Ensaio sobre o filme Cidade de Deus
Por Miguel do Rosário
Com o filme Cidade de Deus se consolida uma nova escola do cinema brasileiro contemporâneo, superando inclusive a "Retomada", como está sendo conhecido a etapa que se seguiu ao vácuo do início dos anos 90, após o fim da Embrafilme, com os lançamentos de Carlota Joaquina e, um pouco mais tarde, Terra Estrangeira, sob os auspícios da Lei do Audivisual. A exploração estética da poesia suburbana das metrópoles representa um ressurgimento triunfal da idéia preconizada por Glauber Rocha, que nos anos 60 escrevia que o cinema dos países periféricos só alcançaria produzir um efeito estético contundente através da manipulação artística da violência e da fome. O rebelde politizado de Glauber, porém, será substituído pelo bandido cínico do cinema marginal pós-64, como por exemplo o Bandido da Luz Vermelha, visto que a produção cinematográfica estará sob severa vigilância da censura militar.
Esta nova estética marginal do cinema brasileiro não deve ser confundida com a eterna paixão pelo gangsterismo de holliwood, embora as influências sejam inevitáveis. Enquanto o bandido americano (Poderoso Chefão, Scarface, Bons Companheiros, Pulp Fiction) é um capitalista que optou pelo enriquecimento fácil, ou então um caso de perturbação psicológica (Psicose, Kannibal), o bandido brasileiro é mostrado sempre como uma vítima social, um rebelde cínico ou politizado, cujos valores morais foram submergidos por circunstâncias alheias à sua vontade.
Um épico da modernidade - Nesta volta surpreendente da estética marginal, o mesmo herói bandido aparece inserido num contexto sócio-político definido com assombrosa lucidez e encaixado numa película elaborada com um profissionalismo de fazer inveja aos melhores técnicos de holliwood. Embora a censura tenha se esvaído com o fim da ditadura, os cineastas continuam vigiados por executivos dos departamentos de publicidade que aprovam os projetos de patrocínio. Os heróis marginais de Cidade de Deus, por exemplo, não têm nenhum discurso político consistente, porque são totalmente, ou quase, analfabetos. Ainda não é o momento do cinema engajado, se é que ele terá seu momento, já que a arte não necessita de uma forma explícita para atingir um determinado objetivo estético ou político. O ritmo da câmera, a música, as cores, enfim a linguagem, serão suficientes para influenciar a percepção moral dos personsagens. Através destes recursos, Meirelles consegue iluminar os bandidos com uma luz que parece vir da consciência do espectador, que lhes compreende o desvio moral como resultado da realidade dolorosa do Rio ou de qualquer outra metrópole.
Universalismo - Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. Mesmo a guerra das gangues tem um motivo digno da Ilíada: o estupro da mulher de Zé Galinha lembra o rapto de Helena, e a fúria titânica do vingador aparece como a ira de Ulisses. Nesta parte mesma, o narrador diz: "só mesmo um milagre... mas existe um lugar melhor para um milagre do que uma cidade com o nome de Cidade de Deus?". E Zé Galinha, como que protegido por Atenas, deusa da guerra, irrompe atirando, sozinho, contra um bando de mais de doze homens armados, colocando-os em fuga e matando um deles. As mulheres que o rodeiam, enquanto ele observa sua primeira vítima, recordam o coro de uma tragédia grega, expressando os pensamentos da comunidade: "Legal você... Matou bem... Esse foi um, mas ainda não foi todos...".
A galinha em pânico - Voltemos ao início do filme. Churrasco, samba, cerveja, caracterizam, em traços rápidos e precisos, o ambiente da favela. A alegria é contagiante, envolve completamente o público através do contraste desconcertante entre a realidade vibrante da comunidade e a imobilidade quase mórbida da sala de cinema. A galinha, esse personagem inesquecível, símbolo do ser em perigo, do medo e, enfim, da fuga, a galinha escapa da morte, com suas próprias pernas, e pôe-se a correr pelas ruelas, acompanhada pela câmara que, assim, apresenta o público à Cidade de Deus. A cena continua alegre, apesar dos empurrões que Zé Pequeno dá nas pessoas que atravessam seu caminho. Uma introdução clássica, idílica, que mostra de quebra o adorável vestígio rural da periferia onde as galinhas ainda são compradas vivas. Em poucos quadros, alguns elementos centrais do filme são apresentados: Zé Pequeno, líder de um bando armado, obviamente um traficante, a favela, a inocência constante dos personagens, exacerbada pela presença de crianças no grupo. A galinha chega a uma rua mais larga e encontra Buscapé, ele também um ser em fuga, como mais tarde se evidenciará no filme. Buscapé e o animal se enfrentam, como iguais. Começa de fato o drama. Não admira que uma cena tão espetacular fosse o fio que amarra o começo ao fim da história.
Estética negra - A linearidade da história é total. Depois desta introdução, o filme segue uma ordem lógica e tocantemente simples, dando mostra de uma preocupação peculiar de tornar o filme acessível a qualquer pessoa. E ainda temos um narrador onisciente - o próprio protagonista - que explica, em linguagem coloquial e voz pausada, as origens da favela e outros pontos capitais do filme. O recurso à imobilização das cenas, descansando a vista do espectador e dando tempo para a compreensão de determinada cena ou personagem, e os flash backs, que refrescam a memória ou explicam situações, completam uma linguagem assumidamente didática, legitimando a veracidade absoluta da narrativa. Esta veracidade extremada se desenvolve com diálogos espontâneos e personagens escolhidos a dedo, tipos físicos negros e mestiços absolutamente verdadeiros. Com isso, Meirelles consegue enfim superar o próprio Glauber Rocha, que apesar de sua busca apaixonada pela legitimidade social, não conseguiu nunca transformar o homem do povo em sujeito da narrativa. O vaqueiro Manuel, de Deus e Diabo, assim como Corisco, é um personagem de Glauber, uma fantasia bem construída de um diretor genial, mas o Zé Pequeno e demais personagens da Cidade de Deus não são criações de Meirelles, nem de Paulo Lins. Eles são reais, autônomos, personagens nascidos prontos, senhores de seu mundo e auto-referentes. E aí temos outra característica efetivamente revolucionária de Cidade de Deus, digna de ser louvada como um marco na história do cinema brasileiro: a consolidação estética da beleza negra. Com uma honestidade comovente, Meirelles mostrou a negritude essencial do brasileiro, sem traços finos, sem subterfúgios de espécie alguma, praticamente inaugurando uma nova referência estética-racial para o cinema nacional, ainda fortemente preso a uma estética branca e "global".
Pequenas dissonâncias - É difícil encontrar defeitos em Cidade de Deus, mas uma crítica sincera não pode deixar de opinar sobre os pontos mais problemáticos. Alguns personagens são um pouco mal construídos, como o puxa-saco de Zé Pequeno, embora ele seja importante. O próprio Zé Pequeno, apesar de interpretado magistralmente por Leandro Firmino da Hora, peca por um maniqueísmo exagerado, como vilão de história em quadrinhos, enquanto Bené, seu comparsa, assume ares de bom moço um pouco incoerentes com o seu envolvimento em tantos crimes e assassinatos. Esses defeitos, contudo, se é que são defeitos, fazem parte do filme, como nossos defeitos fazem parte de nossa personalidade.
Falta falar da fotografia e da música. Sobre a primeira, o filme consegue um efeito bastante eficiente, ao conferir uma cor antiga, fosca e tênue, e mesmo em preto e branco, aos períodos mais antigos da história, os anos 60, e cores vivas aos períodos mais recentes. A trilha sonora também participa desta ambientação histórica. A entrada das primeiras cenas dos anos 70 é acompanhada por uma música tipo discoteca que serve como uma descrição perfeita da época. Todas as músicas parecem ter sido feitas especialmente para o filme, desde o emocionante Cartola, que sublinha as cenas mais românticas, até o Seu Jorge, com seu suíngue dançante da cena inicial do churrasco.
O sacrifício dos inocentes - Muitos espectadores devem ter ficado chocados, com razão, com a cena de brutalização de duas crianças pequenas, exacerbada pelo fato de que o autor do disparo mortal em uma delas ser ainda uma criança, também violentada pela coerção da qual é vítima por parte dos bandidos mais velhos. Esta cena, porém, tem um significado crucial e representa, paradoxalmente, o momento mais humanista do filme. É porque ela é construída de maneira a evitar, a todo custo, a banalização da morte. As crianças estão ali, contorcendo-se de medo e dor, diante do espectador impotente. Não são bandidos cínicos e cruéis, nem vítimas anônimas. São crianças, frágeis, aterrorizadas, que haviam participado de um assalto tosco de uma padaria, para roubar frango assado, e que não conseguiram fugir dos algozes no momento que eles surgem para cumprir a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade. O espectador participa da cena, a qual é recortada do que vem antes e depois, aprofundando o sentido de estranhamento e perplexidade perante o ato irracional, quase inacreditável, que introduz brutalmente, com uma violência de forma perfeitamente ajustada à violência de conteúdo, uma crítica amarga e ferina a uma sociedade indiferene ao destino das primeiras gerações. Com esta cena, o filme rompe por completo certa solidariedade com o público, a qual é retomada contudo nas cenas seguintes. A participação destes guris, o bando da "caixa baixa", será constante no filme e serão eles, inclusive, que ao fim darão cabo ao vilão-mor da história. A narrativa termina com eles confabulando, de maneira infantil, e terrível, sobre quem deverá morrer na favela.
O galã marginal - O personagem Bené, comparsa boa praça de Zé Pequeno, faz parte do instrumental do diretor para forçar o público a uma atitude compreensiva perante o fenômeno do banditismo. Bené é um rapaz bom, um contra-ponto à ferocidade incontrolável do parceiro. É leal, simpático, carinhoso, sabe amar, sabe ser amigo, e o público não o vê em nenhum momento matando alguém, pelo contrário a sua intervenção é sempre no sentido de preservar a vida dos outros. "Você quer matar todo mundo!", é o protesto que ele repete mais de uma vez para Zé Pequeno. A cena do baile - a despedida de Bené - é um dos pontos altos do filme. Bené conquista o amor da musa da história, Angélica, garota de classe média baixa – filha de um sargento -, que lhe convence a abandonar o crime. Bené não é obcecado pelo poder como Zé Pequeno, ele representa a busca da felicidade. Com o dinheiro do tráfico, ele ascende socialmente, ingressando na turma dos "cocotas", usando roupas de marca, pintando o cabelo de loiro, ganhando um charme irresistível que conquista o público. Após construir uma intensa relação afetiva de Bené com o espectador, o roteirista decide matá-lo no auge da festa, provocando um forte efeito dramático. A despedida de Bené, afinal, era mesmo o fim de sua participação na história. Após sua ida, tudo fica mais sombrio na Cidade de Deus. Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. Sem Bené, o bandido vai desenvolver, sem limites, toda a sua crueldade, como fica claro na primeira cena após a morte do amigo, o estupro da namorada de Zé Galinha. A guerra é deflagrada. Temos um combate. Tiros, muitos tiros. Entra o personagem que vende armas, mancomunado com a polícia. Um personagem espetacular, chamado Tio Sam, numa referência interessante ao principal país produtor de armas do mundo, que gasta tanto dinheiro em repressão de drogas, mas é tão tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.
O combate - As cenas de combate, todavia, são apressadas, entrando o filme numa etapa um pouco mais descuidada e fantasiosa, o que revela talvez um certo desinteresse do diretor pelas cenas puras de violência, priorizando os dramas pessoais dos personagens. Apesar de apressadas, contudo, são eficientes e transmitem o efeito desejado, de que uma violência caótica e desorganizada se instalou na Cidade de Deus. Os assaltos do bando de Cenoura e Zé Galinha, por outro lado, são magistralmente encenados, embora bastante rápidos. A entrada de Zé Galinha na história, com todos os seus dilemas morais, reforça novamente a idéia de que um destino trágico, mais do que a má índole, força os personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.
The End - E aí chegamos ao final do longa-metragem, em que se repete algo da cena inicial. Buscapé, já contratado pelo jornal, consegue a foto desejada. Enquanto as crianças desfilam armadas, adultos anônimos cruzam as ruelas, atarefados. Buscapé conversa com seu amigo sobre suas expectativas profissionais. O narrador diz seu nome verdadeiro: Wilson Rodrigues. Os bandidos se perdem no passado, mortos, presos, distantes em sua aventura tresloucada, ou reduzidos a crianças inconsequentes. O personagem de Buscapé ganha realce, é um rapaz inteligente, esforçado e irremediavalmente honesto, como aliás a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos constantemente às maiores privações, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho. Em tempos pós-modernos, em que não julgar, não se posicionar é sinônimo de qualidade estética, Cidade de Deus termina com uma mensagem moralista explícita e corajosa, como tudo neste filme brilhante, que abre tantas perspectivas novas para o cinema brasileiro.
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