Um Filho Morto na Praça Roosevelt

Não, Mirisola, não vou vender essa resenha por trezentos reais para o Prosa e Verso do Globo. Já bastam os “coelhos despachados a pontapés” da minha vida, oscilando entre o tédio da Fispal e a bebedeira na praça Roosevelt. Até porque eles nunca iriam pagar. Aliás, o que eles publicam ali não é resenha. É informe publicitário.

Tudo porque resolvi reler o livro, e o negócio bateu mais forte que a primeira vez – olhe que já tinha sido foda (eu nunca acreditei em primeiras vezes, as melhores sensações sempre vêm depois). Talvez porque estou em São Paulo, me sentindo às vezes um caipira, prestando muita atenção aos carros que vem de todas as direções. As encruzilhadas de sete pontas.

Sabe, cara, eu sempre achei – o que foi o meu erro capital – que a tristeza poderia me redimir. Ou seja, se eu ficasse muito triste, eu seria perdoado. Da minha covardia, principalmente. Essa mania de pedir desculpas. Fiz isso de novo, há pouco, depois de jurar que eu seria diferente. É foda... mas foda-se. Pra ser livre, a gente tem que brigar um pouco, fazer umas sacanagens, decepcionar os tolinhos e magoar os velhos frustrados.

Um escritor disse que toda literatura nasce da humilhação, ao que não dei muita bola. Me pareceu uma dessas frases de efeito. No entanto, a citação me parece pertinente ao Azul, um livro que, a meu ver, trata basicamente do sentimento de humilhação.

Todavia o escritor “é um bicho que fode”, e também um impotente (sim porque, infelizmente, a literatura nunca será uma foda em si), que se desespera porque vê o amor vencer o sexo e o amor, ah, o amor – o amor é uma merda. Bom mesmo é foder sem amor, mesmo fodendo aquela que você ama.

Eu quero escrever uma resenha do Azul sem falar da classe média e seus temores & vergonhas & podridões e não vou não vou. Foda-se a classe média. Ou antes, viva a classe média. Já chega meus ARTIGOS POLÍTICOS, que transferiram a dor que eu sentia no estômago (úlceras anti-colunismo, que besteira) para os tendões do meu braço direito. Voltei à cerveja.

Aliás, o que a classe média tem a ver com o teu livro, mêu? Nada, nadica, nonada. O teu livro – na visão que eu tive, enquanto descia a rua da consolação, pensando bem rápido, as palavras borbulhando, sem sequer imaginar que, horas mais tarde, tomaria uma surra na sinuca do Bortolotto – o teu livro é uma sinfonia de Stravinsky, ou melhor, um solo de Charlie Parker, e os caras que não perceberam isso são uns boçais. Os caras reconheceram o próprio rabo, isso sim, porque o rosto que emerge do livro não é do autor, é o rosto em si. Ou antes, o próprio cu. O cu em si. Um cu arrombado e sujo de sangue e fezes. O livro é música, cara, música clássica produzida com uma sintaxe louca, apaixonada, uma sintaxe bêbada, impossível, com bolsas embaixo dos olhos.

No dia seguinte, depois que terminei de ler o livro na cama, desci e fiquei na frente do hotel, bestando, olhando a rua, olhando uma garotinha que segurava o braço da mãe e chorava quietinha. Ela tinha trancinhas, a mãe era nordestina, nem ligava pro choro da filha. Tão triste, tão triste, tão humano, mas nem a tristeza me redimia. Não descansaria enquanto não botasse pra fora pelo menos uma parte da caralhada de coisas que pensei, subindo e descendo a rua augusta, bebendo umas cachaças no bar do Trovão, rodopiando, em transe, pelos corredores idiotas do parque de exposições Anhembi, fraudando a sala de imprensa de uma feira de alimentos para falar de literatura (o pior é a bicha que não pára de gritar histericamente do meu lado, não respeita nem a porra de uma sala de imprensa, o escroto).

Você reclamou de uns caras que vinham tentando te imitar. É melhor você se acostumar com isso. Picasso enlouqueceria se fosse implicar com todo mundo que resolveu fazer cubismo depois dele. Vale o mesmo para Chuck Berry. Eu mesmo meio que tô te imitando nessa resenha, sendo que, ao menos, tenho a elegância de assumir publicamente.

Voltando à humilhação. Porra, me senti humilhado. Ainda tô assim. Senti vontade de queimar tudo que escrevi. Começar de novo, sei lá. Talvez ainda haja tempo. Não vou te imitar. Aliás, antes que eu esqueça, vá se fuder (na eventualidade de você ter pensado isso). Contudo, a arte, depois que é publicada, vira patrimônio coletivo. Van Gogh não seria Van Gogh se não estudasse os pintores contemporâneos de Montmartre. O velho Dosty não seria quem foi não fosse um leitor assíduo de Tostói, Gogól e Puschkin, dos quais ele foi o brilhante continuador. A humilhação, disse outro escritor, não advém da vergonha por um erro pessoal, cometido acidentalmente, mas pela constatação de que somos o que somos e não há como mudar isso.

Ah, meu Deus, “que bosta, puta que pariu”, a liberdade sintática, estilística, narrativa do Azul do Filho Morto representa um marco importante na literatura brasileira e sabe porquê?

Antes, uma observação: sei que você não gosta muito do Rosa, e faz bem, mas eu gosto pra caralho daquele sertanejo sabidão, e no entanto achava que o filhodaputa tinha matado boa parte das minhas esperanças. Agora me sinto mais leve, embora humilhado. E triste pelos coelhos capotados, a morte do gente boa, a morte do meu pai, essa dicotomia dilacerante entre uma escrita de merda (às vezes) e uma razoável e firme e cruel intuição literária.

Bem, é um marco porque consolida uma liberdade que vem sendo buscada há tempos pelos escritores, uma liberdade não gratuita, um surrealismo refletido, existencial, realista mesmo. É melhor que (com perdão aos que gostam) as bobeiras holliwoodianas dum Agripino de Paula. Mais verdadeira (ô palavrinha besta, mas aqui vem com um sentido de autenticidade, força, verossimilhança) que os delírios non-sense do Campos de Carvalho. Sobretudo ajuda a libertar o meio literário da influência (não me incluo entre as vítimas dessa influência) dos analfabetos auto-promocionais e dos burocratas da pirotecnia virtual.

“Eu devo ser uma ameaça pra vida saudável”, diz você no livro. Bem, isso é mentira. Ou melhor, um paradoxo, um daqueles antigos e deliciososo paradoxos da literatura. Tão antigos quanto a maçã (uma vaga num puteiro, pois sim; ou seria um livro?) que a serpente & cafetina & tutora ofereceu à Eva.

Afinal, não é o tipo de saúde que eu quero. Saúde de hamsters de laboratório. Porra, o Azul é a celebração da doença! Nascemos mongolóides. Um bando de retardadinhos empilhando cubos e “lambendo azulejos”. Só depois aprendemos a queimar a bunda das putas e atropelar mendigos - isso sem perder a aura santa dos estetas canalhas. Aí começa a verdadeira merda.


PS técnico: Azul do Filho Morto, de Marcelo Mirisola, foi relançado há pouco pela Editora 34. Está disponível nas principais livrarias do país, porém o mais honesto é comprar no Sebo do Bactéria, na praça Roosevelt.

10 comentários:

Anônimo disse...

E eu aqui no Rio de Janeiro,Miguel. Estive pensando: "O 'Azul'me serviu para acertar as contas com São Paulo,beleza."
E o Rio de Janeiro? Quantas vezes vou ter que matar essa cidade dentro de mim? Será que vou dar conta do recado... ou morro antes?
Isso cansa,meu amigo.
Cansa demais.Muito bonito seu texto. Vamos nos encontrar em SP?
Abraço,
M.M

Jorge Ferreira disse...

Ai, Miguel...muito bom esse texto sobre o Mirisola...me diz uma coisa, sua mudanca pra sampa 'e "definitiva"?...ce continua com aquele ap la no Rio?
mandei carta pra la....
abraco!

Anônimo disse...

belíssimo texto, Miguel. uma das melhores resenhas que já li; à altura do livro.

Anônimo disse...

belíssimo texto, Miguel. uma das melhores resenhas que já li; à altura do livro.

Anônimo disse...

De repente,de repente ... posso usar esse título,Miguel?
"Um filho morto na Praça Roosevelt"?
Abraço,
M.M

Miguel do Rosário disse...

ué, marcelo, claro que pode. abraço.

Rafael Mafra disse...

Miguel, muito bons seus textos, gostei bastante, principalmente do matricídio em São Paulo.

Vou linkar o "Hell Bar" neste endereço: (http://canetas.blogspot.com). Até o final do dia eu faço isso, ok, sem problemas?

Chega lá e dá uma lida também. São textos escritos pelos botecos por aí, nas malditas noites de São Paulo.

Até!
Abraço!

Miguel do Rosário disse...

jorge, estou no Rio ainda. passei apenas 1 semana em sampa. mafra, claro que pode linkar, sem problema. claudinei, obrigado cara, pena que não sou tão competente na sinuca, héin? aquela derrota que voce presenciou foi a segunda consecutiva (na véspera é que levei uma surra de verdade). abraço em todos.

Anônimo disse...

Preciso ler o Mirisola.

Guilherme N. M. Muzulon disse...

É, Mão Branca... muitos precisam, Miguel?

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