O Crime compensou


O grande mérito de Crime Delicado, o novo filme de Beto Brant, é a ruptura com certos cacoetes televisivos que vinham contaminando o cinema nacional. Era necessário que um diretor do quilate de Brant, consagrado por três longas de sucesso (Matadores, Ação entre Amigos, Invasor), lembrasse ao distinto público que cinema é cinema, tv é tv.

Nada contra a televisão, o meio audivisual mais popular do país. Mas é que a tv está amarrada a uma linguagem padronizada, feita para agradar comerciantes e voltada na maioria das vezes para a quantidade, não para a qualidade.

Crime Delicado é um filme sem pretensões de bater recorde de bilheteria; seu público preferencial deve possuir uma bagagem cultural mínima. O texto do filme, notadamente os monólogos do protagonista, o crítico de teatro Antônio Martins, é complexo, sofisticado, difícil. Brant fez um filme cult.

Não é um filme hermético, porém. A generosidade das imagens, a fotografia voluptuosa de Walter Carvalho e o documentarismo viril de algumas cenas, neutralizam a suposta “intelectualidade” do filme e nos recorda que estamos diante de um trabalho de Brant, o mesmo diretor de vertiginosos filmes de ação.

“Você não ama nada!”, acusa o personagem interpretado por Claudio Assis, dirigindo-se ao crítico. A acusação de Assis atinge também o público, a sociedade, a mídia, a raça humana, constantemente obcecados em negar que é o amor, enquanto paixão e loucura, o motivo capital de nossa breve passagem na Terra...

A própria presença do diretor de Amarelo Manga no filme é uma forma de posicionamento político muito claro de Brant. O cinema, enquanto arte industrial, com necessidades financeiras muito superiores às outras e, no caso do Brasil, sofrendo de uma crônica dependência do Estado como financiador, não pode se furtar ao debate da política cultural. Claudio Assis, Lírio Ferreira e, agora, Beto Brant, já explicitaram, em viva voz e em película, o seu apoio à política de financiamento a filmes de baixo orçamento, no caso 1 a 2 milhões de reais. Essa política tornou possível a produção de dezenas de bons filmes por ano e não de três ou quatro super-produções. Não que a super-produção não seja importante, mas é preciso antes democratizar a produção cinematográfica no país, e para isso é necessário desenvolver a criatividade e aprender a fazer bons filmes com menos dinheiro.

O filme, embora utilize uma linguagem sofisticada, não é conceitual, graças a Deus. Tem ritmo, volúpia, intensidade, texto, enredo. Brant conseguiu unir sua experiência como narrador de histórias ao talento, desconhecido nele até então, como provocador estético e criador de uma linguagem peculiar e original.

O diálogo com o teatro e as artes plásticas foi uma sacação brilhante de Brant, uma idéia tão espantosamente simples, eficaz e elegante, que soa como um novo 11 de setembro para o cinemão bilionário que alguns medalhões ainda reclamam para o audivisual brasileiro.

Se a violência presente nos filmes anteriores nunca foi gratuita, antes sempre um componente estético necessário à narrativa e usado sem apelação, desta fez Brant conseguiu sublimar a violência do mundo real, transformando-a em pura arte. Vale ressaltar ainda que os créditos de Crime Delicado não ficam apenas com Brant, mas com toda sua extraordinária equipe, com destaque para o produtor e amigo-de-guerra Renato Ciasca e para a qualidade plástica dos trabalhos do mexicano Felipe Ehrenberg.

O desempenho dos atores principais, Marcos Ricca e Lilian Taublib, produz o desconforto da verossimilhança bruta. A falta de uma perna em Lilian não é mais um defeito, mas um poderoso recurso estético, um toque desconcertante, uma singularidade dolorosa e, por isso mesmo, prodigiosamente universal.

Música e poesia nas ruas

Recentemente vivenciei dois grandes acontecimentos musicais. O primeiro foi a compra de um aparelho MP3 Player. A segunda foi a passagem do poeta blogueiro Jorge Ferreira pelo Rio de Janeiro, à caminho da Nova Zelândia, deixando um rastro de 400 músicas em meu computador.

Desde então, gravo as músicas no meu MP3 Player e vou caminhar pelas redondezas do meu querido Bairro de Fátima, região central do Rio de Janeiro. Escutando um Tim Maia da fase Racional, subo a escadaria atrás da praça principal, ando um pouco, viro na Costa Bastos e sigo até Santa Teresa. Fiz esse percurso muitas vezes.

Ultimamente, tenho optado por um trajeto distinto, perambulando aleatoriamente pelas adjacências da Cruz Vermelha. As ruas pelas quais passo, nesse caminho, são Riachuelo, Marques de Pombal, Irineu Marinho, Santana, Mem de Sá, Resende, Inválidos. Passo por casarios antigos, prédios decadentes dos anos 30 ou 40, construções coloniais, igrejas góticas. Esse caminho tem a desvantagem de ser mais tentador. São dezenas de botequins pitorescos, clássicos, e eventualmente paro num deles para beber uma cerveja e "sentir" o ambiente.

O mais importante, porém, é que voltei a escutar música com reverência e prazer. Sons que tenho curtido: Erasmo Carlos, fase antiga; Bob Dylan; Jorge Benjor; Led Zeppelin; Raul Seixas; e muitos outros.

Bem, dito isto, vamos a outra parte deste post. Creio que venho perdendo meus já raros leitores pela ausência e pela frieza nas postagens, ultimamente apenas contos, sem nenhuma reportagem cultural ou narrativa boêmia. O cachê do blogueiro, já disse alhures, são os comentários. Se o blogueiro não se esforça, perde o cachê.

Vamos tentar consertar isso, contando como foi a sexta-feira passada. Nilton Pinho, artista plástico e companheiro de copo, futebol e trocadilhos, produziu um breve mas interessante espetáculo em Santa Teresa. Vale adiantar que a Petrobrás patrocinou dezenas de eventos artísticos nesta Semana Santa. Música, artes plásticas, poesia, a programação foi intensa. O evento do Nilton consistiu numa perfomance de Fernando Mendonça, também artista plástico e sua esposa. Fernando desceu uma ruazinha vestido de Jesus Cristo, carregando uma cruz estilizada, obra do Nilton, que prendeu na entrada da padaria. Sentada no meio fio, a mulher do Fernando representava Madalena, trajada como mendiga. Eles conversam, brincam de futebol, depois Madalena entra na padaria e volta com um monte de sacolas com bolas de futebol e pãezinhos, que distribui para o público.

Foi divertido. Isso foi às 14:00, num dia de sol e céu azul do Rio de Janeiro. Pouco antes, tomei umas cervejas no Mineiro com a Priscila e Vincent, um canadense que estava sendo ciceroniado pela gente (ou pela Pri, para ser mais exato). Nesta hora, aparece o escritor Botika, sem camisa e brincalhão como sempre, nos cumprimenta e me convida para recitar poesia em evento que coordenaria mais tarde, no Mineiro.

A Pri queria trocar de roupa, então descemos pela Ladeira do Castro e, lá embaixo, eu e Vincent esperamos num barzinho da Nossa Senhora de Fátima, bebendo umas cervejas. Consegui arranhar um francês sofrível, todo errado, mas ao cabo relativamente eficaz. Neste momento, Vincent quis algumas informações sobre a situação política, assunto que tento evitar a todo custo ultimamente, mas não me omiti e consegui dar minha opinião para o canadense de Quebéc, dono de uma agência de turismo. A Pri chegou e subimos pela escadaria da praça que dá na Monte Alegre, e chegamos ao fim do espetáculo do Céu na Terra. Reencontramos o pessoal, meus amigos artistas plásticos de Santa Teresa, o Nilton Pinho, Juliano Guilherme, Hélcio Barros, entre outros. Fomos pra casa do Hélcio, o Vincent sempre à vontade, depois devoramos uma pizza num restaurante e voltamos ao Largo dos Guimarães. Nesta noite, estavam programados vários espetáculos de poesia. Encontrei o Gean no Largo, apresenteio-o ao Vincent, que comprou um livro de poesia. O Vincent estava fascinado com a concentração de artistas em tão pouco espaço.

Chegamos ao Mineiro, pegamos uma mesa e os trabalhos começaram. Neste momento, eu estava empapuçado de cerveja e passei para o destilado, uísque nacional. Nada da poesia começar. Até que Maurição sobe na mesa ao lado, ocupada por três moçoilas perplexas, e inaugura o Cep 20.000. O Maurição tem perto de 1.90 m de altura e deve pesar mais de cem quilos. Estas medidas e mais o seu comportamento frenético e ostensivamente alcoolizado devem ter contribuido para a perplexidade das moças desavisadas.

Maurição gritou seus versos no gogó, depois veio o Guilherme Zarvos, recitou outros poemas e aí um monte de poetas já estava fazendo fila para recitar. Infelizmente, a acústica do Mineiro não era boa e pouco se compreendia do que se falava. Maurição viu-me na última mesa do bar, soturno como sempre e gritou:

MIGUEL DO ROSÁRIO, VOCÊ PODE! VEM AQUI!

E puxou um dos poetas que insistia em falar antes de mim. Eu estava sem meu novo livro de poemas (Antes que chegue a primavera), pois o tinha emprestado para o Botika mais cedo, pensando que o encontraria à noite, mas ele não apareceu. Cooperativo, não neguei fogo e subi na cadeira. Recitei o início do Fantasma da Puta, um dos poucos que sei de cor, mas minha voz não teve uma impostação legal no ambiente. Acabei errando os versos, entrei em outro poema e percebi que ninguém estava entendendo nada. Para piorar, o Zarvos ficou arrotando do meu lado, não sei se porque não estava gostando ou por excesso de gases. Encerrei minha perfomance um pouco melancolicamente e voltei à mesa.

Chacal também deus as caras e recitou alguma coisa. Ericson Pires apareceu, com seu novo looking surfista. Laurent Gabriel estava do lado de fora, dizendo-me que aceitava a proposta para publicar seu livro de poemas pelo Arte & Política.

Encontrei uns amigos, bebi bastante, depois fizemos uma caminhada insensata até o Largo das Neves atrás de outro ambiente. Mas estava tudo fechado lá, como eu previa e voltamos ao Mineiro, a esta hora já encerrando.

Descemos para Lapa, sempre na companhia do Vincent, passamos pela porta do Estrela da Lapa, do Carioca da Gema e do Rio Scenarium, e terminamos a noite na Pizzaria Encontros Cariocas.

A filha do bicheiro

(Leonardo Da Vinci)

Bem que eu tentava aparentar tristeza, mas os garçons não parávam de me servir uísque importado e ela continuava a me sorrir do outro lado da sala. O defunto parecia indiferente ao flerte entre sua filha e eu. Fosse vivo, eu já teria ido embora, evitando confusão, ou melhor, evitando uma morte violenta. Há tempos Danny insinuava-se pra mim. Eu fingia que não reparava. Garota louca, paquerar um cara de quarenta, pobretão, ela com só vinte aninhos e tão rica.

Virgílio de Andrade morrera de crise renal, quem diria. Um sujeito que escapara de mais de vinte tentativas de assassinato, terminar assim, vítima de si próprio, um cadáver de terno e gravata no meio da sala, enquanto seus convidados enchiam a cara e riam de sua lembrança.

Ela veio se aproximando, aos poucos, conversando com as pessoas no trajeto, até que se postou a meu lado, sorrisinho safado.

"Oi! Você vai na festa hoje?"

Olhei para os lados, algumas pessoas nos observavam com malícia. Senti vontade de fumar um cigarro, mas tinha parado de fumar há meses.

"Pô Danny, festa? Seu pai morreu e você dá uma festa?"

"Ah, deixa de ser careta! Quem inventou essas convenções? Morreu morreu! Quem fica tem de comemorar o fato de estar vivo."

Ela olhou-me daquele jeito que me deixava louco, revirando os olhos. Mexeu na blusa, aumentando o decote. Continuou:

"Estou esperando você lá! Vou ficar muuuuito triste se você não for."

E saiu, recebendo os cumprimentos de conhecidos com um ar visivelmente enfastiado. Antes de atravessar a porta da sala do velório, voltou-se e me deu tchauzinho.

Aceitei mais uísque e senti vontade de chorar. De alegria. Aquela garota era meu sonho de consumo. Peitos grandes, coxas grossas, bunda perfeita, cinturinha, cabelos longos pintados de louro, e safadinha que só ela. Quando eu fazia plantão dentro da casa, ela sempre aparecia, exibindo-se. Mergulhava na piscina, estendia-se no quintal, toda gostosa, procurando me excitar. Uma vez ela se deitou na beira da piscina, de biquini, e começou a se masturbar, suavemente. Eu podia ver Seu Virgílio lá dentro, lendo jornal, e não sabia o que fazer para esconder minha ereção. Ela reparou e continuou, olhando-me nos olhos. Gozou com um sorriso que se me fixou na cabeça por meses, torturando-me.

Trabalhar para um bicheiro nunca havia me passado pela cabeça antes de ser expulso da polícia civil, acusado de receber propina. Ah, que piada. Todo mundo fazia isso, mas eu fui escolhido para ser o bode expiatório da tal "nova gestão".

Anoitecia. Despedi-me de quem eu conhecia e saí do velório. Consumia-me pensando em Danny, se valia a pena investir na garota. O filho do bicheiro, Castorzinho, tinha apenas vinte e dois anos, era um playboy total, preocupando-se apenas com carros, mulheres e drogas. Mas não era cego. Não lhe agradaria ver a irmã saindo com um dos seguranças. Seria capaz de mandar me matar com o mesmo sangue frio do pai.

Gastei algumas horas num botequim próximo, bebendo cerveja e tentando não pensar em nada. Faria o que me viesse na telha, na hora certa.

Às dez e meia, estava totalmente bêbado. Chamei um táxi e disse o endereço.

Ela estava linda, com um vestido muito curto, colado ao corpo. Abraçou-me longamente. Disse-lhe que estava bêbado. Ela pegou-me na mão, fez-me sentar num sofá, trouxe água com gás e aconchegou-se em meu colo, fazendo-me carícias no rosto.

Não tinha muita gente na festa, apenas alguns amigos mais chegados. Senti-me melhor após algum tempo. Ela chamou uma de suas amigas, uma morena magrinha, de short. As duas sentaram-se em meu colo e beijaram-se. A morena abaixou a parte de cima do vestido de Danny, fazendo os peitões saltarem. A morena esfregava-se na minha perna e com uma das mãos apertou meu pau por cima da calça. Enfim, ainda a morena, abriu meu flechequer e tirou meu pau pra fora, enorme, duro, latejando. Seus olhos brilharam e atirou-se de boca no mastro, chupando sofregamente. Danny acariciava os próprios seios com uma mão e se masturbava com a outra, não usava calcinha. Sorria-me e dizia-me algo que eu não podia compreender.

"Fui eu."
"O quê?"
"Fui eu."
"Você o quê?"
"Eu matei meu pai."
"O quê?"
"Troquei os remédios dele."
"Ãh?"

Ela não paráva de se masturbar enquanto falava. Fazia caretas como se fosse gozar. A outra continuava me chupando decididamente. Eu estava aprisionado. Enfim, entendi o que ela me dizia.

"Queria ficar com você."
"Danny! Você ficou louca?"
"Não queria ninguém entre nós."

Gozei na boca da morena. Senti Danny estremecer num orgasmo prolongado, seu olhar jorrando carinho e paixão. Pensei algo como: há sempre um pouco de morte em todo grande amor.

A decadência do capitalismo

(Basquiat)

Manú tirou o embrulhinho de dentro da bolsa, colocou-o sobre a mesa e falou:

"Aperta aí você que eu tô cansada."

Não se lembrava como ele viera parar em sua casa; conjecturava se tinham feito amor ou coisa parecida. Recordava-se, um pouco confusamente, que fora apresentada a ele por uma amiga, e que o achou interessante e misterioso. Mas agora, observando calmamente, com a mente limpa - apesar da ressaca -, experimentava uma viva decepação: ele era barrigudo, vestia-se mal e era horrivelmente tímido. Sempre odiara caras tímidos, ainda mais quando eram pobres! Pelas maneiras do rapaz, via-se que era de origem humilde. Era moreno, quase negro, com cabelos crespos, e contemplava deslumbrado os móveis e bibelôs da sala de estar. E se ele roubar alguma coisa? Preciso prestar muita atenção, pensou Manú.

Sua principal preocupação, porém, era a chegada iminente dos pais. Eles haviam viajado para a casa deles em Angra e retornariam hoje. Sua mãe dissera que pretendia sair de lá no domingo bem cedo, para fugir do congestionamento. Olhou para o relógio da parede: duas e meia da tarde. Eles deviam chegar a qualquer momento. Caso o rapaz ainda estivesse na casa, ele almoçaria com a família dela, na mesa comprida da sala de jantar. Sempre que tinha visita, a mãe fazia questão que comessem todos juntos na sala. Quando não havia visita, cada um fazia seu prato na cozinha e ia prum canto diferente da casa. Ela ia pra salinha de televisão comer no sofá vendo um filme qualquer no Telecine.

O negócio é que, com todos na mesa, haveria fatalmente uma conversa sobre quem era o rapaz, onde ela o conhecera, o que ele fazia, e todas essas babaquices. Manú morreria de vergonha por ter ficado com uma pessoa de tão baixo nível. A irmã mais nova, que também viajara com os pais, daria aquele sorrisinho insuportável que queria dizer: "tá vendo, sua horrorosa, você é mesmo uma tribufu gorda que só consegue pegar esses estudantezinhos pobres e bêbados que ficam com qualquer mulher depois de certa hora e algumas cervejas".

Ele pegou o embrulhinho, abriu, despejou o conteúdo sobre a mesa e começou a despelotar. Não estava se sentindo à vontade naquele apartamento luxuoso. Mas já que estava ali, queria aproveitar um pouco, fumar um, viajar, escutar uns Cds, olhar, pela janela, as montanhas verdes e o Cristo Redentor. A garota o havia agarrado quase à força na festa. Depois, arrastara-o, também quase à força, para o apartamento dela e se comportara como uma tarada. Mal chegaram, totalmente bêbados, ela abaixou as calças dele e chupou seu pau com uma sofreguidão que nunca vira antes em mulher alguma. Teve que segurar a cabeça dela para não gozar e sobrar energia para fodê-la legal. E foi o que fez, e ela gozou uivando como uma cadela no cio.

Foram para um quartinho nos fundos da cozinha e acenderam o baseado. Ele recostou-se num sofá macio e lembrou do chão duro que fazia o papel de cadeira, mesa e cama de seu conjugado no Bairro de Fátima. Por uma associação óbvia, lembrou-se que não tinha dinheiro nem pro ônibus e praticou, de cabeça, algumas frases de efeito para justificar o pedido de empréstimo que faria à moça. Ela vai saber que sou um pobretão e não vai mais querer sair comigo. Ah, foda-se, ela é uma baranga mesmo. Sem bunda, sem peito, gorda, grandalhona, e agora está se revelando também uma garota arrogante e convencida. Olha só o jeito que ela me olha!

Escutam o barulho da porta se abrindo e apagam o baseado. Manú pega um spray de Bom Ar e perfuma o ambiente. Correm pra sala, antes passando no banheiro e fazendo a higiene básica do maconheiro: lavam as mãos, escovam os dentes e pingam colírio nos olhos. Ela pede que ele vá para seu quarto e espere por lá.

Às três e meia da tarde o almoço foi servido. A mãe preparara espaguete com molho pesto. Sentaram-se todos à mesa, o pai numa cabeceira e o irmãozinho na outra. As duas irmãs ficaram frente à frente; o rapaz ao lado de Manú e a mãe ao lado da outra irmã. Estavam todos mal-humorados de fome. Tinham calculado chegar a uma da tarde, mas um engarrafamento provocado por um acidente na estrada fê-los atrasar em mais de duas horas.

Após as primeiras garfadas, o silêncio pesado foi aos poucos se desfazendo com frases curtas.

"E aí, mãe, fez sol lá?", perguntou Manú.
"No sábado de manhã fez um solão. A gente saiu de barco e fomos a umas ilhas que não conhecíamos."
"Foi super-legal!", empolgou-se o irmãozinho.
" Toninho! Não lhe disse para não falar de boca cheia? ", ralhou a mãe.

Fez-se silêncio novamente. Escutava-se somente os talheres batendo de leve no prato. O pai voltou-se para o rapaz e perguntou:

"Qual é seu nome, rapaz? "
" Arnaldo, senhor. "
" Arnaldo de quê? "
" Pai!", Manú sorria; ela sabia que a última pergunta havia sido apenas provocativa, com sentido cômico. O pai não ligava a mínima para sobrenomes. Ligava sim para o dinheiro que a pessoa, ou a família da pessoa, tinham. Era um legítimo burguês liberal. Estava só puxando assuto; ela sabia disso e protestava para divertir o pai. Arnaldo compreendera tudo e sorria também; respondeu:

"Arnaldo Gomes Pinto, nome de português."
"E você mora aonde, seu Arnaldo Pinto? "

Manú alarmou-se; notara um quê de sarcasmo ou irritação no pai.

"No Bairro de Fátima, na rua do Riachuelo."
"E conhece minha filha de onde? "
"Amor, pára com esse interrogatório. Deixa o rapaz comer em paz", interveio a mãe, incomodada com o fato do rapaz estar, há alguns minutos, com um garfo cheio de comida paralisado no ar.

Arnaldo sorriu de novo e não respondeu. Encheu a boca e põs-se a mastigar lentamente. Sua intuição lhe advertia que alguma coisa estava errada. Alguns minutos depois de silenciosa mastigação, o pai empurrou o prato pra frente, brutalmente. Tinha o rosto muito vermelho e os olhos cravados no rapaz.

"Retire-se imediatamente desta mesa e saia da minha casa, seu vagabundo, seu, seu, seu, seu maconheiro! É! Maconheiro! Eu senti o cheiro quando cheguei em casa. E vocês não conseguiram disfarçar. Dá pra notar que os dois estão doidões."

Foi um susto. Haviam interrompido a mastigação no instante em que o pai empurrou o prato. As primeiras palavras, naquele tom de voz, foram deixando a todos estupefatos. Nunca tinham visto o pai nesse estado. O rapaz estava petrificado. Queria levantar-se e ir embora, mas não conseguia mover um músculo.

Os pensamentos do pai queriam explodir. Eu tenho que falar. Tenho que falar. Tenho. Agora.

"Puta que pariu! Puta que pariu! Eu tô enlouquecendo nessa casa. Tô nervoso, muito nervoso. Estou desesperado. Eu tenho que falar pra vocês. Preciso contar a verdade. Nós estamos falidos. FALIDOS", berrou o pai.

O irmãozinho começou a chorar, apesar de não saber o que significava "falido". Podia sentir, antes que todos, uma coisa muito ruim no ar. Talvez por isso, tenha vomitado tanto durante a viagem. A mãe também chorava, mas discretamente. Então era isso, pensava ela, que já vinha desconfiando de alguma coisa nesse sentido, devido ao péssimo humor do marido durante o fim-de-semana. Aquela especulação doida em que ele e o sócio entraram deve ter criado um rombo monstruoso na empresa. Olhou para o marido, que queria falar mais:

"Temos que vender tudo. Tudo. O apartamento, a casa em Angra, o carro, pra pagar as dívidas da empresa. E mesmo assim vamos ficar devendo. Ficaremos pobres. Eu tô fudido."

Arnaldo sentia o sangue voltar a circular em suas veias. Enfim, não era comigo que o cara tava tão revoltado, refletiu. Levantou-se da mesa completamente ignorado pelos outros, que estavam hipnotizados pela cena terrível de derrocada: o pai chorando convulsivamente, debruçado sobre a mesa, os braços pendendo, mortos, para o chão.

Antes de sair, Arnaldo pegou umas moedinhas que viu em cima de um móvel na saleta da entrada. Deve dar pro ônibus, pensou.

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