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Assassinato na Riachuelo 217

Odiava isso, desde o início. Mas antes de cobrir a seção de Cidade de um jornal como aquele, eu tinha uma visão totalmente romântica sobre reportagem policial. Sonhava com crimes cinematográficos, cometidos por assassinos célebres, as pessoas comprando jornais em todo país para ler as últimas notícias sobre os casos que abalaram a sociedade.

Acho que era porque sempre nutri o desejo de ser detetive, investigador, qualquer coisa assim, mas não tinha o perfil psicológico afirmativo, firme, estruturado que se exigia dos homens da lei.

Claro que me enganei redondamente, sendo que meu caso é mais grave pelo fato do jornal onde trabalho possuir uma linha editorial voltada para o sensacionalismo escatológico. Somos orientados, para não dizer coagidos, a bater as fotos mais infames...

Não há câmera fotográfica, contudo, por mais moderna e possante que seja, que consiga captar o horror da morte de maneira tão profunda, tão intensa, como a íris humana, que conta com o auxílio do olfato - o aroma de carnes putrefatas é coisa que não atinge leitores, apesar da marca indelével que deixa no espírito do observador. Isso sem falar das paisagens adjacentes, em geral decoradas com toda espécie de lixo, esgoto, ratos e coisas nojentas e sujas.

Existe uma diferença significativa entre folhear um jornal vagabundo bebericando uma cerveja depois do almoço, como quem se diverte vendo um filme de ação, e rodar oitenta quilômetros do centro até algum extremo da periferia, axilas úmidas de suor, atravessando lixões, favelas, valas podres, para fotografar e descrever a morte de um jovem de vinte cinco anos, o rosto destruído por uma bala de fuzil AR 15, larvinhas brancas se mexendo pelas feridas múltiplas do corpo moreno...

A única coisa boa, no meu caso, é que finalmente havia encontrado um bom motivo para me tornar um inveterado, incorrigível e orgulhoso alcóolatra. Nos últimos tempos, começava com uma cervejinha no café da manhã, que tomava por volta das dez horas num botequim perto de casa, junto com um ou dois pastéis de queijo. Era o melhor momento do dia, em que a consciência, esvaziada pela bebedeira e pela noite de sono, permitia-me alguns minutos de poesia. Os raios de sol, filtrando-se pelos galhos de uma velha amendoeira da calçada, riscavam o chão do bar e faziam o copo de cerveja resplandecer com um luz especial, alegre e libertadora.

Na hora do almoço, às três da tarde, mandava ver mais algumas cervejas para abrir o apetite, no mesmo bar onde às vezes íamos ao final do dia, enquanto esperávamos algum marido ciumento esfaquear a mulher, ou um desempregado estuprar a enteada, matá-la e enterrá-la no quintal de casa.

Ao final do expediente, lá pelas onze ou meia-noite, saíamos pela Lapa, eu e mais uns pinguços do jornal, bebendo todas e cheirando umas carreiras. Também eram momentos felizes, em que ríamos, enlouquecidos, de tudo, de todos, do mundo inteiro.

Voltava para casa guiado apenas pelo instinto animal, já que nunca me lembrava como conseguira fazê-lo. Certa vez acordei fedendo a urina e vômito, ao lado de dois mendigos, perto do Passeio Público, o que me levou a frequentar reuniões do AA por dois meses.

Aquele serviço estava me fazendo mal, me afundando cada vez mais. O editor, porém, gostava do meu trabalho e me dava bônus e folgas sempre que pressentia que eu estava a ponto de abandonar o barco. Assim eu ia levando.

Apesar da maioria dos crimes mais horríveis acontecerem na Baixada Fluminense, as partes mais nobres da cidade também ofereciam palco para espetáculos macabros. Aliás, foi no centro da cidade, ironicamente na mesma rua onde eu morava, que registrei a cena mais terrível da minha carreira como repórter policial do Jornal O Povo.

Estávamos sentados no bar do Paulinho, o mais próximo da redação. Eu descrevia, a duas estagiárias de jornalismo, como funcionava o esquema das máfias da Baixada, geralmente controladas por oficiais graduados da polícia militar ou figurões da política local. Uma das mais poderosas era a Máfia do Capote, que atuava nos complexos da Maré e do Alemão, e que era chefiada, dizia-se, por um major da Polícia.

Era uma máfia extremamente violenta, que tinha convênio com traficantes, que pagavam tributos. Policiais fora do esquema não podiam extorquir os bandidos, que já pagavam uma bolada à Máfia. De certa forma, era um sistema que organizava e disciplinava o mercado de propinas do Rio de Janeiro.

As garotas estavam fascinadas com o mundo obscuro do crime organizado. Uma delas, Regina, era de São José, cidadezinha depois de Nova Friburgo, no norte fluminense. A outra, Tatiana, era uma "patricinha" da zona sul. Meu sonho era levar as duas pra cama, de preferência ao mesmo tempo, e nada como uma boas histórias de terror para excitar uma mulher... ou duas.

Pois então, estava eu no bar, conversando com as duas, quando entra Josias, o fotógrafo, esbaforido, como todo gordo quando fica agitado.

"Tem um crime na Riachuelo, Zé. Parece que é coisa forte. O Antunes mandou a gente ir lá imediatamente. Vai ser capa".

Despedi-me das meninas com ar de grande soldado diante de perigosa batalha. Elas me olhavam embevecidas. Empertiguei-me, embrigado pelo olhar admirado das moças e caminhei em direção ao carro. Sentei-me ao volante, Josias instalou-se no carona, com a usual dificuldade de seus cento e vinte quilos, e seguimos até o endereço indicado.

Estávamos no inverno e uma frente fria acabara de chegar à cidade, vinda do Sul. Havia nas ruas um ar londrino, lúgubre e triste. Em dez minutos, chegamos a prédio número 217. Meia dúzia de moradores fofocavam sobre o crime na portaria. Era um prédio sóbrio, simples, construído aparentemente nos anos 60, onze andares, atualmente ocupado por famílias de classe média baixa.

Conversamos rapidamente com o zelador e subimos pelo elevador até o sétimo andar. O elevador, com as tradicionais portas pantográficas, estava todo pichado com frases estranhas. Uma delas ficou gravada em minha mente:

"Esqueçam o que viu!"

Atravessando o corredor, eu sentia a desagradável sensação de estar sendo observado através de todos os olhos mágicos das portas fechadas. O apartamento, número 710, estava com a porta somente encostada. Toquei a campainha, ouvi alguém resmungar lá dentro, entrei.

Eu conhecia o investigador Carlos Mesa, da Polícia Civil, de longa data. Observei-o primeiramente pelo espelho da sala. Ele era alto, forte, com mandíbulas quadradas e um grande nariz perfeitamente aquilino, semelhando um detetive de estórias em quadrinhos, e não pude evitar um certo sentimento de inferioridade ao ver-me também ao espelho, baixo, muito magro, olhos esbugalhados e um pequeno e horrível nariz de batata.

"Oi Zé", ele cumprimentou-me, altivo, com uma forte voz de barítono que me fez, inconscientemente, engrossar também a voz, ao respondê-lo.

"E aí, Mesa, tudo certo? Que aconteceu?", perguntei, passeando os olhos pelo apartamento de dois cômodos, tipo kitnet, a cozinha americana dentro da sala, apenas uma pia e um espaço para o fogãozinho de duas bocas. Na parede, uma cortiça com fotos de grupos de amigos em lugares turísticos.

"Cara, nunca vi nada parecido", disse Mesa, com um brilho sinistro nos olhos. Aquilo me assustou. Mesa estava há mais de dez anos no setor de crimes hediondos e tinha visto de tudo: chacinas, mutilações, gente queimada, estripada, enfim, tudo. Ele baixou a vista, como que vergado sob o peso de imagens fortes demais, e apontou para o banheiro.

"Não toque em nada, por favor, os peritos ainda não chegaram", acrescentou, com voz fraca.

Aproximei-me da porta do banheiro sentindo a respiração rápida de Josias em meu cangote. Abri lentamente a porta e espiei para dentro.

Era um banheiro pequeno, aproximadamente dois metros quadrados, com um vaso, uma pia e uma banheira. O espaço livre no centro era apenas o suficiente para uma pessoa ficar de pé, parada. Havia ainda uma máquina de lavar entre o vaso e a banheira, de modo que a pessoa, para sentar no vaso, precisava pôr uma das pernas na banheira.

O tamanho do espaço, porém, não era proporcional ao tamanho do horror. Poucas vezes na história dos crimes urbanos, um espaço tão exíguo comportou, em quantidade e intensidade, um volume tão grande de crueldade e morte.

Dentro da banheira, empilhados, estavam os corpos de duas mulheres jovens. Sentado no vaso, a cabeça inclinada para trás, encostada à parede, pernas e mãos amarradas, boca amordaçada, um homem de cerca de cinquenta anos, olhos muito abertos e expressão de pavor congelada no rosto.

A presença do horror não estava somente nos sinais de tortura nos corpos e na morte. Alguma coisa dentro daquele banheiro era totalmente incompreensível, absurda. Mais que diabólica: era um desafio moral, um chamado de guerra contra os poderes de Deus. Ou pelo menos esses foram os primeiros pensamentos que me ocorreram naqueles instantes horríveis.

Fechei a porta do banheiro e fui conversar com Mesa, que fumava um cigarro na janela, olhando para o vale semeado de edifícios, morros e favelas. Dois PMs riam junto à porta, falando qualquer coisa sobre futebol, mas o riso deles era meio nervoso.

"Que cena horrível, Mesa! Que aconteceu aqui?", perguntei.

Entrevista com Marcelo Mirisola (para o extinto Arte & Política)

Mirisola nasceu em 1966, em São Paulo. Publicou romances (Azul do Filho Morto, Bangalô e Joana a contra-gosto – este último concorrendo ao Jabuti 2006), livros de contos (Fátima fez os pés para mostrar na choperia, Herói Devolvido) e crônicas (Notas de Arrebentação). E muitos outros livros.

A&P: Marcelo, em que momento da sua vida - se é que houve esse momento - você sentiu que a sua vocação era mesmo a literatura?
MM: Aos três anos de idade descobri que o ursinho da lata de talco Pom Pom me enganava, que era um canalha.Escrevi sobre esse tema no "Notas da Arrebentação". Dá uma espiada num monólogo cujo título é "Luto".

A&P: Você me contou, um dia, que o Azul do Filho Morto foi o romance em que você conseguiu atingir um grau de liberdade muito importante pra você. Como foi isso?
MM: Eu lhe disse que me libertei ou acertei as contas com minha família e a partir de o "Azul..." as coisas,digo sintaticamente, ficaram mais fáceis. Mas ainda tenho um montão de nós (religiosos, políticos, existenciais, etc) para desatar. Não sei se vou ter fôlego e paciência para tanto.

A&P: Se os EUA declarassem guerra ao Brasil e iniciassem um ataque nuclear ao nosso país e nós todos fôssemos obrigados a nos esconder em abrigos subterrêneos, quais livros você levaria para lá?
MM: Livro nenhum, Miguel. Tô com o saco cheio de livros, escritores, vaidades e futilidades do gênero.Talvez levasse umas bergamotas, caquis e uma foto em que estou em cima de uma Lhama. Eu tinha uns três anos de idade, tenho saudades do que eu poderia ter sido.

A&P: O cinema, música, a tv, exercem influência significativa na sua inspiração?
MM: Nunca tive inspiração, idéias, esses trecos aí. O que me motivava (antes de o meu saco encher) era o sentimento de revanche, vingança e alheamento.

A&P: Quais são as coisas do Brasil que você mais gosta? E do que você não gosta?
MM: Tenho alma portenha,Miguel. Nunca tive afinidade com as coisas do Brasil ... isso não quer dizer que eu desgoste do país. Gosto de churros, por exemplo.

A&P: Como você caracterizaria a cidade de São Paulo, numa palavra?
MM: Caipira.

A&P: E o Rio, qual a impressão que o Rio passa pra você?
MM: Uma cidade que sumiu para mim.

A&P: Quais seus projetos literários para este ano?
MM: Quero voltar às crônicas, Miguel. E ganhar uns trocos com uns prêmios literários.

A&P: Você lê alguma coisa de literatura pela internet? Gosta de ler blogs, por exemplo?
MM: O blogue do Marião, principalmente.

A&P: Quais os aspectos da literatura brasileira que decididamente não lhe agradam?
MM: Os poetas em primeiro lugar. Depois os escritores de maneira geral.

A&P: Qual a função (ou disfunção, se preferir) social da literatura, na sua opinião?
MM: Como diz o Evandro Ferreira, a função da literatura é fechar portas.

A&P: Da turma nova das letras, tem algum que destacaria?
MM: Lísias, Montenegro, Juliano Pessanha... e o Nilo Oliveira que - imagino - deve estar aprontando algo nesse momento.

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