Queria ser mais honesto comigo, mais cínico em meus delírios. Aliás, honestidade e cinismo tem origem na mesma palavra em aramaico, sabiam? Realizei algumas experiências meio bestas, assimétricas: porres solitários, leitura de clássicos, observação de coelhos esfolados (depois de fodidos). Apud Mirisola, dei para vomitar estrogonoffs em melancólicas tardes de agosto e estrangular crianças. Na esquina da Maria Antônia com a Consolação, pensei em sequestrar uma menina que chorava ao lado da mãe. Não fui ao show dos Stones em Copa e, desesperado, decidi apelar: relembrei antigos casos de amor. Horrível.
Ela andava aborrecida porque eu não escrevia sobre nossa história. Tenho um bloqueio contra isso. A troco de quê conspurcar a relação com meu fracasso literário? O amor, pra mim, tinha muito a ver com café solúvel e pão com manteiga, às três da manhã. Talvez eu explique isso adiante.
Veja só, com vinte anos eu tinha paixões fulminantes por garotas que passavam na rua. Qualquer sorriso, o mínimo gesto de simpatia, me envenenavam de morbidez romântica. E lá ficava eu, apaixonado como um chimpanzé. Esquizóide, totalmente. Eu era louco, cara, um enfant terrible de merda .
Por essas e outras, falar de amor não dá. Amor se vive assim, assim, às escondidas. Assistindo filme francês, fazendo longas caminhadas, tomando chuva, realizando viagens malucas para Arraial do Cabo, dormindo no colchonete durante um ano, degustando miojo com elegância de artista incompreendido.
Droga, essas coisas me atrasaram. O romantismo babaca, a mania de ficar triste, o escapismo da cerveja e, naturalmente, o café solúvel. Maldito café solúvel!
No início dos anos 90, eu queria ser roqueiro. Eu e um chapa criamos a banda Ratos de Bar e compomos vinte músicas, inclusive alguns pequenos sucessos universitários, como Acidente de Moto e Noites de Inverno. Até que um cara-dono de um estúdio no Rio Comprido engatilhou sua opinião na minha testa: cara, você não toca nada. Fiquei calado, ferido de morte, máscara firme no rosto, bebendo a cerveja que ele nos oferecera.
Naquele momento, eu podia dar uma de Robert Jonhson, sumir por uns tempos, fazer um pacto, e voltar gênio, vingativo. Mas decidi que o melhor era desistir da música e escrever. A merda foi o café solúvel, que estragou tudo.
O amor, baby, prefiro vivê-lo, suave e intensamente. Caçando passarinhos e os lambendo, vivos, bem devagar. Bebendo uísque pelo gargalo, com calma de bêbado profissional. Sobre o café, não dou explicações; é o pequeno mistério dessa noite.
Os porres no bairro de Fátima, bem, insistirei neles. Até agora não me inspiraram porra nenhuma, em termos literários; mas valem pelas filosofias que eclodem entre a quarta e a quinta antartica, antes de vazarem pelo ralo do mictório. Triste pra caralho isso, o esquecimento; ou talvez seja necessário.
- O porre é o botão "reset" da alma.
Além disso, nada mais acintosamente humano que o esquecimento e a ressaca. Infelizmente, também é humano ver mulheres atropeladas por caminhões de gás, tendões estraçalhados por bombas clusters, embora, andei pensando, no fim das contas, alguns pirralhos sobrevivem ao tiroteio, pirralhos azuis, lilases, amarelos. Vale o mesmo para velhas desonestas, que roubam gerânios negros e xepa de feira, criam gatos fedidos e neuróticos e bebem - ó deuses do jack daniels - café solúvel.
A história termina sem conclusões, com parasitas rastejando em minhas costas e o autógrafo de Fagner no álbum da família; longe, longe, a gente bebendo - com doses excessivas de gerúndio - caipirinhas, Dylan cantava I shall be released, apenas isso (dinheiro no bolso, claro): nós mesmos, dois loucos brindando ao nosso amor - apenas levemente ferido por clichês - e à existência e maldição do café... ah, do café e seus mistérios...
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11 comentários:
Interessante essa teoria do café solúvel... poderia ser sido criada por Quincas Borba, célebre personagem de Machado de Assis...
Afinal, será que os porres tem alguma funcionalidade, além de nos esquecermos dos duros fatos que nos rodeiam?
talvez tenham pollengo, ferrar o fígado por exemplo, e potencializar a força do rock, também. abraço, miguel
Grande, a filosofia do caf'e soluvel!
O mistério resistiu ao final. Lembrou algo beat, mas outro ritmo, outra vibração, meio derrotista, com os paralelos sendo costurados no meio da história.
"O porre é o botão "reset" da alma." Isso me pegou.
Muito foda.
Grande abraço.
Miguel, muito obrigado pela visita ao blog. Fico feliz que você tenha gostado. Quanto a mim, como disse, gostei bastante daqui e cá estarei muitas outras vezes. Abração!
Miguel, muito obrigado pela visita ao blog. Fico feliz que você tenha gostado. Quanto a mim, como disse, gostei bastante daqui e cá estarei muitas outras vezes. Abração!
O único derrotismo que conheço tem um só nome: ENGOV. Li seu texto de outro jeito.
Texto maduro e mocionante.
Texto maduro e emocionante
então deixa eu comentar como li: vou usar os termos da crítica livresca, apesar de achar que é como se fosse uma luva hospitalar... O narrador está se dirigindo a alguém, certo? O "você sabe" etc. Então o conto simula um diálogo. Pra entender, pelo menos penso assim, preciso sacar com quem é o diálogo, se não vou achar que é só uma confissão do autor "Miguel". Ora, tá na cara: o narrador-personagem conversa com uma moça com quem já teve algum rolo. Agora vem a minha hipótese: seu objetivo, por alguma razão, é, pra dizer polidamente, sair novamente com a moça. é o estratagem da melancolia, da ironia, do romantismo, mas pra chegar a outra coisa mais legal, que ficou bem divertida nesse texto literário. Mas será que funciona na vida real? Quem sou eu pra dizer que sim ou não?
pessoal, obrigado pela leitura atenta, que me honra muito, e ainda mais pelos comentários cuidadosos, que me dão enorme prazer. esse meu texto é um exercício, o objetivo de publica-lo no blog é justamente obter o feedback de voces, explicito ou silencioso (porque tb ouço a opinião dos que não comentam, é claro). abraços.
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