque, bebe, me encarando sorrindo. Eu sorrio, iniciamos uma conversa amena. Ele é jornalista, de fato, de política, na mosca!

Na casa dele, cheiramos umas carreiras, ele pergunta se estou com fome, não estou, ele abre o bar e pega uma garrafa de uísque. Eu vou até o som, escolho um cd, ligo, fico dançando, excitada e feliz no centro da sala.

Enquanto danço, excitada, no centro da sala, olho-me no espelho e vejo um homem. Eu sou agora o jornalista de óculos de aros vermelhos, eu sou alto, branco, de olhos azuis e a mulher, que era eu, está sentada no sofá, beijando outra garota. Vou até o bar, completo meu copo, pego o gelo e lembro do que fiz durante o dia. Conversei, ao telefone, com um senador, que me transmitiu informações explosivas sobre a crise política.

As duas prosseguem a perfomance. Uma é garota de programa. A outra, ex-eu, é meio estranha, mas bonita. Encontrei-a num bar perto do jornal. Disse-me que estava escrevendo uma crônica sobre a Cruz Vermelha e precisava de histórias.

Elas páram de se beijar. Uma delas está sem camisa, tem seios grandes, com mamilos enormes, inchados, respira forte, quer sexo. Chamo-a de peituda, ela ri, tem dentes um pouco cavalados, mas o rosto é harmonioso, olhos castanhos claros, nariz fino e lábios suavemente carnudos. Ela acaricia os próprios seios e roça uma perna na outra.

A outra é a escritora, magra, seios pequenos, olheiras profundas muito sensuais, chamo-a de Sherazade. Ela tem um sorriso giocôndico, está cheirando muito pó, digo para tomar cuidado, esse é puro.

No espelho vejo que continuo sendo o jornalista alto, mas estou um pouco mais gordo, e não tenho mais os olhos azuis. A peituda desapareceu. Há somente eu e a escritora na sala, nós dois dançando, eu beijo seu pescoço, ela estremece. Ela me diz que estuda jornalismo, que está desiludida com a profissão, uns vendidos. Não estico o assunto enjoado, já sei o que ela vai falar, sempre a mesma coisa. Beijo sua boca, ela me morde os lábios.

"Puta que pariu! Você me machucou!"

Ela tem um olhar estranho, me dá calafrios. Me afasto um pouco, olho bem dentro de seus olhos, vejo um brilho de loucura, que merda, não tenho sorte com mulher, quando é bonita é louca, quando é legal é um tribufu. Ela pega a estátua de mármore sobre a mesa e parte pra cima de mim, insana!

No espelho, levo um susto, sou eu quem segura a estátua de mármore, estou no meio de um impulso, acerto a cabeça do jornalista, ouço o som dos ossos partindo. O sangue espirra na minha roupa. Ele cai, desacordado, morto?

Revisto à casa à procura de jóias, dinheiro, carteira, agenda. Encontro a agenda, dou sorte, ele anota as senhas do cartão. Limpo as impressões digitais, apago a luz, saio do prédio chique em Ipanema, tomando cuidado para não ser vista por ninguém. São três e cinquenta da madrugada.

Entro no carro dele, estacionado na rua, disparo pelas avenidas, acelero enlouquecidamente no aterro.

Acordo no dia seguinte, vou ao banco, saco o máximo de dinheiro, compro os jornais, paro num bar perto da Cruz Vermelha para beber uma cerveja. Dali a meia hora, vou ao banheiro fazer xixi, o espelhinho me devolve a imagem de um homem com aproximadamente trinta anos, muito bêbado, tentando organizar os pensamentos: bem, com sete reais dá para beber exatamente três itaipavas e uma cachaça com limão.

5 comentários:

Anônimo disse...

pelo visto voce encontrou seu totem

Anônimo disse...

??? Não entendi daniel

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