Entrei no bar e Cardan estava sentado à mesa, junto a uma corja brilhante de outros artistas, malucos, bêbados e alguns nobres correspondentes do sexo oposto. Pareciam estar todos bem altos, o que era compreensível, dado o avançado da hora – eram duas da manhã – e o número de garrafas vazias. Alguém me reconheceu e berrou:
“Miguel do Rosário! Sente-se aqui conosco! Ô Clebinho, traz um copo e mais uma cerveja!”
Pedi licença para pegar uma cadeira desocupada numa mesa ao lado, com três rapazes mau humorados, provavelmente desgostosos com a fatalidade de terem estacionado sua boemia discreta ao lado daquele grupo tão silencioso quanto a Regina Casé e Elisa Lucinda recitando poemas eróticos debaixo da sua janela, às quatro da matina.
Cardan enfim me reconheceu e acenou pra mim, lançando-me seu olhar alegre e intrigado de sempre. Micróbio, a seu lado, acompanhou seu olhar e também me acenou, entusiasmado com minha presença.
“E aí Rosário? Que tá fazendo por essas bandas?”, falou Micróbio.
“Vim conferir se a cerveja continua gelada por aqui”, respondi, meio sem graça, sentindo-me deslocado por estar completamente sóbrio numa mesa de ébrios. Não era um problema dos mais complexos, naturalmente, e encaminhei logo uma solução pedindo ao garçom uma dose de Salinas. Melhor, duas doses, por favor.
Depois que bebi as duas doses, fiquei mais à vontade. Cardan e Micróbio riam desbragadamente de uma piada contada por um sujeito cuja aparência por si só parecia justificar as risadas. Aí Micróbio – um baixinho de olhos espertos que possuía um sebo em frente a um badalado teatro da praça Roosevelt – virou-se pra mim e perguntou:
“Aí Miguel, contaí sua versão da briga de Cardan com o anão. O Cardan disse que o cara era um mala insuperável, e que por pouco não estraçalhou o sujeito ali mesmo. Como foi a coisa? Cê tava lá?”
Eu sabia que teria que contar aquela história de novo. Aliás, por isso mesmo é que eu estava já na terceira dose de cachaça, fora os golões na cerveja. É público e notório que minha língua enrola nesse estágio intermediário – mais adiante ela desenrolava, embora aí as idéias é que perdessem grande parte de sua consistência e objetividade originais. Resolvi contar enrolando a língua mesmo, até porque o público ouvinte não me parecia capaz de perceber se eu tinha língua ou não.
“Foi uma merda, Micróbio. Encontrei uns amigos num outro bar e ficamos bebendo chops. Era dia da promoção Terça em Dobro, em que você bebe dois chops e paga um, o que nos levava a beber duas vezes mais que o normal. Como normalmente a gente bebia duas vezes mais que a maioria das pessoas, pode-se dizer que, com esta promoção, a gente bebia quatro vezes mais que o normal. Tinha umas dez pessoas na mesa, inclusive o Anão, um artista plástico com ateliê ali pela Lapa. A gente fechou a conta e eu disse que ia para outro bar encontrar um amigo de São Paulo, diretor de teatro, dramaturgo, escritor, ator. A maioria estava cansada e resolveu ir embora, à exceção de Débora e Aline, minha consorte e minha melhor amiga, respectivamente. Levantamo-nos e fomos pra rua. Resolvi dar uma passada no ateliê do Nilson para pegar um livro emprestado e falei pras meninas irem na frente. Quando atravessei a rua, vi o Anão as seguindo, mas não dei muita bola à coisa. Acabei me atrasando um pouco no ateliê e quando cheguei no outro bar, a situação já estava bastante tensa, embora eu, devido a meu estado etílico, não tivesse percebido.”
Cardan interrompeu o meu relato: “Porra Miguel, que jeito de falar é esse? Parece que tá lendo um conto!”
Eu matei um copo de cerveja e retruquei: “Mas isso é um conto caralho! E você é apenas um personagem. Faça o favor de escutar tudo até o fim”.
Cardan olhou para Micróbio, como quem diz: esse cara tá piroca das idéias, mas levou na boa, balançou a cabeça e levantou seu copo de cerveja na minha direção, num sinal para que eu prosseguisse.
“Bem, como eu ia dizendo, quando eu cheguei lá havia nitroglicerina no ar. Mais tarde, conversando com Débora e Alice, elas disseram que o Anão, de fato, encheu o saco. Foi até meio agressivo com o casal que acompanhava Cardan. Era um casal de atores, muito educados, que estavam jantando sossegadamente quando eles chegaram. O Anão iniciou um discurso bem hostil contra o teatro e a TV e sei lá mais o quê. Não era bem o que ele falava, mas a maneira, agressiva, antipática, entende? me disseram elas.
Eu me sentei à mesa um pouco antes do ponto de ebulição. Sinto-me culpado por não ter vindo junto com elas, e evitado que as coisas chegassem nesse ponto, mas não posso me responsabilizar por outro bêbado que não eu.
Foi isso. Cardan explodiu. Começou a falar muito alto, puto da vida, coisas do tipo: FODA-SE A GLOBO, PORRA! VOCÊ SÓ QUER FALAR DE GLOBO! TÔ CAGANDO PRA GLOBO! VOCÊ CONHECE MEU TRABALHO? CONHECE O TRABALHO DELES (apontando para o casal)? ENTÃO?
Depois desse desabafo, ele até se acalmou. O pior veio depois. O Anão quis comprar briga e desatou a praguejar. Cardan olhou pra ele e mandou:
NÃO QUERO SABER TUA OPINIÃO, CARA. TE ACHO CHATO PRA CARALHO. NÃO GOSTO DE VOCÊ.
O Anão se levantou e quis partir pras vias de fato.
OLHA O TEU TAMANHO!, devolveu Cardan, levantando-se também.
Dois garçons já estavam nas proximidades, procurando resolver a questão. Tinham um risinho no canto da boca; devia ser a diversão do mês pra eles.
Nessa hora, consegui superar minha confusão e convoquei o Anão a se retirar. Como ele possuía algum instinto de sobrevivência, aceitou na boa. Acompanhei-o até o bar do outro lado da rua, sentei-me com ele um instante, tomei um copo de cerveja, encontrei um conhecido para fazer companhia (de forma a garantir que ele não voltasse) e retornei ao bar.
Vou confessar a vocês. Eu estava arrasado com aquilo. Não estava nem mais com muita raiva do Anão. Não sou de guardar rancor. Mas é que o Cardan não merecia ter se estressado daquela maneira. Nenhum de nós. Fazer o quê? No resto da noite, quase não consegui falar, tão abalado fiquei com o episódio. Que merda! O pouco tamanho do sujeito revelou-se inversamente proporcional à sua capacidade de atormentar os outros. Eu estava nervoso, deprimido, bebendo num ritmo além do normal..."
“Pára! Pára! Cala essa boca!”
Olhei assustado para onde vinha o grito. Era um senhor sentado na ponta mais afastada da mesa. Sua fisionomia não me era estranha... Hum... Reinaldo de Moraes! O célebre autor de Tanto Faz! A alegria de reconhecê-lo durou apenas um segundo, afinal o cara estava me mandando calar a boca.
“O rapaz, desculpa pedir para você calar a boca assim. Mas é que você não está indo bem. Seu estilo está muito irregular. Uma hora o texto flui legal, com doses de humor inteligente, à lá Chandler, embora um pouco forçado; em outra você cai para um estilo confessional-descritivo barato, vulgar. Além do mais, você tem que criar mais pausas, mais espaços de respiração. A história não é totalmente má. Mas faltou um pouco de suspense, de ação, drogas. Ah, e o Cardan é MEU PERSONAGEM CARALHO!
“Tá certo, Reinaldo. Olha só. Eu não fui nada pegar livro emprestado no ateliê do Nilson. Fui fumar um baseado. Por isso demorei por lá, e cheguei meio aéreo, distraído, sem perceber o curto-circuito iminente."
“Hum, melhorou um pouco. Pode acabar aqui se quiser. Tudo bem, autorizo você a usar o Cardan.”
“Falou Reinaldo, obrigado pela força."
***
Horas mais tarde, na mesma noite, pediram-me para recitar um poema, o qual transcrevo abaixo.
os homens incendeiam esperanças de papel
enquanto esperam o calor das ressacas
que a manhã despeja
na orla suja da praia
excessivos agostos
rompem a pele macia
das crianças que somos
quando pegamos em armas,
ou tomamos uns drinks
luz destruída
pela reluzente merda
das noites tristes
que anunciam
a sublime escuridão
de um futuro sem asas
os erros prosseguem
fermentando em nós mesmos
aleijões sangrentos
que cultivamos
como nossa mais sutil
indignidade
a qual,
a despeito de sua irisada
imperfeição e vergonha
é também o que possuímos
de mais original
- nossa mais fulgurante
contradição, nosso amor
mais secreto e apavorante
o que se oculta
nas dobras da felicidade
perturbando o sono
gerando confusão
é isso, o poeta
é o artífice
da perplexidade
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4 comentários:
Ei, você acha que não te conheço? Acha que eu não sei o quanto você ficou chateado pelo fuzuê? Eu sei que sim, eu sei que sim... Gostei da sua versão, foi uma versão pós, muito boa, onde todas as ficahass caíram. O meu conto já estava escrito, eu já havia escrito uma estória com o intrépido. Só modifiquei um pouco e pus aquela bobagem lá. E menti a beça, a nossa liberdade né? Po essa de melhor amiga foi do caraleo hein? Gostei, pois é eu tenho escrito, sei lá vc me conhece é fase vou tirar de lá. Trabalhar mais uo, tenho muita vontade fazer um livro, Miguel mesmo que ninguém leia e tal. Porra, te procurei muito, mas sei que as vezes vc não quer hablar nem com Jesus, aí eu respeito. Marcelo está aqui.
Um beijo
baby, je ne comprend rien. que isso, ma cherie, voce tá ficando séria demais! Como diria o saudoso Costinha, ã?! Beijos!
crazy boy
ei, gostei do poema
arthur
Miguel do Rosário ascendeu um degrau... ao menos, para mim, leitor.
Sou irmão do Tiago Muzulon, abraços.
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