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Hell Bar
O belo e o escalafobético
Por Miguel do Rosário
Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência inflingida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.
Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir - antes tarde do que nunca - uma carreira menos intangível.
**
Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma super-valorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre - ou quase nunca - à altura do mestre.
**
Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908 – 1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909 – 1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960 – 1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravantantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário, pode eventualmente ser genial, mas isso só ocorre porque consegue causar forte prazer estético no espectador.
A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afeta de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.
Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.
Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.
Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX - unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa - emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: “Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra”.
Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.
Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelângelo.
Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem. Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inagurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.
Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência inflingida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.
Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir - antes tarde do que nunca - uma carreira menos intangível.
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Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma super-valorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre - ou quase nunca - à altura do mestre.
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Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908 – 1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909 – 1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960 – 1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravantantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário, pode eventualmente ser genial, mas isso só ocorre porque consegue causar forte prazer estético no espectador.
A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afeta de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.
Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.
Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.
Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX - unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa - emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: “Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra”.
Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.
Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelângelo.
Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem. Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inagurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.
A volta do marginal
Ensaio sobre o filme Cidade de Deus
Por Miguel do Rosário
Com o filme Cidade de Deus se consolida uma nova escola do cinema brasileiro contemporâneo, superando inclusive a "Retomada", como está sendo conhecido a etapa que se seguiu ao vácuo do início dos anos 90, após o fim da Embrafilme, com os lançamentos de Carlota Joaquina e, um pouco mais tarde, Terra Estrangeira, sob os auspícios da Lei do Audivisual. A exploração estética da poesia suburbana das metrópoles representa um ressurgimento triunfal da idéia preconizada por Glauber Rocha, que nos anos 60 escrevia que o cinema dos países periféricos só alcançaria produzir um efeito estético contundente através da manipulação artística da violência e da fome. O rebelde politizado de Glauber, porém, será substituído pelo bandido cínico do cinema marginal pós-64, como por exemplo o Bandido da Luz Vermelha, visto que a produção cinematográfica estará sob severa vigilância da censura militar.
Esta nova estética marginal do cinema brasileiro não deve ser confundida com a eterna paixão pelo gangsterismo de holliwood, embora as influências sejam inevitáveis. Enquanto o bandido americano (Poderoso Chefão, Scarface, Bons Companheiros, Pulp Fiction) é um capitalista que optou pelo enriquecimento fácil, ou então um caso de perturbação psicológica (Psicose, Kannibal), o bandido brasileiro é mostrado sempre como uma vítima social, um rebelde cínico ou politizado, cujos valores morais foram submergidos por circunstâncias alheias à sua vontade.
Um épico da modernidade - Nesta volta surpreendente da estética marginal, o mesmo herói bandido aparece inserido num contexto sócio-político definido com assombrosa lucidez e encaixado numa película elaborada com um profissionalismo de fazer inveja aos melhores técnicos de holliwood. Embora a censura tenha se esvaído com o fim da ditadura, os cineastas continuam vigiados por executivos dos departamentos de publicidade que aprovam os projetos de patrocínio. Os heróis marginais de Cidade de Deus, por exemplo, não têm nenhum discurso político consistente, porque são totalmente, ou quase, analfabetos. Ainda não é o momento do cinema engajado, se é que ele terá seu momento, já que a arte não necessita de uma forma explícita para atingir um determinado objetivo estético ou político. O ritmo da câmera, a música, as cores, enfim a linguagem, serão suficientes para influenciar a percepção moral dos personsagens. Através destes recursos, Meirelles consegue iluminar os bandidos com uma luz que parece vir da consciência do espectador, que lhes compreende o desvio moral como resultado da realidade dolorosa do Rio ou de qualquer outra metrópole.
Universalismo - Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. Mesmo a guerra das gangues tem um motivo digno da Ilíada: o estupro da mulher de Zé Galinha lembra o rapto de Helena, e a fúria titânica do vingador aparece como a ira de Ulisses. Nesta parte mesma, o narrador diz: "só mesmo um milagre... mas existe um lugar melhor para um milagre do que uma cidade com o nome de Cidade de Deus?". E Zé Galinha, como que protegido por Atenas, deusa da guerra, irrompe atirando, sozinho, contra um bando de mais de doze homens armados, colocando-os em fuga e matando um deles. As mulheres que o rodeiam, enquanto ele observa sua primeira vítima, recordam o coro de uma tragédia grega, expressando os pensamentos da comunidade: "Legal você... Matou bem... Esse foi um, mas ainda não foi todos...".
A galinha em pânico - Voltemos ao início do filme. Churrasco, samba, cerveja, caracterizam, em traços rápidos e precisos, o ambiente da favela. A alegria é contagiante, envolve completamente o público através do contraste desconcertante entre a realidade vibrante da comunidade e a imobilidade quase mórbida da sala de cinema. A galinha, esse personagem inesquecível, símbolo do ser em perigo, do medo e, enfim, da fuga, a galinha escapa da morte, com suas próprias pernas, e pôe-se a correr pelas ruelas, acompanhada pela câmara que, assim, apresenta o público à Cidade de Deus. A cena continua alegre, apesar dos empurrões que Zé Pequeno dá nas pessoas que atravessam seu caminho. Uma introdução clássica, idílica, que mostra de quebra o adorável vestígio rural da periferia onde as galinhas ainda são compradas vivas. Em poucos quadros, alguns elementos centrais do filme são apresentados: Zé Pequeno, líder de um bando armado, obviamente um traficante, a favela, a inocência constante dos personagens, exacerbada pela presença de crianças no grupo. A galinha chega a uma rua mais larga e encontra Buscapé, ele também um ser em fuga, como mais tarde se evidenciará no filme. Buscapé e o animal se enfrentam, como iguais. Começa de fato o drama. Não admira que uma cena tão espetacular fosse o fio que amarra o começo ao fim da história.
Estética negra - A linearidade da história é total. Depois desta introdução, o filme segue uma ordem lógica e tocantemente simples, dando mostra de uma preocupação peculiar de tornar o filme acessível a qualquer pessoa. E ainda temos um narrador onisciente - o próprio protagonista - que explica, em linguagem coloquial e voz pausada, as origens da favela e outros pontos capitais do filme. O recurso à imobilização das cenas, descansando a vista do espectador e dando tempo para a compreensão de determinada cena ou personagem, e os flash backs, que refrescam a memória ou explicam situações, completam uma linguagem assumidamente didática, legitimando a veracidade absoluta da narrativa. Esta veracidade extremada se desenvolve com diálogos espontâneos e personagens escolhidos a dedo, tipos físicos negros e mestiços absolutamente verdadeiros. Com isso, Meirelles consegue enfim superar o próprio Glauber Rocha, que apesar de sua busca apaixonada pela legitimidade social, não conseguiu nunca transformar o homem do povo em sujeito da narrativa. O vaqueiro Manuel, de Deus e Diabo, assim como Corisco, é um personagem de Glauber, uma fantasia bem construída de um diretor genial, mas o Zé Pequeno e demais personagens da Cidade de Deus não são criações de Meirelles, nem de Paulo Lins. Eles são reais, autônomos, personagens nascidos prontos, senhores de seu mundo e auto-referentes. E aí temos outra característica efetivamente revolucionária de Cidade de Deus, digna de ser louvada como um marco na história do cinema brasileiro: a consolidação estética da beleza negra. Com uma honestidade comovente, Meirelles mostrou a negritude essencial do brasileiro, sem traços finos, sem subterfúgios de espécie alguma, praticamente inaugurando uma nova referência estética-racial para o cinema nacional, ainda fortemente preso a uma estética branca e "global".
Pequenas dissonâncias - É difícil encontrar defeitos em Cidade de Deus, mas uma crítica sincera não pode deixar de opinar sobre os pontos mais problemáticos. Alguns personagens são um pouco mal construídos, como o puxa-saco de Zé Pequeno, embora ele seja importante. O próprio Zé Pequeno, apesar de interpretado magistralmente por Leandro Firmino da Hora, peca por um maniqueísmo exagerado, como vilão de história em quadrinhos, enquanto Bené, seu comparsa, assume ares de bom moço um pouco incoerentes com o seu envolvimento em tantos crimes e assassinatos. Esses defeitos, contudo, se é que são defeitos, fazem parte do filme, como nossos defeitos fazem parte de nossa personalidade.
Falta falar da fotografia e da música. Sobre a primeira, o filme consegue um efeito bastante eficiente, ao conferir uma cor antiga, fosca e tênue, e mesmo em preto e branco, aos períodos mais antigos da história, os anos 60, e cores vivas aos períodos mais recentes. A trilha sonora também participa desta ambientação histórica. A entrada das primeiras cenas dos anos 70 é acompanhada por uma música tipo discoteca que serve como uma descrição perfeita da época. Todas as músicas parecem ter sido feitas especialmente para o filme, desde o emocionante Cartola, que sublinha as cenas mais românticas, até o Seu Jorge, com seu suíngue dançante da cena inicial do churrasco.
O sacrifício dos inocentes - Muitos espectadores devem ter ficado chocados, com razão, com a cena de brutalização de duas crianças pequenas, exacerbada pelo fato de que o autor do disparo mortal em uma delas ser ainda uma criança, também violentada pela coerção da qual é vítima por parte dos bandidos mais velhos. Esta cena, porém, tem um significado crucial e representa, paradoxalmente, o momento mais humanista do filme. É porque ela é construída de maneira a evitar, a todo custo, a banalização da morte. As crianças estão ali, contorcendo-se de medo e dor, diante do espectador impotente. Não são bandidos cínicos e cruéis, nem vítimas anônimas. São crianças, frágeis, aterrorizadas, que haviam participado de um assalto tosco de uma padaria, para roubar frango assado, e que não conseguiram fugir dos algozes no momento que eles surgem para cumprir a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade. O espectador participa da cena, a qual é recortada do que vem antes e depois, aprofundando o sentido de estranhamento e perplexidade perante o ato irracional, quase inacreditável, que introduz brutalmente, com uma violência de forma perfeitamente ajustada à violência de conteúdo, uma crítica amarga e ferina a uma sociedade indiferene ao destino das primeiras gerações. Com esta cena, o filme rompe por completo certa solidariedade com o público, a qual é retomada contudo nas cenas seguintes. A participação destes guris, o bando da "caixa baixa", será constante no filme e serão eles, inclusive, que ao fim darão cabo ao vilão-mor da história. A narrativa termina com eles confabulando, de maneira infantil, e terrível, sobre quem deverá morrer na favela.
O galã marginal - O personagem Bené, comparsa boa praça de Zé Pequeno, faz parte do instrumental do diretor para forçar o público a uma atitude compreensiva perante o fenômeno do banditismo. Bené é um rapaz bom, um contra-ponto à ferocidade incontrolável do parceiro. É leal, simpático, carinhoso, sabe amar, sabe ser amigo, e o público não o vê em nenhum momento matando alguém, pelo contrário a sua intervenção é sempre no sentido de preservar a vida dos outros. "Você quer matar todo mundo!", é o protesto que ele repete mais de uma vez para Zé Pequeno. A cena do baile - a despedida de Bené - é um dos pontos altos do filme. Bené conquista o amor da musa da história, Angélica, garota de classe média baixa – filha de um sargento -, que lhe convence a abandonar o crime. Bené não é obcecado pelo poder como Zé Pequeno, ele representa a busca da felicidade. Com o dinheiro do tráfico, ele ascende socialmente, ingressando na turma dos "cocotas", usando roupas de marca, pintando o cabelo de loiro, ganhando um charme irresistível que conquista o público. Após construir uma intensa relação afetiva de Bené com o espectador, o roteirista decide matá-lo no auge da festa, provocando um forte efeito dramático. A despedida de Bené, afinal, era mesmo o fim de sua participação na história. Após sua ida, tudo fica mais sombrio na Cidade de Deus. Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. Sem Bené, o bandido vai desenvolver, sem limites, toda a sua crueldade, como fica claro na primeira cena após a morte do amigo, o estupro da namorada de Zé Galinha. A guerra é deflagrada. Temos um combate. Tiros, muitos tiros. Entra o personagem que vende armas, mancomunado com a polícia. Um personagem espetacular, chamado Tio Sam, numa referência interessante ao principal país produtor de armas do mundo, que gasta tanto dinheiro em repressão de drogas, mas é tão tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.
O combate - As cenas de combate, todavia, são apressadas, entrando o filme numa etapa um pouco mais descuidada e fantasiosa, o que revela talvez um certo desinteresse do diretor pelas cenas puras de violência, priorizando os dramas pessoais dos personagens. Apesar de apressadas, contudo, são eficientes e transmitem o efeito desejado, de que uma violência caótica e desorganizada se instalou na Cidade de Deus. Os assaltos do bando de Cenoura e Zé Galinha, por outro lado, são magistralmente encenados, embora bastante rápidos. A entrada de Zé Galinha na história, com todos os seus dilemas morais, reforça novamente a idéia de que um destino trágico, mais do que a má índole, força os personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.
The End - E aí chegamos ao final do longa-metragem, em que se repete algo da cena inicial. Buscapé, já contratado pelo jornal, consegue a foto desejada. Enquanto as crianças desfilam armadas, adultos anônimos cruzam as ruelas, atarefados. Buscapé conversa com seu amigo sobre suas expectativas profissionais. O narrador diz seu nome verdadeiro: Wilson Rodrigues. Os bandidos se perdem no passado, mortos, presos, distantes em sua aventura tresloucada, ou reduzidos a crianças inconsequentes. O personagem de Buscapé ganha realce, é um rapaz inteligente, esforçado e irremediavalmente honesto, como aliás a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos constantemente às maiores privações, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho. Em tempos pós-modernos, em que não julgar, não se posicionar é sinônimo de qualidade estética, Cidade de Deus termina com uma mensagem moralista explícita e corajosa, como tudo neste filme brilhante, que abre tantas perspectivas novas para o cinema brasileiro.
Por Miguel do Rosário
Com o filme Cidade de Deus se consolida uma nova escola do cinema brasileiro contemporâneo, superando inclusive a "Retomada", como está sendo conhecido a etapa que se seguiu ao vácuo do início dos anos 90, após o fim da Embrafilme, com os lançamentos de Carlota Joaquina e, um pouco mais tarde, Terra Estrangeira, sob os auspícios da Lei do Audivisual. A exploração estética da poesia suburbana das metrópoles representa um ressurgimento triunfal da idéia preconizada por Glauber Rocha, que nos anos 60 escrevia que o cinema dos países periféricos só alcançaria produzir um efeito estético contundente através da manipulação artística da violência e da fome. O rebelde politizado de Glauber, porém, será substituído pelo bandido cínico do cinema marginal pós-64, como por exemplo o Bandido da Luz Vermelha, visto que a produção cinematográfica estará sob severa vigilância da censura militar.
Esta nova estética marginal do cinema brasileiro não deve ser confundida com a eterna paixão pelo gangsterismo de holliwood, embora as influências sejam inevitáveis. Enquanto o bandido americano (Poderoso Chefão, Scarface, Bons Companheiros, Pulp Fiction) é um capitalista que optou pelo enriquecimento fácil, ou então um caso de perturbação psicológica (Psicose, Kannibal), o bandido brasileiro é mostrado sempre como uma vítima social, um rebelde cínico ou politizado, cujos valores morais foram submergidos por circunstâncias alheias à sua vontade.
Um épico da modernidade - Nesta volta surpreendente da estética marginal, o mesmo herói bandido aparece inserido num contexto sócio-político definido com assombrosa lucidez e encaixado numa película elaborada com um profissionalismo de fazer inveja aos melhores técnicos de holliwood. Embora a censura tenha se esvaído com o fim da ditadura, os cineastas continuam vigiados por executivos dos departamentos de publicidade que aprovam os projetos de patrocínio. Os heróis marginais de Cidade de Deus, por exemplo, não têm nenhum discurso político consistente, porque são totalmente, ou quase, analfabetos. Ainda não é o momento do cinema engajado, se é que ele terá seu momento, já que a arte não necessita de uma forma explícita para atingir um determinado objetivo estético ou político. O ritmo da câmera, a música, as cores, enfim a linguagem, serão suficientes para influenciar a percepção moral dos personsagens. Através destes recursos, Meirelles consegue iluminar os bandidos com uma luz que parece vir da consciência do espectador, que lhes compreende o desvio moral como resultado da realidade dolorosa do Rio ou de qualquer outra metrópole.
Universalismo - Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. Mesmo a guerra das gangues tem um motivo digno da Ilíada: o estupro da mulher de Zé Galinha lembra o rapto de Helena, e a fúria titânica do vingador aparece como a ira de Ulisses. Nesta parte mesma, o narrador diz: "só mesmo um milagre... mas existe um lugar melhor para um milagre do que uma cidade com o nome de Cidade de Deus?". E Zé Galinha, como que protegido por Atenas, deusa da guerra, irrompe atirando, sozinho, contra um bando de mais de doze homens armados, colocando-os em fuga e matando um deles. As mulheres que o rodeiam, enquanto ele observa sua primeira vítima, recordam o coro de uma tragédia grega, expressando os pensamentos da comunidade: "Legal você... Matou bem... Esse foi um, mas ainda não foi todos...".
A galinha em pânico - Voltemos ao início do filme. Churrasco, samba, cerveja, caracterizam, em traços rápidos e precisos, o ambiente da favela. A alegria é contagiante, envolve completamente o público através do contraste desconcertante entre a realidade vibrante da comunidade e a imobilidade quase mórbida da sala de cinema. A galinha, esse personagem inesquecível, símbolo do ser em perigo, do medo e, enfim, da fuga, a galinha escapa da morte, com suas próprias pernas, e pôe-se a correr pelas ruelas, acompanhada pela câmara que, assim, apresenta o público à Cidade de Deus. A cena continua alegre, apesar dos empurrões que Zé Pequeno dá nas pessoas que atravessam seu caminho. Uma introdução clássica, idílica, que mostra de quebra o adorável vestígio rural da periferia onde as galinhas ainda são compradas vivas. Em poucos quadros, alguns elementos centrais do filme são apresentados: Zé Pequeno, líder de um bando armado, obviamente um traficante, a favela, a inocência constante dos personagens, exacerbada pela presença de crianças no grupo. A galinha chega a uma rua mais larga e encontra Buscapé, ele também um ser em fuga, como mais tarde se evidenciará no filme. Buscapé e o animal se enfrentam, como iguais. Começa de fato o drama. Não admira que uma cena tão espetacular fosse o fio que amarra o começo ao fim da história.
Estética negra - A linearidade da história é total. Depois desta introdução, o filme segue uma ordem lógica e tocantemente simples, dando mostra de uma preocupação peculiar de tornar o filme acessível a qualquer pessoa. E ainda temos um narrador onisciente - o próprio protagonista - que explica, em linguagem coloquial e voz pausada, as origens da favela e outros pontos capitais do filme. O recurso à imobilização das cenas, descansando a vista do espectador e dando tempo para a compreensão de determinada cena ou personagem, e os flash backs, que refrescam a memória ou explicam situações, completam uma linguagem assumidamente didática, legitimando a veracidade absoluta da narrativa. Esta veracidade extremada se desenvolve com diálogos espontâneos e personagens escolhidos a dedo, tipos físicos negros e mestiços absolutamente verdadeiros. Com isso, Meirelles consegue enfim superar o próprio Glauber Rocha, que apesar de sua busca apaixonada pela legitimidade social, não conseguiu nunca transformar o homem do povo em sujeito da narrativa. O vaqueiro Manuel, de Deus e Diabo, assim como Corisco, é um personagem de Glauber, uma fantasia bem construída de um diretor genial, mas o Zé Pequeno e demais personagens da Cidade de Deus não são criações de Meirelles, nem de Paulo Lins. Eles são reais, autônomos, personagens nascidos prontos, senhores de seu mundo e auto-referentes. E aí temos outra característica efetivamente revolucionária de Cidade de Deus, digna de ser louvada como um marco na história do cinema brasileiro: a consolidação estética da beleza negra. Com uma honestidade comovente, Meirelles mostrou a negritude essencial do brasileiro, sem traços finos, sem subterfúgios de espécie alguma, praticamente inaugurando uma nova referência estética-racial para o cinema nacional, ainda fortemente preso a uma estética branca e "global".
Pequenas dissonâncias - É difícil encontrar defeitos em Cidade de Deus, mas uma crítica sincera não pode deixar de opinar sobre os pontos mais problemáticos. Alguns personagens são um pouco mal construídos, como o puxa-saco de Zé Pequeno, embora ele seja importante. O próprio Zé Pequeno, apesar de interpretado magistralmente por Leandro Firmino da Hora, peca por um maniqueísmo exagerado, como vilão de história em quadrinhos, enquanto Bené, seu comparsa, assume ares de bom moço um pouco incoerentes com o seu envolvimento em tantos crimes e assassinatos. Esses defeitos, contudo, se é que são defeitos, fazem parte do filme, como nossos defeitos fazem parte de nossa personalidade.
Falta falar da fotografia e da música. Sobre a primeira, o filme consegue um efeito bastante eficiente, ao conferir uma cor antiga, fosca e tênue, e mesmo em preto e branco, aos períodos mais antigos da história, os anos 60, e cores vivas aos períodos mais recentes. A trilha sonora também participa desta ambientação histórica. A entrada das primeiras cenas dos anos 70 é acompanhada por uma música tipo discoteca que serve como uma descrição perfeita da época. Todas as músicas parecem ter sido feitas especialmente para o filme, desde o emocionante Cartola, que sublinha as cenas mais românticas, até o Seu Jorge, com seu suíngue dançante da cena inicial do churrasco.
O sacrifício dos inocentes - Muitos espectadores devem ter ficado chocados, com razão, com a cena de brutalização de duas crianças pequenas, exacerbada pelo fato de que o autor do disparo mortal em uma delas ser ainda uma criança, também violentada pela coerção da qual é vítima por parte dos bandidos mais velhos. Esta cena, porém, tem um significado crucial e representa, paradoxalmente, o momento mais humanista do filme. É porque ela é construída de maneira a evitar, a todo custo, a banalização da morte. As crianças estão ali, contorcendo-se de medo e dor, diante do espectador impotente. Não são bandidos cínicos e cruéis, nem vítimas anônimas. São crianças, frágeis, aterrorizadas, que haviam participado de um assalto tosco de uma padaria, para roubar frango assado, e que não conseguiram fugir dos algozes no momento que eles surgem para cumprir a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade. O espectador participa da cena, a qual é recortada do que vem antes e depois, aprofundando o sentido de estranhamento e perplexidade perante o ato irracional, quase inacreditável, que introduz brutalmente, com uma violência de forma perfeitamente ajustada à violência de conteúdo, uma crítica amarga e ferina a uma sociedade indiferene ao destino das primeiras gerações. Com esta cena, o filme rompe por completo certa solidariedade com o público, a qual é retomada contudo nas cenas seguintes. A participação destes guris, o bando da "caixa baixa", será constante no filme e serão eles, inclusive, que ao fim darão cabo ao vilão-mor da história. A narrativa termina com eles confabulando, de maneira infantil, e terrível, sobre quem deverá morrer na favela.
O galã marginal - O personagem Bené, comparsa boa praça de Zé Pequeno, faz parte do instrumental do diretor para forçar o público a uma atitude compreensiva perante o fenômeno do banditismo. Bené é um rapaz bom, um contra-ponto à ferocidade incontrolável do parceiro. É leal, simpático, carinhoso, sabe amar, sabe ser amigo, e o público não o vê em nenhum momento matando alguém, pelo contrário a sua intervenção é sempre no sentido de preservar a vida dos outros. "Você quer matar todo mundo!", é o protesto que ele repete mais de uma vez para Zé Pequeno. A cena do baile - a despedida de Bené - é um dos pontos altos do filme. Bené conquista o amor da musa da história, Angélica, garota de classe média baixa – filha de um sargento -, que lhe convence a abandonar o crime. Bené não é obcecado pelo poder como Zé Pequeno, ele representa a busca da felicidade. Com o dinheiro do tráfico, ele ascende socialmente, ingressando na turma dos "cocotas", usando roupas de marca, pintando o cabelo de loiro, ganhando um charme irresistível que conquista o público. Após construir uma intensa relação afetiva de Bené com o espectador, o roteirista decide matá-lo no auge da festa, provocando um forte efeito dramático. A despedida de Bené, afinal, era mesmo o fim de sua participação na história. Após sua ida, tudo fica mais sombrio na Cidade de Deus. Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. Sem Bené, o bandido vai desenvolver, sem limites, toda a sua crueldade, como fica claro na primeira cena após a morte do amigo, o estupro da namorada de Zé Galinha. A guerra é deflagrada. Temos um combate. Tiros, muitos tiros. Entra o personagem que vende armas, mancomunado com a polícia. Um personagem espetacular, chamado Tio Sam, numa referência interessante ao principal país produtor de armas do mundo, que gasta tanto dinheiro em repressão de drogas, mas é tão tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.
O combate - As cenas de combate, todavia, são apressadas, entrando o filme numa etapa um pouco mais descuidada e fantasiosa, o que revela talvez um certo desinteresse do diretor pelas cenas puras de violência, priorizando os dramas pessoais dos personagens. Apesar de apressadas, contudo, são eficientes e transmitem o efeito desejado, de que uma violência caótica e desorganizada se instalou na Cidade de Deus. Os assaltos do bando de Cenoura e Zé Galinha, por outro lado, são magistralmente encenados, embora bastante rápidos. A entrada de Zé Galinha na história, com todos os seus dilemas morais, reforça novamente a idéia de que um destino trágico, mais do que a má índole, força os personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.
The End - E aí chegamos ao final do longa-metragem, em que se repete algo da cena inicial. Buscapé, já contratado pelo jornal, consegue a foto desejada. Enquanto as crianças desfilam armadas, adultos anônimos cruzam as ruelas, atarefados. Buscapé conversa com seu amigo sobre suas expectativas profissionais. O narrador diz seu nome verdadeiro: Wilson Rodrigues. Os bandidos se perdem no passado, mortos, presos, distantes em sua aventura tresloucada, ou reduzidos a crianças inconsequentes. O personagem de Buscapé ganha realce, é um rapaz inteligente, esforçado e irremediavalmente honesto, como aliás a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos constantemente às maiores privações, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho. Em tempos pós-modernos, em que não julgar, não se posicionar é sinônimo de qualidade estética, Cidade de Deus termina com uma mensagem moralista explícita e corajosa, como tudo neste filme brilhante, que abre tantas perspectivas novas para o cinema brasileiro.
Entrevista exclusiva com Paulo Scott (arquivo Arte & Política)
(CONCEDIDA EM 2005)
Arte & Política: Paulo, fale um pouco de seus livros passados e futuros...
Paulo Scott: Publiquei três livros até agora: o “Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros” (SULINA, 2001), uma compilação das poesias que escrevi nos anos oitenta e noventa; o já esgotado “Ainda orangotangos” (LIVROS DO MAL, 2003), contendo vinte e dois contos curtos – herméticos, poéticos e violentos –, e, recentemente, o romance “Voláteis” (OBJETIVA, 2005). O “Histórias curtas...” é um livro irregular, há textos melhor acabados – nos quais já é possível perceber o estilo que hoje me caracteriza – e outros de uma ingenuidade insuportável, mas que pela crueza têm algum valor literário. O “Ainda orangotangos” virará longa-metragem em plano-seqüência, dirigido pelo Gustavo Spolidoro, da Clube Silêncio – hoje, a segunda produtora de cinema mais importante do Rio Grande do Sul –, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2007.
No final deste mês de janeiro, sairá pela Editora Objetiva, o livro de poesias “A timidez do monstro”, com ilustrações do Guilherme Pilla, o responsável pelas capas da Livros do Mal – uma coisa importante a ser dita é que as ilustrações do livro, por motivos que não vêm ao caso, são as últimas feitas por ele antes da decisão, tomada há quase um ano, de parar de ilustrar.
Arte & Política: Como analisa a atual conjuntura do mercado de ficção no país?
A conjuntura do mercado ainda é reflexo dos problemas estruturais relacionados ao baixo nível cultural (educacional) do nosso país – crises econômicas, na minha opinião são secundárias, menos determinantes, tanto é que em vários países a procura por livros aumenta nos períodos de gravidade financeira.
Há boa ficção sim, mas que não provoca – apesar de algum esforço editorial, como, por exemplo, esse que a Companhia das Letras está fazendo com o livro recente do Marçal Aquino – a devida atenção dos consumidores-leitores.
Não se pode esquecer que mercado é, sobretudo, consumo, e isso – a exceção dos livros de auto-ajuda e dos autores da moda, alguns cujo resultado sequer pode ser considerado literário – é algo que em escala significativa sequer existe no Brasil. Livros excelentes, como o “Deixe o quarto como está” (COMPANHIA DAS LETRAS, 2002), do Amílcar Bettega Barbosa (ganhador da última edição do Portugal Telecom), não chegam a vender os três mil exemplares da primeira edição.
Apesar de tudo isso, vale o registro, autores novos (e tidos como marginais ao gosto médio do consumidor brasileiro) vêm recebendo, inclusive da imprensa literária, maior atenção do que receberiam há alguns anos atrás.
Arte & Política: Para você, a proliferação de pequenas editoras trouxe que tipo de mudanças à literatura contemporânea?
As editoras pequenas, com maior ou menor êxito, expõem novos autores, cuja qualidade literária – se, de fato, presente – poderá ser mais facilmente reconhecida. Importante lembrar que nem todas as pequenas editoras têm compromisso com a qualidade, muitas entram na lógica: “vamos publicar os nossos amigos” – radicalmente contrária a essa perspectiva, esteve (ou está, já que não se sabe se a editora acabou, ou não) a editora Livros do Mal, com rigor máximo na seleção dos seus autores.
Com efeito, escritores das pequenas editoras passaram a receber da imprensa brasileira o mesmo destaque dispensado aos autores das grandes editoras; isso obrigou as grandes a se tornarem mais sensíveis e abertas aos excêntricos (admitidos aí todos os significados cabíveis na expressão).
Arte & Política: O que faz para se inspirar?
Falta de inspiração não é o meu problema. Pelo contrário, tenho de controlar a enxurrada de impulsos e as idéias para conseguir, efetivamente, ser produtivo; quero dizer: não há como você terminar os projetos iniciados se não controla a compulsão de iniciar outros e outros.
Na execução dum texto longo (como um romance, por exemplo) – especialmente quando estou muito cansado ou envolvido pela frieza e tensões da vida prática (como diz a minha mulher Simone) – escuto Chet Baker, Nina Simone e John Coltrane, coisas desse tipo.
Uma certa indignação constante (que me caracteriza) é outro elemento inspirador importante.
Arte & Política: Falta uma crítica mais profissional e independente no país?
Com certeza. Isso está mudando, mas muito lentamente. Num meio repleto de leitores pouco informados – preguiçosos até – uma crítica literária razoável seria algo indispensável. Uma das pessoas que melhor tem se pronunciado a esse respeito é o escritor Nelson de Oliveira.
Arte & Política: Onde gosta de passar o Carnaval?
Carnaval? O que é isso?
Arte & Política: Três livros que levaria para uma ilha deserta?
“A náusea”, do Jean Paul Sartre. “Viagem ao fim da noite”, do Luis-Ferdinand Céline. “Almoço nu”, William Burroughs.
Veja que são todos estrangeiros; é uma pena (mas fazer o que?, são minhas grandes influências).
Arte & Política: Dostoiésvki ou James Joyce?
Joyce, por razões muito particulares.
Arte & Política: Pode dizer alguma coisa sobre o tema educação?
Sobre a educação, o que posso dizer é que... bem, é o maior problema do Brasil e os Governos todos (de todos os níveis federativos), como acontece com a saúde – aliás, só isso já seria motivo para protestos e manifestações intermináveis – não conseguem resolvê-lo.
Arte & Política: A literatura serve pra quê?
Tornar o vazio e a falta de sentido da vida – o que, ao menos mediatamente, pode-se resumir às relações interpessoais – mais suportáveis. Ou – supletivamente – permitindo-me um pouco de sarcasmo: para um tanto de gente infeliz bater no peito e vociferar “eu sou um escritor, vocês não vêem?, eu sou um escritor”.
Arte & Política: Como descreveria Porto Alegre e seus habitantes?
Um lugar provinciano, elitista e racista, com gente talentosa e neurótica saindo pelo ladrão.
Arte & Política: Que autores brasileiros contemporâneos chamaram mais sua atenção nos últimos tempos?
Começo por dois jovens (acima da média): João Paulo Cuenca e Daniel Galera. Dos mais velhos, seja pela verve ou pelo estilo, citaria João Gilberto Noll, Marçal Aquino e o Nelson de Oliveira. Na poesia, tem o Fabrício Carpinejar, singular em todos os aspectos. Há também os que me influenciaram: Luiz Ruffato, Daniel Pellizzari (este pela postura admirável que assumiu diante da literatura) e o Joca Reiners Terron. Correndo por fora, estão o Marcelo Benvenutti, a Cecília Giannetti, o Cardoso e a Mara Coradello.
Arte & Política: Considerações finais?
Muita gente me escreve perguntando como eu fiz para assinar contrato com duas das quatro editoras mais importantes do Brasil – sinto, nesses assaltos, nessa ansiedade, que os interlocutores estão mais interessados em publicar (seja lá o que for) do que realmente escrever. Esse é o maior erro que se pode cometer (até por que se a intenção é se expor – e isso, sem dúvida, é fundamental – basta iniciar um blog e veicular os textos por lá).
Não há truque: o negócio é escrever do jeito que você acha que vale a pena e, dessa obstinação, retirar algum prazer, porque – mesmo quando conseguir o almejado reconhecimento nacional – logo perceberá que todo o resto (vaidades, glamour etc) é bobagem. Isso eu posso garantir.
Arte & Política: Paulo, fale um pouco de seus livros passados e futuros...
Paulo Scott: Publiquei três livros até agora: o “Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros” (SULINA, 2001), uma compilação das poesias que escrevi nos anos oitenta e noventa; o já esgotado “Ainda orangotangos” (LIVROS DO MAL, 2003), contendo vinte e dois contos curtos – herméticos, poéticos e violentos –, e, recentemente, o romance “Voláteis” (OBJETIVA, 2005). O “Histórias curtas...” é um livro irregular, há textos melhor acabados – nos quais já é possível perceber o estilo que hoje me caracteriza – e outros de uma ingenuidade insuportável, mas que pela crueza têm algum valor literário. O “Ainda orangotangos” virará longa-metragem em plano-seqüência, dirigido pelo Gustavo Spolidoro, da Clube Silêncio – hoje, a segunda produtora de cinema mais importante do Rio Grande do Sul –, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2007.
No final deste mês de janeiro, sairá pela Editora Objetiva, o livro de poesias “A timidez do monstro”, com ilustrações do Guilherme Pilla, o responsável pelas capas da Livros do Mal – uma coisa importante a ser dita é que as ilustrações do livro, por motivos que não vêm ao caso, são as últimas feitas por ele antes da decisão, tomada há quase um ano, de parar de ilustrar.
Arte & Política: Como analisa a atual conjuntura do mercado de ficção no país?
A conjuntura do mercado ainda é reflexo dos problemas estruturais relacionados ao baixo nível cultural (educacional) do nosso país – crises econômicas, na minha opinião são secundárias, menos determinantes, tanto é que em vários países a procura por livros aumenta nos períodos de gravidade financeira.
Há boa ficção sim, mas que não provoca – apesar de algum esforço editorial, como, por exemplo, esse que a Companhia das Letras está fazendo com o livro recente do Marçal Aquino – a devida atenção dos consumidores-leitores.
Não se pode esquecer que mercado é, sobretudo, consumo, e isso – a exceção dos livros de auto-ajuda e dos autores da moda, alguns cujo resultado sequer pode ser considerado literário – é algo que em escala significativa sequer existe no Brasil. Livros excelentes, como o “Deixe o quarto como está” (COMPANHIA DAS LETRAS, 2002), do Amílcar Bettega Barbosa (ganhador da última edição do Portugal Telecom), não chegam a vender os três mil exemplares da primeira edição.
Apesar de tudo isso, vale o registro, autores novos (e tidos como marginais ao gosto médio do consumidor brasileiro) vêm recebendo, inclusive da imprensa literária, maior atenção do que receberiam há alguns anos atrás.
Arte & Política: Para você, a proliferação de pequenas editoras trouxe que tipo de mudanças à literatura contemporânea?
As editoras pequenas, com maior ou menor êxito, expõem novos autores, cuja qualidade literária – se, de fato, presente – poderá ser mais facilmente reconhecida. Importante lembrar que nem todas as pequenas editoras têm compromisso com a qualidade, muitas entram na lógica: “vamos publicar os nossos amigos” – radicalmente contrária a essa perspectiva, esteve (ou está, já que não se sabe se a editora acabou, ou não) a editora Livros do Mal, com rigor máximo na seleção dos seus autores.
Com efeito, escritores das pequenas editoras passaram a receber da imprensa brasileira o mesmo destaque dispensado aos autores das grandes editoras; isso obrigou as grandes a se tornarem mais sensíveis e abertas aos excêntricos (admitidos aí todos os significados cabíveis na expressão).
Arte & Política: O que faz para se inspirar?
Falta de inspiração não é o meu problema. Pelo contrário, tenho de controlar a enxurrada de impulsos e as idéias para conseguir, efetivamente, ser produtivo; quero dizer: não há como você terminar os projetos iniciados se não controla a compulsão de iniciar outros e outros.
Na execução dum texto longo (como um romance, por exemplo) – especialmente quando estou muito cansado ou envolvido pela frieza e tensões da vida prática (como diz a minha mulher Simone) – escuto Chet Baker, Nina Simone e John Coltrane, coisas desse tipo.
Uma certa indignação constante (que me caracteriza) é outro elemento inspirador importante.
Arte & Política: Falta uma crítica mais profissional e independente no país?
Com certeza. Isso está mudando, mas muito lentamente. Num meio repleto de leitores pouco informados – preguiçosos até – uma crítica literária razoável seria algo indispensável. Uma das pessoas que melhor tem se pronunciado a esse respeito é o escritor Nelson de Oliveira.
Arte & Política: Onde gosta de passar o Carnaval?
Carnaval? O que é isso?
Arte & Política: Três livros que levaria para uma ilha deserta?
“A náusea”, do Jean Paul Sartre. “Viagem ao fim da noite”, do Luis-Ferdinand Céline. “Almoço nu”, William Burroughs.
Veja que são todos estrangeiros; é uma pena (mas fazer o que?, são minhas grandes influências).
Arte & Política: Dostoiésvki ou James Joyce?
Joyce, por razões muito particulares.
Arte & Política: Pode dizer alguma coisa sobre o tema educação?
Sobre a educação, o que posso dizer é que... bem, é o maior problema do Brasil e os Governos todos (de todos os níveis federativos), como acontece com a saúde – aliás, só isso já seria motivo para protestos e manifestações intermináveis – não conseguem resolvê-lo.
Arte & Política: A literatura serve pra quê?
Tornar o vazio e a falta de sentido da vida – o que, ao menos mediatamente, pode-se resumir às relações interpessoais – mais suportáveis. Ou – supletivamente – permitindo-me um pouco de sarcasmo: para um tanto de gente infeliz bater no peito e vociferar “eu sou um escritor, vocês não vêem?, eu sou um escritor”.
Arte & Política: Como descreveria Porto Alegre e seus habitantes?
Um lugar provinciano, elitista e racista, com gente talentosa e neurótica saindo pelo ladrão.
Arte & Política: Que autores brasileiros contemporâneos chamaram mais sua atenção nos últimos tempos?
Começo por dois jovens (acima da média): João Paulo Cuenca e Daniel Galera. Dos mais velhos, seja pela verve ou pelo estilo, citaria João Gilberto Noll, Marçal Aquino e o Nelson de Oliveira. Na poesia, tem o Fabrício Carpinejar, singular em todos os aspectos. Há também os que me influenciaram: Luiz Ruffato, Daniel Pellizzari (este pela postura admirável que assumiu diante da literatura) e o Joca Reiners Terron. Correndo por fora, estão o Marcelo Benvenutti, a Cecília Giannetti, o Cardoso e a Mara Coradello.
Arte & Política: Considerações finais?
Muita gente me escreve perguntando como eu fiz para assinar contrato com duas das quatro editoras mais importantes do Brasil – sinto, nesses assaltos, nessa ansiedade, que os interlocutores estão mais interessados em publicar (seja lá o que for) do que realmente escrever. Esse é o maior erro que se pode cometer (até por que se a intenção é se expor – e isso, sem dúvida, é fundamental – basta iniciar um blog e veicular os textos por lá).
Não há truque: o negócio é escrever do jeito que você acha que vale a pena e, dessa obstinação, retirar algum prazer, porque – mesmo quando conseguir o almejado reconhecimento nacional – logo perceberá que todo o resto (vaidades, glamour etc) é bobagem. Isso eu posso garantir.
Assassinato na Riachuelo 217
Odiava isso, desde o início. Mas antes de cobrir a seção de Cidade de um jornal como aquele, eu tinha uma visão totalmente romântica sobre reportagem policial. Sonhava com crimes cinematográficos, cometidos por assassinos célebres, as pessoas comprando jornais em todo país para ler as últimas notícias sobre os casos que abalaram a sociedade.
Acho que era porque sempre nutri o desejo de ser detetive, investigador, qualquer coisa assim, mas não tinha o perfil psicológico afirmativo, firme, estruturado que se exigia dos homens da lei.
Claro que me enganei redondamente, sendo que meu caso é mais grave pelo fato do jornal onde trabalho possuir uma linha editorial voltada para o sensacionalismo escatológico. Somos orientados, para não dizer coagidos, a bater as fotos mais infames...
Não há câmera fotográfica, contudo, por mais moderna e possante que seja, que consiga captar o horror da morte de maneira tão profunda, tão intensa, como a íris humana, que conta com o auxílio do olfato - o aroma de carnes putrefatas é coisa que não atinge leitores, apesar da marca indelével que deixa no espírito do observador. Isso sem falar das paisagens adjacentes, em geral decoradas com toda espécie de lixo, esgoto, ratos e coisas nojentas e sujas.
Existe uma diferença significativa entre folhear um jornal vagabundo bebericando uma cerveja depois do almoço, como quem se diverte vendo um filme de ação, e rodar oitenta quilômetros do centro até algum extremo da periferia, axilas úmidas de suor, atravessando lixões, favelas, valas podres, para fotografar e descrever a morte de um jovem de vinte cinco anos, o rosto destruído por uma bala de fuzil AR 15, larvinhas brancas se mexendo pelas feridas múltiplas do corpo moreno...
A única coisa boa, no meu caso, é que finalmente havia encontrado um bom motivo para me tornar um inveterado, incorrigível e orgulhoso alcóolatra. Nos últimos tempos, começava com uma cervejinha no café da manhã, que tomava por volta das dez horas num botequim perto de casa, junto com um ou dois pastéis de queijo. Era o melhor momento do dia, em que a consciência, esvaziada pela bebedeira e pela noite de sono, permitia-me alguns minutos de poesia. Os raios de sol, filtrando-se pelos galhos de uma velha amendoeira da calçada, riscavam o chão do bar e faziam o copo de cerveja resplandecer com um luz especial, alegre e libertadora.
Na hora do almoço, às três da tarde, mandava ver mais algumas cervejas para abrir o apetite, no mesmo bar onde às vezes íamos ao final do dia, enquanto esperávamos algum marido ciumento esfaquear a mulher, ou um desempregado estuprar a enteada, matá-la e enterrá-la no quintal de casa.
Ao final do expediente, lá pelas onze ou meia-noite, saíamos pela Lapa, eu e mais uns pinguços do jornal, bebendo todas e cheirando umas carreiras. Também eram momentos felizes, em que ríamos, enlouquecidos, de tudo, de todos, do mundo inteiro.
Voltava para casa guiado apenas pelo instinto animal, já que nunca me lembrava como conseguira fazê-lo. Certa vez acordei fedendo a urina e vômito, ao lado de dois mendigos, perto do Passeio Público, o que me levou a frequentar reuniões do AA por dois meses.
Aquele serviço estava me fazendo mal, me afundando cada vez mais. O editor, porém, gostava do meu trabalho e me dava bônus e folgas sempre que pressentia que eu estava a ponto de abandonar o barco. Assim eu ia levando.
Apesar da maioria dos crimes mais horríveis acontecerem na Baixada Fluminense, as partes mais nobres da cidade também ofereciam palco para espetáculos macabros. Aliás, foi no centro da cidade, ironicamente na mesma rua onde eu morava, que registrei a cena mais terrível da minha carreira como repórter policial do Jornal O Povo.
Estávamos sentados no bar do Paulinho, o mais próximo da redação. Eu descrevia, a duas estagiárias de jornalismo, como funcionava o esquema das máfias da Baixada, geralmente controladas por oficiais graduados da polícia militar ou figurões da política local. Uma das mais poderosas era a Máfia do Capote, que atuava nos complexos da Maré e do Alemão, e que era chefiada, dizia-se, por um major da Polícia.
Era uma máfia extremamente violenta, que tinha convênio com traficantes, que pagavam tributos. Policiais fora do esquema não podiam extorquir os bandidos, que já pagavam uma bolada à Máfia. De certa forma, era um sistema que organizava e disciplinava o mercado de propinas do Rio de Janeiro.
As garotas estavam fascinadas com o mundo obscuro do crime organizado. Uma delas, Regina, era de São José, cidadezinha depois de Nova Friburgo, no norte fluminense. A outra, Tatiana, era uma "patricinha" da zona sul. Meu sonho era levar as duas pra cama, de preferência ao mesmo tempo, e nada como uma boas histórias de terror para excitar uma mulher... ou duas.
Pois então, estava eu no bar, conversando com as duas, quando entra Josias, o fotógrafo, esbaforido, como todo gordo quando fica agitado.
"Tem um crime na Riachuelo, Zé. Parece que é coisa forte. O Antunes mandou a gente ir lá imediatamente. Vai ser capa".
Despedi-me das meninas com ar de grande soldado diante de perigosa batalha. Elas me olhavam embevecidas. Empertiguei-me, embrigado pelo olhar admirado das moças e caminhei em direção ao carro. Sentei-me ao volante, Josias instalou-se no carona, com a usual dificuldade de seus cento e vinte quilos, e seguimos até o endereço indicado.
Estávamos no inverno e uma frente fria acabara de chegar à cidade, vinda do Sul. Havia nas ruas um ar londrino, lúgubre e triste. Em dez minutos, chegamos a prédio número 217. Meia dúzia de moradores fofocavam sobre o crime na portaria. Era um prédio sóbrio, simples, construído aparentemente nos anos 60, onze andares, atualmente ocupado por famílias de classe média baixa.
Conversamos rapidamente com o zelador e subimos pelo elevador até o sétimo andar. O elevador, com as tradicionais portas pantográficas, estava todo pichado com frases estranhas. Uma delas ficou gravada em minha mente:
"Esqueçam o que viu!"
Atravessando o corredor, eu sentia a desagradável sensação de estar sendo observado através de todos os olhos mágicos das portas fechadas. O apartamento, número 710, estava com a porta somente encostada. Toquei a campainha, ouvi alguém resmungar lá dentro, entrei.
Eu conhecia o investigador Carlos Mesa, da Polícia Civil, de longa data. Observei-o primeiramente pelo espelho da sala. Ele era alto, forte, com mandíbulas quadradas e um grande nariz perfeitamente aquilino, semelhando um detetive de estórias em quadrinhos, e não pude evitar um certo sentimento de inferioridade ao ver-me também ao espelho, baixo, muito magro, olhos esbugalhados e um pequeno e horrível nariz de batata.
"Oi Zé", ele cumprimentou-me, altivo, com uma forte voz de barítono que me fez, inconscientemente, engrossar também a voz, ao respondê-lo.
"E aí, Mesa, tudo certo? Que aconteceu?", perguntei, passeando os olhos pelo apartamento de dois cômodos, tipo kitnet, a cozinha americana dentro da sala, apenas uma pia e um espaço para o fogãozinho de duas bocas. Na parede, uma cortiça com fotos de grupos de amigos em lugares turísticos.
"Cara, nunca vi nada parecido", disse Mesa, com um brilho sinistro nos olhos. Aquilo me assustou. Mesa estava há mais de dez anos no setor de crimes hediondos e tinha visto de tudo: chacinas, mutilações, gente queimada, estripada, enfim, tudo. Ele baixou a vista, como que vergado sob o peso de imagens fortes demais, e apontou para o banheiro.
"Não toque em nada, por favor, os peritos ainda não chegaram", acrescentou, com voz fraca.
Aproximei-me da porta do banheiro sentindo a respiração rápida de Josias em meu cangote. Abri lentamente a porta e espiei para dentro.
Era um banheiro pequeno, aproximadamente dois metros quadrados, com um vaso, uma pia e uma banheira. O espaço livre no centro era apenas o suficiente para uma pessoa ficar de pé, parada. Havia ainda uma máquina de lavar entre o vaso e a banheira, de modo que a pessoa, para sentar no vaso, precisava pôr uma das pernas na banheira.
O tamanho do espaço, porém, não era proporcional ao tamanho do horror. Poucas vezes na história dos crimes urbanos, um espaço tão exíguo comportou, em quantidade e intensidade, um volume tão grande de crueldade e morte.
Dentro da banheira, empilhados, estavam os corpos de duas mulheres jovens. Sentado no vaso, a cabeça inclinada para trás, encostada à parede, pernas e mãos amarradas, boca amordaçada, um homem de cerca de cinquenta anos, olhos muito abertos e expressão de pavor congelada no rosto.
A presença do horror não estava somente nos sinais de tortura nos corpos e na morte. Alguma coisa dentro daquele banheiro era totalmente incompreensível, absurda. Mais que diabólica: era um desafio moral, um chamado de guerra contra os poderes de Deus. Ou pelo menos esses foram os primeiros pensamentos que me ocorreram naqueles instantes horríveis.
Fechei a porta do banheiro e fui conversar com Mesa, que fumava um cigarro na janela, olhando para o vale semeado de edifícios, morros e favelas. Dois PMs riam junto à porta, falando qualquer coisa sobre futebol, mas o riso deles era meio nervoso.
"Que cena horrível, Mesa! Que aconteceu aqui?", perguntei.
Acho que era porque sempre nutri o desejo de ser detetive, investigador, qualquer coisa assim, mas não tinha o perfil psicológico afirmativo, firme, estruturado que se exigia dos homens da lei.
Claro que me enganei redondamente, sendo que meu caso é mais grave pelo fato do jornal onde trabalho possuir uma linha editorial voltada para o sensacionalismo escatológico. Somos orientados, para não dizer coagidos, a bater as fotos mais infames...
Não há câmera fotográfica, contudo, por mais moderna e possante que seja, que consiga captar o horror da morte de maneira tão profunda, tão intensa, como a íris humana, que conta com o auxílio do olfato - o aroma de carnes putrefatas é coisa que não atinge leitores, apesar da marca indelével que deixa no espírito do observador. Isso sem falar das paisagens adjacentes, em geral decoradas com toda espécie de lixo, esgoto, ratos e coisas nojentas e sujas.
Existe uma diferença significativa entre folhear um jornal vagabundo bebericando uma cerveja depois do almoço, como quem se diverte vendo um filme de ação, e rodar oitenta quilômetros do centro até algum extremo da periferia, axilas úmidas de suor, atravessando lixões, favelas, valas podres, para fotografar e descrever a morte de um jovem de vinte cinco anos, o rosto destruído por uma bala de fuzil AR 15, larvinhas brancas se mexendo pelas feridas múltiplas do corpo moreno...
A única coisa boa, no meu caso, é que finalmente havia encontrado um bom motivo para me tornar um inveterado, incorrigível e orgulhoso alcóolatra. Nos últimos tempos, começava com uma cervejinha no café da manhã, que tomava por volta das dez horas num botequim perto de casa, junto com um ou dois pastéis de queijo. Era o melhor momento do dia, em que a consciência, esvaziada pela bebedeira e pela noite de sono, permitia-me alguns minutos de poesia. Os raios de sol, filtrando-se pelos galhos de uma velha amendoeira da calçada, riscavam o chão do bar e faziam o copo de cerveja resplandecer com um luz especial, alegre e libertadora.
Na hora do almoço, às três da tarde, mandava ver mais algumas cervejas para abrir o apetite, no mesmo bar onde às vezes íamos ao final do dia, enquanto esperávamos algum marido ciumento esfaquear a mulher, ou um desempregado estuprar a enteada, matá-la e enterrá-la no quintal de casa.
Ao final do expediente, lá pelas onze ou meia-noite, saíamos pela Lapa, eu e mais uns pinguços do jornal, bebendo todas e cheirando umas carreiras. Também eram momentos felizes, em que ríamos, enlouquecidos, de tudo, de todos, do mundo inteiro.
Voltava para casa guiado apenas pelo instinto animal, já que nunca me lembrava como conseguira fazê-lo. Certa vez acordei fedendo a urina e vômito, ao lado de dois mendigos, perto do Passeio Público, o que me levou a frequentar reuniões do AA por dois meses.
Aquele serviço estava me fazendo mal, me afundando cada vez mais. O editor, porém, gostava do meu trabalho e me dava bônus e folgas sempre que pressentia que eu estava a ponto de abandonar o barco. Assim eu ia levando.
Apesar da maioria dos crimes mais horríveis acontecerem na Baixada Fluminense, as partes mais nobres da cidade também ofereciam palco para espetáculos macabros. Aliás, foi no centro da cidade, ironicamente na mesma rua onde eu morava, que registrei a cena mais terrível da minha carreira como repórter policial do Jornal O Povo.
Estávamos sentados no bar do Paulinho, o mais próximo da redação. Eu descrevia, a duas estagiárias de jornalismo, como funcionava o esquema das máfias da Baixada, geralmente controladas por oficiais graduados da polícia militar ou figurões da política local. Uma das mais poderosas era a Máfia do Capote, que atuava nos complexos da Maré e do Alemão, e que era chefiada, dizia-se, por um major da Polícia.
Era uma máfia extremamente violenta, que tinha convênio com traficantes, que pagavam tributos. Policiais fora do esquema não podiam extorquir os bandidos, que já pagavam uma bolada à Máfia. De certa forma, era um sistema que organizava e disciplinava o mercado de propinas do Rio de Janeiro.
As garotas estavam fascinadas com o mundo obscuro do crime organizado. Uma delas, Regina, era de São José, cidadezinha depois de Nova Friburgo, no norte fluminense. A outra, Tatiana, era uma "patricinha" da zona sul. Meu sonho era levar as duas pra cama, de preferência ao mesmo tempo, e nada como uma boas histórias de terror para excitar uma mulher... ou duas.
Pois então, estava eu no bar, conversando com as duas, quando entra Josias, o fotógrafo, esbaforido, como todo gordo quando fica agitado.
"Tem um crime na Riachuelo, Zé. Parece que é coisa forte. O Antunes mandou a gente ir lá imediatamente. Vai ser capa".
Despedi-me das meninas com ar de grande soldado diante de perigosa batalha. Elas me olhavam embevecidas. Empertiguei-me, embrigado pelo olhar admirado das moças e caminhei em direção ao carro. Sentei-me ao volante, Josias instalou-se no carona, com a usual dificuldade de seus cento e vinte quilos, e seguimos até o endereço indicado.
Estávamos no inverno e uma frente fria acabara de chegar à cidade, vinda do Sul. Havia nas ruas um ar londrino, lúgubre e triste. Em dez minutos, chegamos a prédio número 217. Meia dúzia de moradores fofocavam sobre o crime na portaria. Era um prédio sóbrio, simples, construído aparentemente nos anos 60, onze andares, atualmente ocupado por famílias de classe média baixa.
Conversamos rapidamente com o zelador e subimos pelo elevador até o sétimo andar. O elevador, com as tradicionais portas pantográficas, estava todo pichado com frases estranhas. Uma delas ficou gravada em minha mente:
"Esqueçam o que viu!"
Atravessando o corredor, eu sentia a desagradável sensação de estar sendo observado através de todos os olhos mágicos das portas fechadas. O apartamento, número 710, estava com a porta somente encostada. Toquei a campainha, ouvi alguém resmungar lá dentro, entrei.
Eu conhecia o investigador Carlos Mesa, da Polícia Civil, de longa data. Observei-o primeiramente pelo espelho da sala. Ele era alto, forte, com mandíbulas quadradas e um grande nariz perfeitamente aquilino, semelhando um detetive de estórias em quadrinhos, e não pude evitar um certo sentimento de inferioridade ao ver-me também ao espelho, baixo, muito magro, olhos esbugalhados e um pequeno e horrível nariz de batata.
"Oi Zé", ele cumprimentou-me, altivo, com uma forte voz de barítono que me fez, inconscientemente, engrossar também a voz, ao respondê-lo.
"E aí, Mesa, tudo certo? Que aconteceu?", perguntei, passeando os olhos pelo apartamento de dois cômodos, tipo kitnet, a cozinha americana dentro da sala, apenas uma pia e um espaço para o fogãozinho de duas bocas. Na parede, uma cortiça com fotos de grupos de amigos em lugares turísticos.
"Cara, nunca vi nada parecido", disse Mesa, com um brilho sinistro nos olhos. Aquilo me assustou. Mesa estava há mais de dez anos no setor de crimes hediondos e tinha visto de tudo: chacinas, mutilações, gente queimada, estripada, enfim, tudo. Ele baixou a vista, como que vergado sob o peso de imagens fortes demais, e apontou para o banheiro.
"Não toque em nada, por favor, os peritos ainda não chegaram", acrescentou, com voz fraca.
Aproximei-me da porta do banheiro sentindo a respiração rápida de Josias em meu cangote. Abri lentamente a porta e espiei para dentro.
Era um banheiro pequeno, aproximadamente dois metros quadrados, com um vaso, uma pia e uma banheira. O espaço livre no centro era apenas o suficiente para uma pessoa ficar de pé, parada. Havia ainda uma máquina de lavar entre o vaso e a banheira, de modo que a pessoa, para sentar no vaso, precisava pôr uma das pernas na banheira.
O tamanho do espaço, porém, não era proporcional ao tamanho do horror. Poucas vezes na história dos crimes urbanos, um espaço tão exíguo comportou, em quantidade e intensidade, um volume tão grande de crueldade e morte.
Dentro da banheira, empilhados, estavam os corpos de duas mulheres jovens. Sentado no vaso, a cabeça inclinada para trás, encostada à parede, pernas e mãos amarradas, boca amordaçada, um homem de cerca de cinquenta anos, olhos muito abertos e expressão de pavor congelada no rosto.
A presença do horror não estava somente nos sinais de tortura nos corpos e na morte. Alguma coisa dentro daquele banheiro era totalmente incompreensível, absurda. Mais que diabólica: era um desafio moral, um chamado de guerra contra os poderes de Deus. Ou pelo menos esses foram os primeiros pensamentos que me ocorreram naqueles instantes horríveis.
Fechei a porta do banheiro e fui conversar com Mesa, que fumava um cigarro na janela, olhando para o vale semeado de edifícios, morros e favelas. Dois PMs riam junto à porta, falando qualquer coisa sobre futebol, mas o riso deles era meio nervoso.
"Que cena horrível, Mesa! Que aconteceu aqui?", perguntei.
Entrevista com Marcelo Mirisola (para o extinto Arte & Política)
Mirisola nasceu em 1966, em São Paulo. Publicou romances (Azul do Filho Morto, Bangalô e Joana a contra-gosto – este último concorrendo ao Jabuti 2006), livros de contos (Fátima fez os pés para mostrar na choperia, Herói Devolvido) e crônicas (Notas de Arrebentação). E muitos outros livros.
A&P: Marcelo, em que momento da sua vida - se é que houve esse momento - você sentiu que a sua vocação era mesmo a literatura?
MM: Aos três anos de idade descobri que o ursinho da lata de talco Pom Pom me enganava, que era um canalha.Escrevi sobre esse tema no "Notas da Arrebentação". Dá uma espiada num monólogo cujo título é "Luto".
A&P: Você me contou, um dia, que o Azul do Filho Morto foi o romance em que você conseguiu atingir um grau de liberdade muito importante pra você. Como foi isso?
MM: Eu lhe disse que me libertei ou acertei as contas com minha família e a partir de o "Azul..." as coisas,digo sintaticamente, ficaram mais fáceis. Mas ainda tenho um montão de nós (religiosos, políticos, existenciais, etc) para desatar. Não sei se vou ter fôlego e paciência para tanto.
A&P: Se os EUA declarassem guerra ao Brasil e iniciassem um ataque nuclear ao nosso país e nós todos fôssemos obrigados a nos esconder em abrigos subterrêneos, quais livros você levaria para lá?
MM: Livro nenhum, Miguel. Tô com o saco cheio de livros, escritores, vaidades e futilidades do gênero.Talvez levasse umas bergamotas, caquis e uma foto em que estou em cima de uma Lhama. Eu tinha uns três anos de idade, tenho saudades do que eu poderia ter sido.
A&P: O cinema, música, a tv, exercem influência significativa na sua inspiração?
MM: Nunca tive inspiração, idéias, esses trecos aí. O que me motivava (antes de o meu saco encher) era o sentimento de revanche, vingança e alheamento.
A&P: Quais são as coisas do Brasil que você mais gosta? E do que você não gosta?
MM: Tenho alma portenha,Miguel. Nunca tive afinidade com as coisas do Brasil ... isso não quer dizer que eu desgoste do país. Gosto de churros, por exemplo.
A&P: Como você caracterizaria a cidade de São Paulo, numa palavra?
MM: Caipira.
A&P: E o Rio, qual a impressão que o Rio passa pra você?
MM: Uma cidade que sumiu para mim.
A&P: Quais seus projetos literários para este ano?
MM: Quero voltar às crônicas, Miguel. E ganhar uns trocos com uns prêmios literários.
A&P: Você lê alguma coisa de literatura pela internet? Gosta de ler blogs, por exemplo?
MM: O blogue do Marião, principalmente.
A&P: Quais os aspectos da literatura brasileira que decididamente não lhe agradam?
MM: Os poetas em primeiro lugar. Depois os escritores de maneira geral.
A&P: Qual a função (ou disfunção, se preferir) social da literatura, na sua opinião?
MM: Como diz o Evandro Ferreira, a função da literatura é fechar portas.
A&P: Da turma nova das letras, tem algum que destacaria?
MM: Lísias, Montenegro, Juliano Pessanha... e o Nilo Oliveira que - imagino - deve estar aprontando algo nesse momento.
A&P: Marcelo, em que momento da sua vida - se é que houve esse momento - você sentiu que a sua vocação era mesmo a literatura?
MM: Aos três anos de idade descobri que o ursinho da lata de talco Pom Pom me enganava, que era um canalha.Escrevi sobre esse tema no "Notas da Arrebentação". Dá uma espiada num monólogo cujo título é "Luto".
A&P: Você me contou, um dia, que o Azul do Filho Morto foi o romance em que você conseguiu atingir um grau de liberdade muito importante pra você. Como foi isso?
MM: Eu lhe disse que me libertei ou acertei as contas com minha família e a partir de o "Azul..." as coisas,digo sintaticamente, ficaram mais fáceis. Mas ainda tenho um montão de nós (religiosos, políticos, existenciais, etc) para desatar. Não sei se vou ter fôlego e paciência para tanto.
A&P: Se os EUA declarassem guerra ao Brasil e iniciassem um ataque nuclear ao nosso país e nós todos fôssemos obrigados a nos esconder em abrigos subterrêneos, quais livros você levaria para lá?
MM: Livro nenhum, Miguel. Tô com o saco cheio de livros, escritores, vaidades e futilidades do gênero.Talvez levasse umas bergamotas, caquis e uma foto em que estou em cima de uma Lhama. Eu tinha uns três anos de idade, tenho saudades do que eu poderia ter sido.
A&P: O cinema, música, a tv, exercem influência significativa na sua inspiração?
MM: Nunca tive inspiração, idéias, esses trecos aí. O que me motivava (antes de o meu saco encher) era o sentimento de revanche, vingança e alheamento.
A&P: Quais são as coisas do Brasil que você mais gosta? E do que você não gosta?
MM: Tenho alma portenha,Miguel. Nunca tive afinidade com as coisas do Brasil ... isso não quer dizer que eu desgoste do país. Gosto de churros, por exemplo.
A&P: Como você caracterizaria a cidade de São Paulo, numa palavra?
MM: Caipira.
A&P: E o Rio, qual a impressão que o Rio passa pra você?
MM: Uma cidade que sumiu para mim.
A&P: Quais seus projetos literários para este ano?
MM: Quero voltar às crônicas, Miguel. E ganhar uns trocos com uns prêmios literários.
A&P: Você lê alguma coisa de literatura pela internet? Gosta de ler blogs, por exemplo?
MM: O blogue do Marião, principalmente.
A&P: Quais os aspectos da literatura brasileira que decididamente não lhe agradam?
MM: Os poetas em primeiro lugar. Depois os escritores de maneira geral.
A&P: Qual a função (ou disfunção, se preferir) social da literatura, na sua opinião?
MM: Como diz o Evandro Ferreira, a função da literatura é fechar portas.
A&P: Da turma nova das letras, tem algum que destacaria?
MM: Lísias, Montenegro, Juliano Pessanha... e o Nilo Oliveira que - imagino - deve estar aprontando algo nesse momento.
Ta com preguiça?
Sobre o silêncio
Meus queridos amigos, peço desculpas pelo silêncio prolongado deste blog. Conforme já adiantei em posts anteriores, estou em viagem, numa longa viagem, externa e interna, com os pensamentos tão embaralhados que tem sido realmente difícil escrever qualquer coisa.
Além disso, nesta minha nova vida nômade, usar a internet ficou, naturalmente, um pouco mais caro e mais complicado. Estou me esforçando para romper este gelo, todavia.
Para isso, começo simplificando as coisas e unificando meus escritos num só blog, o Óleo do Diabo, espaço já conhecido dos meus amigos mais antigos, e para o qual convido todos vocês.
oleododiabo.blogspot.com
Além disso, nesta minha nova vida nômade, usar a internet ficou, naturalmente, um pouco mais caro e mais complicado. Estou me esforçando para romper este gelo, todavia.
Para isso, começo simplificando as coisas e unificando meus escritos num só blog, o Óleo do Diabo, espaço já conhecido dos meus amigos mais antigos, e para o qual convido todos vocês.
oleododiabo.blogspot.com
Show do Mundo Livre na Ilha da Reunião
Confesso que, até pouco tempo, nunca tinha ouvido falar dessa ilha, um pedacinho da Europa incrustrado no Oceano Indico. Agora ca estou, digitando em misteriosos teclados franceses e assistindo shows diarios de samba, capoeira e Mundo Livre SA.
Oui, Mundo Livre. Ontem, 2 de novembro, a banda pernambucana fez um showzaço para uma plateia atonita, que do Brasil conhece apenas samba de carnaval, mulatas bundudas, futebol e Gilberto Gil, que tocou na Ilha em julho deste ano.
Ao final do show, subiram ao palco duas deslumbrantes e legitimas mulatas, vestidas à carater: sumarios biquinis cintilantes, paetes imodestos e adereços dourados.
Breve mais informações sobre esta exotica experiencia.
Novo desenho de Emerson Wiscow
Singela homenagem a John Fante, feita para a editora Spectro.
*
Terei muitas dificuldades para atualizar este blog nas próximas semanas, até o final de novembro. Estou agitando e vivendo business trips no período. Depois conto mais. Abraço em todos.
*
Com todo respeito aos amigos tucanos, continuo minha cruzada anti-Alckmin. Se não quiserem Lula, tudo bem. Votem nulo. O bom, velho e consciente voto nulo. Mas Alckmin não! Enquanto a corrupção do governo Lula se mede em milhões, a do PSDB se mede em TRILHÕES! E eles não só desconhecem (o famoso não sei de nada), como se orgulham do que fazem! E com beneplácito dos meios de comunicação, que querem voltar a mamar nas tetas adiposas dos financiamentos públicos!
*
Diálogo de mestres
ele disse: “Eu estava trabalhando em Hollywood
na mesma época em que
Faulkner também estava lá
Faulkner também estava lá
e ele era o pior de todos
estava sempre bêbado demais para ficar de pé
estava sempre bêbado demais para ficar de pé
e ao final da tarde
eu tinha que ajudar a colocá-lo num táxi
dia após dia após dia”
“mas quando ele deixou Hollywood,
eu tinha que ajudar a colocá-lo num táxi
dia após dia após dia”
“mas quando ele deixou Hollywood,
eu fiquei
e não bebi como talvez devesse ter feito
para ter o culhão de segui-lo
e não bebi como talvez devesse ter feito
para ter o culhão de segui-lo
e dar um basta naquela merda”
eu disse a ele: “você escreve
eu disse a ele: “você escreve
tão bem quanto Faulkner”
“você acha mesmo?”,
“você acha mesmo?”,
ele perguntou, de sua cama
no hospital, sorrindo
no hospital, sorrindo
Charles Bukowski
Tradução: Miguel do Rosário
Ler no original.
Ela entendia das coisas
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
*
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
*
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
Hilda Hilst
(Alcoólicas)
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